Silvia Beatriz Machado é escritora.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Quando eu trabalhava em emprego fixo, eu escrevia depois que chegava do trabalho, ou na hora que eu tinha livre. Nessa época eu não tinha um projeto. Aliás meu projeto era encontrar algo que eu adorasse fazer. Então a minha escrita era uma vasculha nos meus gostos e interesses, até que me dei conta de que fazia isso todos os dias com alegria.
Com o tempo, comecei a querer escrever de forma mais consistente, não mais sobre minha rotina, ou gostos e afinidades. Nessa época meu projeto era escrever um livro chamado “a montanha errada”. Consegui. Foi o meu melhor fracasso. Nunca publiquei, mas aprendi com os erros que cometi.
Achei que esse livro tinha cumprido o propósito dele. De forma que dei início a um estudo mais aprofundado da escrita. Li um livro chamado “how to become a writer”, da Dorothea Brande, que me garantiu que a mágica do escritor era possível de ser ensinada e aprendida. Fazendo os exercícios propostos pela autora, eu encontrei a minha própria voz e não precisei mais tentar imitar os escritores que eu admirava.
Por causa desse livro, meu dia perfeito inicia-se às 4:30 da manhã, escrevo o que vem à cabeça. A essa hora, estou entre o sono e o despertar, meu freio mental ainda dorme. Não há censura.
Às 6;30, as minhas filhas acordam e o dia começa com elas e já me sinto com aquela sensação de “aconteça o que acontecer, já ganhei o dia” Sinto um leve sorriso no rosto e uma segurança interna, aprazível.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sem dúvida ao despertar, antes do amanhecer. Não se trata somente da hora mas também de um espaço entre dimensões desconhecidas. Acredito.
Também escrevo com hora marcada. Digo pra mim: hoje às 21 horas você vai sentar e escrever. Faço isso para treinar a escrever fora do horário matinal. É um exercício que me instiga a continuar uma história e a manter a mão em movimento. Quando eu morrer, a minha mão vai ser a última parte do corpo a parar de mexer, porque ela vai estar escrevendo uma frase, seja a hora que for.
Meu ritual é manter a mão em movimento, caneta no papel, até cansar. Caneta no ar é um sinal de perigo pra mim, a mente devaneia em descompasso do resto do corpo. Quando me pego assim, eu me proponho a escrever com a mão esquerda, até cumprir a minha meta.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrita é hábito. É como leitura. Se você lê todos os dias, você não vai dormir antes de ler uma página que seja. É como algumas pessoas fazem hoje com o celular. Substitua o celular por um livro ou um caderno e a produtividade aumenta naturalmente.
Escrevo no mínimo três páginas por dia. Em épocas de desânimo, já aconteceu de eu começar assim: “não tenho nada pra dizer, estou com sono…Será que preciso acordar às 4 da manhã?”. E continuo. Não me importo, ninguém vai ler aquele texto, a não ser que eu mostre.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Antes de me sentir escritora, eu imitava os escritores que admiro e isso me custava e frustrava, porque eu não sou a Isabel Allende, Machado de Assis nem o Murakami e obviamente jamais escreverei como eles.
Treinando descobrir meu estilo, eu me dei conta de que escuto a minha voz de escritora quando escrevo cartas. Então, todos os meus rascunhos começo como se fossem uma carta à minha irmã e conto pra ela tudo que se passa dentro e fora de mim…
Escrevo diariamente, mesmo que não tenha um projeto definido em mente. Inicio a pesquisa, mesmo que pareça aleatório e evito julgar.
Para evitar julgamento precoce, nunca releio o texto no dia seguinte. Só me autorizo a reler, depois de seis semanas, tempo necessário para eu me surpreender com alguma passagem do que escrevi.
Já foi difícil começar, porque eu não tinha entendido que teria que escrever todos os dias, independente das ideias virem ou não. Depois que transformei a escrita num hábito, eu me tornei escrava dela e o medo e a procrastinação se dissolveram. Deixou de ser difícil começar, porque escrevo constantemente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido com as travas da escrita, fazendo atividades sem palavras: caminhar, dançar, desenhar. Há um tempo atrás, quando ainda era insegura em relação à escrita, a minha mente parecia uma faca apontada contra mim, até o dia que li uma poesia do poeta Rumi na qual ele diz que sabia que uma pessoa tinha conhecido a Deus, porque ela havia deixado cair a faca apontada para ela. Daí por diante, passei a ser carinhosa comigo, a escrita começou a fluir de uma fonte escondida. Senti que havia descoberto a magia de escrever, que a Dorothea Brande tanto falava no livro dela, e que qualquer um poderia fazer isso, não se tratava de um privilégio de pessoas geniais.
Eu ligava para expectativas quando era insegura sobre a minha escrita, porque no fundo ainda não havia identificado se eu era capaz de ser eu mesma. Eu vivia o drama da história judaica do Sussia.
Sussia era um rabino famoso e líder da comunidade judaica, ajudava todos em momentos difíceis, até o dia em que chegou perto da morte e sentiu um pavor. Os seus seguidores estavam surpresos. “Sussia, como pode? Vós sois o mais sábio de todos. Fostes como Moisés, fizeste como Abraão, Salomão, Davi, Jacó O que temeis? … Quanto mais falavam, o pavor de Sussia só aumentava, até que ele revelou: “pois é disso que tenho medo.”Disso o quê, Sussia?” “De Deus dizer que fui como Moisés, Abraão, Salomão, Jacó, Davi, e, ao final ,me perguntar: “por que não fostes Sussia?
Quando identifiquei a minha própria voz, parei de ligar para expectativas, compreendi que não precisava mais imitar ninguém, que eu poderia ser eu mesma e escrever pra mim. A escrita pode ser o condutor para se chegar ao lugar mágico entre as dimensões da vida. A partir daí, parei de me preocupar se meus livros/artigos e textos seriam publicados ou não. O mais importante pra mim foi e continua sendo a capacidade de visitar esse lugar, onde as crianças brincam sem se dar conta do que estão fazendo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Minha irmã é a primeira a ler e ela diz quando devo parar de reescrever. O meu livro Gestação aos 40: medo, reflexão, empoderamento , reescrevi 21 vezes. O tesouro da língua alemã (não publicado), escrevi 19 vezes. A magia do interior (não publicado), 13 vezes (esse ainda pretendo revisar mais vezes, apesar da proibição da minha irmã).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
O primeiro rascunho tem que ser todo à mão. Já tentei no computador, mas meu julgamento é cruel e quer corrigir, e eu nunca termino o texto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Escrever ao acordar faz brotar coisas que não sabia que tinha guardado. A minha biografia também me ajuda . Cada pessoa tem uma história única. São os incidentes aparentemente mortos que germinam. Ler histórias folclóricas, ouvir as histórias dos outros, viajar, brincar com as minhas filhas… A natureza é uma fonte inesgotável. Olho para uma árvore e fico pensando em escrever sobre uma personagem que transforma terra em alimento, ar em água, água em ar… As crianças me ensinam a fazer isso com naturalidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Silvia, escreva todos os dias, independentemente de qualquer coisa. Talvez ninguém venha a gostar do que você escreve. Talvez a escrita nunca te remunere. Essa não pode ser a sua motivação. O Kafka, que você tanto admira, nunca viveu da escrita, porém nunca abandonou o ofício, para nossa alegria e crescimento. Quem sabe um dia dirão isso de você? Que sorte a Silvia nunca ter abandonado o ofício de escrever.
A magia da escrita, Silvia, está disponível para qualquer um. Não é privilégio de gênios. Basta escrever, até deixar o corpo ficar dependente do ritual de narrar. A partir daí, a sua mente vai te servir, ao invés de te maltratar.
Insista em escrever diariamente ao acordar e escreva a sua biografia, como fonte de consulta. Dar um tempo antes de reler o texto. Não se julgue, dê esse trabalho à sua irmã, que te ama e vai saber quando você não estiver sendo você mesma.
Quer descobrir a sua própria voz, Silvia? Comece como se estivesse escrevendo uma carta, não explique nada, só conte sem se preocupar em agradar ninguém, a não ser a você mesma. E, ao final, se celebre, não espere isso de ninguém.
E lembre que você pode ser a sua melhor amiga.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sabe aquele livro que a gente tem vontade de sorrir sem motivo, como se estivesse apaixonado? Pois é! É esse livro que eu adoraria ler ou escrever… Um livro que eu tenha vontade de abraçar quem passe na minha frente, de dar vontade de ouvir as árvores como as crianças fazem sem cerimônia, de fazer loucuras doces. Aquele livro que nos deixa com a sensação de que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.