Fernando Ferrone é escritor e tradutor, autor de “A Longa Noite de Bê” (Mocho Edições, 2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Por causa de meu trabalho no Centro de Controle do Metrô de São Paulo, eu não sigo o ciclo semanal, que é comum à maior parte das pessoas. Enquanto o comum dos mortais – com carteira assinada, claro – trabalha de segunda à sexta (às vezes, até mesmo sábado), eu me pauto por uma semana de dez. Ou seja, meus dias úteis e minhas folgas nunca “batem” com os dias úteis ou os fins de semana, ou até mesmo os feriados, da maioria da população. Para complicar, também trabalho em turnos diferentes. Atualmente, trabalho de manhã, à tarde e à noite, o que faz com que em qualquer hora do dia possa estar trabalhando. Essa rotina diferente impõe algumas peculiaridades no meu regime de escrita. Não existe uma “rotina matinal”, mas um determinado momento do dia eu me torno ativo, como um animal que sai da toca.
Jamais escreverei algo em jejum. Nenhuma boa ideia que não fosse tomar café me ocorreu após acordar. Tomar café no sentido mais literal do termo, para ativar os neurônios dormentes, mas também comer algo leve, para aliviar a carga de cafeína no estômago. Com os anos, as soluções para alguns problemas se tornam problemas que requerem outras soluções. E daí estas se tornam problemas também. Se querem um dica mais valiosa que qualquer dica de escrita, ei-la: não envelheçam. Dá o maior trabalho.
Corpo alimentado (a tentação é citar a alma também, mas Nietszche já apontou que ela nada mais é que uma parte do corpo), é hora de se situar no tempo e espaço. Eu gostaria muito que minha escrita fosse absolutamente despreocupada com tudo o que acontece ao meu redor, mas isso apenas não é possível. Um mínimo de organização doméstica é fundamental, então ou a louça precisa ser lavada, ou a mesa desembaraçada, ou a cama arrumada. Com frequência, há algo a ser feito na rua: passar na padaria, no açougue, no mercado, quitanda levar o Boris para passear e fazer suas necessidades ao ar livre, que é sua preferência. Há também as demandas familiares: Kit que quer uma opinião sobre um texto que vai acompanhar uma fotografia, Felipe que tem uma dúvida sobre alguma geringonça eletrônica ou sobre algum fato da vida, e Pedro que se orgulha em me mostrar alguma proeza artística. Só para citar alguns exemplos. Se a situação se dá no trabalho, mesmo a mais maramástica das jornadas requer, além de atenção distribuída, uma série de pequenas rotinas, incluíndo a emissão de relatórios. É terrível o trabalho de escrita estereotipado e muitas vezes tão contaminador que eu compreendo quando algum jornalista se confessa incapaz de escrever ficção, embora deseje muito.
Pois em algum momento entre as necessidades sociais e corporais ocorre um intervalo, aquele momento luminoso em que o universo se abre à minha vontade e sou convidado a escrever. É a grande oportunidade de… ler. Me parece muito estranho manter uma produção escrita que não seja embasada num consumo de escrita. A leitura de um jornal, de não-ficção contemporanêa (há ótimos ensaios sendo publicados em papel ou digitalmente), de prosa clássica e atual, eventualmente um poema, é essencial para a inspiração da minha escrita. Seja no sentido mais lírico de dar aquele empurrão rumo à palavra, seja no sentido mais comezinho de me armar de vocabulário, prosódia, sintaxe e outros instrumentos afins úteis ao ficcionista. Escrever sem ler faz tanto sentido quanto falar sem escutar, embora eu esteja ciente de que isso seja prática bem disseminada.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há horário do dia em que trabalho melhor. Todos os horários são péssimos, ruins, normais e, eventualmente, bons. Evoco vagamente um momento que parece ter sido excelente, porém suspeito que estivesse devaneando porque até hoje tento localizá-lo na minha biografia e ele me escapa como um pernilongo faminto numa noite de verão. O horário de trabalho possível é aquele em que não tenho mais nenhuma obrigação e o sou capaz de domar a preguiça e a indisciplina. Como qualquer pessoa, estou sempre sob o fogo do conteúdo de redes sociais: todas aquelas mensagens que precisam tão urgentemente de uma reação. Daí que se não houver um esforço consciente para escrever, talvez nenhuma linha digna de ser publicada exista. A maneira que adotei para domar os parasitas da produção textual foi o planejamento.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
O planejamento do romance (porque eu raramente escrevo algo que não seja de fôlego; peço desculpas aos meus leitores por isso) é o que me ajudou a concluir meus dois livros. Preciso saber quem são meus personagens, quais seus dilemas, de onde partirão, para onde vão, por onde passarão e em que momento se engalfiarão com um vira-lata numa disputa famélica por um trabalho de umbanda realizado numa encruzilhada. Não possuindo um projeto, eu não seria capaz de dizer se o teto do romance fica apoiado em colunas ou na grama do jardim. Assim, de posse do projeto, eu terei, com certeza, uma meta de palavras. Pelo menos setecentas por dia, que é um número mágico que creio ter visto em algum lugar, talvez em Hemingway. Registro aqui meu agradecimento ao programador de editor de texto que criou a ferramenta de contar palavras. Um dia ainda dedicarei um romance a você, bondosa pessoa.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Partir da pesquisa para a escrita não é difícil, pois a pesquisa também costuma ser planejada. Costumo fazer entrevistas e anotá-las e revisá-las. Também escrevo pequenas histórias para testar voz e ações dos personagens. São espécie de contos, mas focados numa única cena. Uma espécie de casting. Quanto às ambientações, não me preocupo tanto com elas de cara pois não tenho uma imaginação muito visual. O cenário se subordina aos personagens e aparece quando eles estão vivos na cena. Se algo não funciona, já deixo de lado pois detesto produzir rascunhos em demasia. Recentemente, li que Ian McEwan contou que estuda livros de época para ambientar seus romances históricos: é algo que eu considerarei, caso algum dia escreva romances de época. Também consumo literatura de não-ficção, sobretudo de neurologia, o que sempre me dá ideias interessantes.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Se estou confiante em meu planejamento, eventuais dias não-produtivos não são um problema. Acho até que, em alguma medida, eles fazem parte do próprio planejamento, mesmo que sejam a parte menos desejável. Procuro não ficar ansioso e deixar a mente vagar por outros caminhos. Como um cão fiel, ela retorna mais cedo ou mais tarde para se alimentar e eu posso contê-la por mais uns dias de trabalho.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso à exaustão, o que não é muito. Facilmente, canso de ler o que escrevo, e começo a imprudentemente pular trechos inteiros. Mais uma vez o planejamento é crucial aqui. Se estou bem consciente dos passos que dei, não é cansativo procurar por melhorias. Também valorizo e confio no julgamento alheio, de amigos, mas sobretudo de leitores críticos. Eu não escrevo para mim e não acho que nenhum escritor deva se orgulhar do solipsismo. A escrita é um ato coletivo, do início ao final, é o escritor deve ser receptivo a toda crítica, mesmo a mais devastadora. O que não quer dizer que não deva defender seu texto. Porém, ele deve ser sempre colocado à prova.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Admiro muito os escritores que ainda se esmeram na caligrafia. Eu martelo teclas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Nenhum escritor que leia e observe ao seu redor padecerá de escassez de ideias. Ao contrário do que já foi dito, há muito ainda sobre o que escrever. E a cada dia mais temas e questões emergem. O grande desafio é casar o estilo com o objeto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Passei a dominar melhor a técnica. Meu romance de estreia, que jamais renegarei, tinha alguns pontos de melhoria, apontados, inclusive, à época, por leitores críticos. Optei por mantê-lo sem grandes alterações, até como um monumento à minha primeira infância literária. Eu não mudaria nada em seu próprio texto, mas fiz e faria diferente nos novos. Não vejo mérito algum em acreditar que já se atingiu o pináculo da forma.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero escrever um romance que seja altamente hilariante com passagens muito tristes, um romance com um personagem bufão, que inspire todo tipo de sentimento contraditório; seria um texto que impactasse o leitor pelo personagem, e não por um grande exercício formal. Nada contra grandes exercícios formais salvo o fato de serem também grandes demonstrações de solipsismo. Quanto ao livro que gostaria de ler e que ainda não existe, eu o revelarei assim que o ler. E passei a procurar pelo próximo.