Giovani Miguez é poeta, filosofante e socialista, autor de “Em terceira pessoa e outros poemas” (Outra Margem, 2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Geralmente acordo ruminando as inquietações do dia anterior. Algumas vezes inquietações que ganham formas oníricas. Entretanto, não me sinto confortável em escrever quando a tempestade de ideias está ativa. Um café, um pão com ovo ou um pão na chapa em silêncio ajudam a construir um ambiente de calmaria mental e um impulso criativo mais forte.
Gosto sempre de pensar ao sabor de um café quente e preferencialmente expresso ou caminhando, embora caminhe muito pouco. Mas, caminhar surte o mesmo efeito do café matinal. Daí, quando a agitação começa a repousar, leio algumas páginas aleatórias de algum livro que sempre carrego na mochila. Nem sempre consigo essa rotina, mas tenho a clara percepção que ela faz com que a escrita acontece de forma mais orgânica e intuitiva.
Essa rotina matinal tem sido bem prejudicada pela pandemia. Primeiro, porque fiquei por alguns tempos em casa. Segundo, pois há uma sensação de desconforto e insegurança que passou a imperar há mais ou menos um ano.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não gosto de estabelecer rituais para escrever. Geralmente escrevo por impulso criativo. Escrevo um palavras e deixo que ela me conduza pelos versos, estrofes e poemas que vão surgindo. Costumo dizer que não escrevo poemas, mas sou escrito pela poesia que me atravessa. Quase a totalidade dos poemas que escrevi foram frutos de uma acaso, de uma ausência de intencionalidade. Apenas deixo a poesia presente nas coisas que me tocam sangrar. Apenas verto em palavras as ideias sobre o que sinto ou sobre o que vejo ao longo do dia.
Dito isto, fica muito difícil escolher uma hora mais adequada para escrever. A poesia que escolhe como e quando quer colapsar em um poema. Eu apenas me coloco em estado de disponibilidade. Acho que esta ideia é a que está presente na minha obra, sobretudo em “Animal Poético: Diário est(ético)” (Multifoco, 2020), onde sintetizo minha tese autoral, onde eu me coloquei na comdição de autor-obra fui literalmente este animal existencialmente est(ético) que escreveu sem método, sem rotina e praticamente por compulsão.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como disso, a escrita para mim é um modo de existência e resistência, um ato de compulsão. Escrevo o tempo todo e, como voltei a escrever como forma de compreender as inquietações existenciais que me atravessavam, desde 2017, quando não passei um único dia sem registrar um único poema. Os poemas (às vezes as prosas) têm uma dimensão documental para mim, como um diário. Meus textos são documentos psicofilosóficos, extratos de minha existencialidade est(ética). Transformei a escrita em um modo de agir no mundo, um vício benéfico, mas também um dever ofício onde faço do verso um elemento de construção filosófica.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Raramente planejo. Como disse, sou mais intuitivo. As acumulações não seguem uma lógica consciente. Não digo que não às tenha, mas não faço delas um exercício racional. Dos dez livros que tenho escrito e publicados desde 2019, há um único de contos, o Nem te conto e outros contos” (Selin Trovoar, 2021). Este, escrevi em mais ou menos uma semana. Simplesmente comecei a rememorar histórias que estavam adormecidas e quando comecei a registrá-las ( mais ou menos 3 por dia ) fiz como elas iam surgindo sem definir o gênero ou estilo. Pensando no processo, é claro que estas histórias foram gestadas, mas eu não conseguiria definir o caminho ou o método o que utilizei. Há poemas e contos que me acompanharam por muitos anos. Alguns, solenemente ignorados e esquecidos. Outros, incorporados à minha narrativa existencial. Quase sempre atuo como um observador-participante dos enredos que materializo na minha poética, mesmo quando tento ser um prosador.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou um procrastinador em quase tudo na vida. Tenho grandes dificuldades de lidar com as necessidades práticas da vida. Mas, na escrita, ao menos nos últimos tempos, desde que passei a escrever poemas, em 2017, não me vejo diante de travas e bloqueios.
Às vezes, a falta de tempo e oportunidade acaba gerando um mau humor terrível, pois é como se eu estivesse sendo privado, em certo sentido, de respirar. Escrever para mim tem sido um ato de resistência terapêutica e não poder escrever gera ansiedade, pois é como tentar conter uma represa que está vazando, prestes a romper-se.
A sensação que tenho é que um hora a vazão será maior que minha capacidade de escrever. Talvez, neste momento, eu me veja diante de um impasse criativo. Por hora, a sensação que experimento é a de que, mesmo numa aparente redundância temática, ainda consigo lidar com isso sem ter que me preocupar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não gosto de revisar. Mas sempre mostro para um ou duas pessoas de confiança quando não disponibilizo, o que é raro, meus textos nas redes sociais. Pouco poemas meus não são disponibilizados no meu perfil do Instagram. Em pouquíssimas vezes senti necessidade de alterar o texto original. Tento respeitar a intuição que está presente no texto e evito ao máximo corrompê-lo em nome de algum perfeccionismo. Às vezes, o poema nasce inacabado e sinto que ele deve ficar assim. Tento respeitar a poesia (ou a ausência de poesia) presente no poema.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não tenho por hábito escrever à mão. Primeiro, pois teria dificuldades de ler o que escrevei. Segundo, porque acabei me habituando com o uso do computador e, mais recente, do celular. Meus “cadernos” são arquivos digitais. No papel, gosto de rabiscar esboços, palavras e desenhos (amadores, é claro) para registrar alguma ideia. Mas, raramente as aproveito, pois, como disse, gosto de respeitar a ideia que nasceu sem tentar impor a ela qualquer esmero. Respeito a “animalidade” da minha poética.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Inquietações existenciais. Quase toda minha escrita nasce dessas inquietações. Algumas vezes, trata-se de um mero exercício de observação do instante, uma tentativa de fotografar o momento presente com palavras ou resgatar afetos e memórias. Os sonhos, cada vez menos raros, também ajudam a construção das ideias. Algumas vezes, quando paro para escrever um poema tenho dificuldade de definir se ele está nascendo naquele momento ou se é apenas a reminiscência de alguma experiência onírica que, por sua vez, é resgato de algum afeto ou memória que o inconsciente que trazer à tona. Há ainda, apesar de não tão frequentes, as ideias que nascem de projeções, ou seja, àquelas que são apenas expectativas poetificadas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu escrevi muito até me 19 anos. Fui muito produtivo em textos poéticos, crônicas e contos. Mas um dia, decepcionado e frustrado, destruí tudo que tinha escrito. Não salvei nenhum manuscrito. Continuei escrevendo, mas sem o mesmo vigor e por 20 anos e sem preocupação em guardar os textos. Odiava os textos que produzi entre os 19 e o 39 anos. Mas, algumas memórias que guardo dos textos da adolescência são muito boas. Eu gostava daquele jovem que escrevia. Tenho muito afeto por ele. Quando retomei escrita aos 39 anos, foi uma avalanche. Nos primeiros escritos, ainda posso ver aquele escritor que eu odiava. No meu livro “Quase Histórias: Et(éticas) existenciais (Autografia, 2019)” consigo ver com muita clareza essa transição. Mas mesmo neles, já há um certo projeto est(ético) existencial em curso. Se eu pudesse voltar no tempo, o que eu diria ao jovem que fui é: não desista da escrita. Perdi duas décadas negando e negligenciando minha vontade e, talvez, alguma vocação para a escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu não leio romances há muitos anos. Uns quinze anos mais ou menos. Sacrifiquei a leitura deste gênero para poder mergulhar no ensaios filosóficos, psicológicos, sociológicos e antropológicos. E 2016, retornei aos contos, às crônicas e aos poemas. Tenho vontade de escrever um romance ou uma novela em que eu possa construir uma narrativa com toda essa bagagem de leitura, sobretudo, dos últimos dez anos. Mas, confesso que me sinto pouco confortável em escrever romances. Meu lugar de conforto é a poesia e creio que eu tenha muito a produzir nela ainda. Talvez um flerte mais sério com a prosa poética seja mais factível. Estou pensando. A escrita do meu livro de contos (Nem te conto, pela Selin Trovoar, 2021) me deixou com vontade de tentar algo. Talvez eu escreva mais alguns contos e quem sabe, para quando eu defender minha tese de doutorado, eu arrisque uma novela, um ficção psicofilosófica.