Elcio Fonseca é poeta, jornalista e publicitário.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo, faço café, caminhada, procuro manter esta rotina para inaugurar o dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Costumo dizer que quem trabalha com processos criativos, escrita, musica etc. trabalha o tempo todo. Assim, “escrevo” 24 horas por dia, repondendo à estímulos visuais, leitura de livros, pedaços de palestras ouvidas no iPhone durante a madrugada, enfim, isso fica povoando minha mente o tempo todo. Isso é escrever. Outra coisa é grafar – usar o estilo, a pena, colocar no papel -, aí de fato preciso de um certo ritual. Entro em meu escritório, abro meu computador, revejo notas, pedacinhos de papel que vou colando na tela do computador e na parede ao lado, faço uma lista para o dia, cuido das atividades mais práticas durante a manhã: contatos, respostas, pagamentos, planejamentos, assuntos comerciais. O que gera mais uma série de “papéizinhos” (todos reciclados de folhas de A4!) para a tarde. Aí vou rever o material escrito, repassar textos deixados pela metade, enfim, trabalhar na forja, como costumo dizer. É um tempo de oficina mesmo, lembrando a raiz de poiesis, que é “fazer”. Gosto de me ver como um fazedor, antes de poeta, escritor ou coisa parecida.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Aprendi há muitos anos atrás, com um amigo chamado Arary Berti, meu diretor de arte, uma máxima latina: “nula die sine linea” (nenhum dia sem fazer uma linha), que virou meu mantra desde então. Meu processo de criação concentra-se nos finais de tarde, e, obrigatoriamente nos finais de semana (sexta e sábado). O sábado é o dia áureo – para os antigos hebreus, o shabat, o monumento à criação, que adotei pra mim também. O shabat tem para os “povos do livro” um sentido sagrado, de dia especial, de dia separado, gosto de pensar nisso também; como dizia Mário Quintana, a vida necessita de pausas, e vejo nessa tradição hebraica uma sabedoria muito grande. E adaptei para a minha vida, elegendo sábado “o dia da criação”. Sei que é o dia em que as pessoas extravasam, saem, comem e bebem (para muitos, a única possibilidade). Para mim, entretanto, é o dia em que me recolho no escritório e passo a semana a limpo, fico na mais absoluta solitude e concentração com minha poesia e meus escritos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como dizia Borges, a poesia sai da poesia. Penso que ele queria dizer que a própría lida com a poesia gera mais poesia. Tenho comprovado isso desde que adotei esta disciplina. Quanto mais escrevo, mais texto sai. Isso, na verdade vem de meus tempos antigos como redator de propaganda. Somos treinados para escrever todo dia, toda hora, solucionar problemas dentro dos prazos estabelecidos, sem essa mística de inspiração etc. A concorrência no mercado publicitário desafia você a ser muito bom, muito criativo, sempre, todos os dias – independentemente se você dormiu mal, bebeu muito na noite anterior, se está triste ou sem dinheiro. Você tem que “colocar o papel na máquina” como diziamos e cuspir um grande texto. E isso me deu uma disciplina de soldado para a criação poética. Claro que, neste caso, tenho o tempo a meu favor – nunca tenho pressa em terminar um poema, que leva, ás vezes 5, 10 ou 15 anos pra ficar pronto -, não tenho outras imposições de mercado, posso ver e rever um verso quantas vezes achar necessário.
Quanto à pesquisa, uso e abuso da facilidade que o acesso digital nos possibilita. Assim, trabalho com pelo menos 3 dicionários abertos o tempo todo, fora os específicos de sinônimos, rima, referência, entre outros sites de pesquisa etc, sempre privilegiando o rigor e a qualidade da fonte.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esse é um problema que acredito acometa todos os criadores. No caso da minha poesia, não cedo à nenhum tipo de pressão de prazo, compromisso etc. Assim, o poema me diz quando está pronto. Isso é inegociável. Quanto aos outros diversos projetos, é preciso usar a musculatura que, como disse, adquiri como redator e jornalista. Neste campo sim, existe uma instância superior, inquestionável, que é o prazo. Você não pode discutir com ele, tem que cumprir e pronto. O que faz um bom profissional da palavra é como você responde à este imperativo. E como fica seu pulso ao final do texto. Não tenho medo de não corresponder à expectativas geradas nem ansiedade de trabalhar em projetos longos, porque gosto de pensar que, se estou no projeto, se fui chamado, é porque tenho uma peça para colocar neste quebra-cabeça. E que, quanto menos quebrada estiver minha cabeça, melhor e mais rápido me livrarei desta tarefa!
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende. Textos em geral, reviso poucas vezes, mas nunca abro mão de um revisor oficial, devo à estes seres iluminados metade de minha carreira. Não tenho o menor problema em mudar, alterar textos, desde que tenham uma justificativa boa, de preferência pró-texto.
Agora na poesia, a coisa muda. Já cheguei a mexer num poema mais de 20 vezes, detalhes pequenos, cortes de linha, vírgulas, faço isso sem nenhuma pressa, passsando meus poemas por três pastas, que tenho nos meus computadores: a primeira é “anotações” (onde entra tudo, sem maiores critérios), a segunda é “in progress”, com os trabalhos já visitados algumas vezes, e a terceira que chamo finalmente de “inéditos”, para onde vão os poemas que estariam prontos para publicação, livro etc. Acontece às vezes de um poema estar numa pasta superior e, ao reler, voltar para uma anterior! Mas é um processo que gosto de fazer e gasto infinitas noites de sábado nisso.
Além disso, tenho um ou dois poetas, muito próximos, muito amigos, para quem mostro alguns trabalhos previamente – ouço suas críticas e, na maioria das vezes, acato.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No início dos anos 80 o Estadão me convidou para escrever um depoimento, pois eu era um dos redatores que adediram logo de cara ao computador. Na época disse que, embora adorasse a máquina de escrever, o computador a substituía com vantagens (na época tudo que tinhamos era o chamado processador de textos, que já me encantava completamente). Eu escrevi a vida toda à máquina, depois no computador, uso um Macintosh deste os primeiros dias, mas abuso das notas à mão, anotações no iPhone, fotografias, gravação, já usei batom e guardanapo – encarando-as sempre como matéria prima, como um padeiro usa farinha, fermento, água, sal etc. Na hora de dar forma à escrita, o computador e sua facilidade para mudar e enxergar a forma final, é a melhor solução, de longe.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu acho que a vida é a fonte da vida. A criação é a fonte da criação. Gostar de viver, de criar é um motor que retroalimenta o fazer criativo de forma ininterrupta. Não padeço muito desse temor da página em branco (embora tenha empacado muitas vezes, em muitos trabalhos), não dou bola pra essa sacralidade do texto, dessa suposta superioridade que nossa atividade tem sobre a de um marceneiro, por exemplo. Ambas podem ser uma belíssima aventura durante o tempo que nos cabe viver. Abro as janelas de manhã, procuro encontrar amigos, cultivo tempo com minhas filhas, exerço tantas outras atividades quantas me forem apresentadas (cantar, representar, pintar paredes) e, dessa dança permanente com o vento sempre renovado da vida vem o sopro da criação.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não sei como dizer, mas acho que você ganha uma certa musculatura, não aquela que exibe bícepes impressionantes, mas a que aguenta longas séries extenuantes e se recupera com certa rapidez. Parodiando Borges – um de meus “punti luminosi” – o texto melhora com o texto. O longo convívio com as linhas e entrelinhas – desde que você preste muita atenção à elas, como a uma mulher amada – melhora muito seu produto final. Escrever passa a ser, com o tempo, um real prazer. E só isso explica essa batalha ingória, difícil, anônima. Senão é masoquismo. E isso não me inclui, definitivamente.
O escritor de hoje, diria para o de ontem: tenha calma. Leia mais. Respire. Abandone os textos e projetos ruins sem dó. E só assine o que te alegrar. Essa é a prova dos nove, como dizia Oswald de Andrade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários projetos começados, em andamento, em diferentes fases – e não sei quantos chegarão vivos no final. Mas tem um para o qual recolho anotações, artigos e notas há décadas, que é série de artigos mais aprofundados, mas bem pessoais, sobre o fazer poético. Uma ambição grande para este poeta menor.
Quanto ao livro, uma vez um famoso e premiado redator puiblicitário espanhol veio ao Brasil e deu uma palestra mostrando que todos os roteiros já tinham sido escritos. E provou por A mais B. Acho que está no Campbel, na sua Jornada do Herói, idéia semelhante, quando ele esquematiza as histórias e seus roteiros de forma brilhante. Então eu penso que o livro que gostaria de ler já foi escrito, só me falta descobrí-lo. Por ora, fico com a Bíblia e seus 66 livros, que vem me dando trabalho há decadas e não dá sinais de vá diminuir tão cedo.
* Entrevista publicada originalmente em 22 de outubro de 2020, no comoeuescrevo.com (@comoeuescrevo).