Mazzu é artista e poeta.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu sou arte educadora. Trabalho como supervisora do Núcleo de Arte da Unidade de Gestão da Educação Municipal de Jundiaí e isso de fato me sustenta. Assim, trabalho 40 horas semanais… Às vezes 50. Labuta dura para o educador em tempos pandêmicos. Em dias comuns de semana, acordo bem cedo, antes que o despertador me grite. E levanto desperta e experta já (sou um pouco hiperativa). Tomo um balde (um baldinho, vai) de café que eu mesma moo. Grãos cheirosos. Eu gosto da paz e do aroma deste momento. Eu como, eu bebo e eu divago. Abro a porta da sala que encontra o quintal. Abro todas as janelas pra ver o dia entrar. Corro pro banho, me troco e saio (isso, já sem aquela intensidade da hora café). Um gesto quase robótico. Todo dia. Todo dia. Mas não há um desgosto pela rotina. Eu até sou amiga dela. A verdade é que a rotina de um dia a dia de um gestor da educação pode ser pesada.
Em finais de semana, acordo cedo também. Meu corpo acostumou com o ritmo e meus pensamentos e mirabolâncias me expelem da cama. Aí, levanto, tomo banho, tomo o balde de café… Leio, escrevo, tomo uma dose de sol… Almoço com minha mãe (que mora na rua acima), escrevo, tomo outro café, treino, trabalho, danço, crio… Não nesta ordem e, às vezes, sim. Deixo fluir.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como a escrita não é meu trabalho principal, e sim, a educação, eu não tenho muita opção senão criar a noite. Escrever é um momento de prazer que me traz chão (se metamorfoseando em trabalho), um processo criativo de arte para mim. Assim, escrevo a noite e aos sábados de manhã. Produzo bem nos dois horários. Mas prefiro de manhã.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho ritual para escrever. Ou será que tenho? As palavras me invadem e escapam e eu preciso cuspi-las. Ás vezes, uma cena no caminho do trabalho pra casa, uma memória de um sonho, um desejo, uma fome, uma sede me fazem ter que sentar e escrever. Ao longo do dia eu junto as coisas (sensações, sentimentos, olhares, imagens etc.) e de noite, em casa, tá tudo ali pra derramar no papel. E quando não vem, não escrevo. Talvez isso seja um ritual…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu processo de criação se inicia dos movimentos diários da própria vida. Eu chamo isso tudo, esse conteúdo dos gestos de nutrição estética. Há uma coleta natural de poesia no dia a dia. O movimento e os passos de alguém podem ser poesia. Um insight no trabalho, a chuva, os cheiros, a paixão, a pele, o sexo… Essa nutrição é repertório. Mas esse repertório deve ser nutrido. Isso é um exercício. Ter a vida em movimento e o olhar sensível e atento pode nutrir o ato criador. Obviamente, meu caminho de vida, minhas escolhas, minhas vivências, meus estudos e leituras diárias me dão ferramentas e alicerçam esse repertório de onde tiro as palavras. Mas ainda muito crua de tudo isso, eu já escrevia. Então, a escrita, pra mim, é e sempre foi um gesto primal de criação artística. Eu encaro a poesia como um gesto artístico pra expelir e expressar as coisas do meu dentro, como outras formas e linguagens da arte (a pintura, a escultura, performance, a dança, a música etc.).
Eu tenho uma relação muito íntima e livre com a palavra. Ela me é solta e cuspida. Quando escrevo meus poemas e textos poéticos, escrevo rápido, porque muitas vezes, estrofes cheias me invadem a mente e tenho a sensação de que se eu não jogar tudo ali no papel logo, as palavras se perderão pelo ar. Elas voam e vão embora de mim.
Tenho uma relação visceral-visual e sonora com palavra. A escrita é desenho, é música e corpo. As linhas me fascinam. E quando cuspo as palavras na superfície do papel, elas cantam. Há uma cadencia e um ritmo no trilho das frases poéticas que saem de mim. Encaro a poesia de uma forma sinestésica. É possível cantá-la, dança-la e cheirá-la. Escrever movimentos e dançar as palavras. Todas as vias são possíveis.
E escrevo porque me dá prazer, me alivia, me dá vida e traz vida neste ato de gestação. É um processo cíclico criador de liberdade e emancipação de vozes.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como não vivo da poesia, não passo por essa sensação. No entanto, preciso escrever no trabalho também, com bastante frequência. Outra forma de escrita. E sim, há prazos, receios e procrastinação. Não deixo que isso me consuma. Quando me flagro procrastinando, recorro ao balde de café (aquele dos grãos cheirosos) e me ponho a rascunhar. Agora, a ansiedade de atender às expectativas pode me tirar o sono e deixar meu tempo de descanso extremamente reduzido, o que tem me feito tentar meditar nesses tempos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Uma vez. Pra correção de erros de digitação. Mas eu nunca mudo o corpo, a essência. Eu tenho paixão pela crueza e a raiz do texto como ele foi gerido. Não lapido. Cuspi e já foi! Seja como for. Não mostro para ninguém antes, com raras exceções. Escrevo, aprumo o poema num visual que me agrada e publico. Não tenho amarras e não me sinto insegura com isso. Eu fluo na leveza e sigo minhas querências.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu até gosto dos recursos tecnológicos. Acho divertido me entranhar por novos aplicativos de edição, pelas redes sociais, pelas ferramentas disponíveis. Mas, geralmente, aquelas palavras cuspidas, são postas no papel. Tenho um caderninho que mora no criado mudo. Já interrompi sonos e sonhos pra escrever ali. Muitos poemas foram feitos de madrugada.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm do olhar. Da troca do meu olhar com as coisas do mundo… Que considero ser um olhar crianceiro… De aventura, de curiosidade, de prazer, paixão. Creio que as minhas ideias poéticas venham desta sensibilidade do olhar. Um olhar que captura as sensações, os outros olhares, as nuances e entrelinhas num diálogo, os movimentos das mãos de alguém, o cheiro do fim da tarde… As ideias vêm das trocas. Das relações. Da reflexão sobre isso.
Mas, além disso, eu considero importante me nutrir para me manter criativa sim. Eu passo por momentos de escassez criativa, claro. E me nutrir significa ler, conhecer gente interessante, abrir as portas e janelas para estes ricos diálogos, buscar autoconhecimento e me expressar livremente em outras linguagens da arte, como a música e a dança, por exemplo. Isso me nutre esteticamente e me repertoria para que eu possa criar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou a minha própria maturidade, que se fez crescer. Eu venho buscando escrever na essência e cada vez mais cadenciado. E percebo que isso de fato foi ocorrendo. Encurtei os textos. Mas alonguei a alma das palavras. Poucas palavras com mais força, eu diria. Poucas palavras desenhadas e ritmadas que me tocam mais hoje do que há alguns anos. Mas a essência e a forma de criação são exatamente as mesmas. Eu não mudaria meu processo. Eu diria para mim mesma: “continue libertando seus dentros com verdade… Teus textos ficarão mais fortes na medida em que você colecionar trocas e sensações.”
Mas acho que é uma busca que vai durar a vida toda. Isso não se finda. Não sei se haverá um dia em que eu olhe para minha escrita e diga: “cheguei ao ponto”. Tudo é não pronto. Tudo é processo pra mim.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que eu gostaria de fazer é a transformação do poema em espetáculos de música e dança. Aqui não dançarei. Mas cantarei meus poemas, talvez. O encontro das artes me fascina. Quero todas as linguagens artísticas acontecendo concomitante no espaço-tempo-cosmos. Gostaria de ler um livro sobre “os insights que nasceram dos diálogos” falando sobre como ideias de lutas de causas como a luta contra os preconceitos (todos) nasceram em pequenos diálogos entre pessoas interessantes e fortes. Eu queria ser a mosca que flagra essas conversas. Gosto das minúcias dos diálogos e de como eles podem se transformar em grandes ideias e projetos.