Jocarla é poeta, artista visual, e mãe de Maria Eduarda e Maria Cecília.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Após me tornar mãe, a rotina foi adaptada às necessidades de minhas filhas gêmeas de 2 anos. Então o dia começa com duas bebês puxando meus seios para se alimentarem. Em seguida uma se levanta da cama e é preciso também se levantar para ver se em seu trajeto não tem nenhum risco (banheiro aberto, talheres de fácil acesso sobre a mesa ou sobre a pia). Tem dias que entrego para o pai e corro para um banho, na tentativa de despertar e de após uma noite inteira entre cochilar e dar de mamar, poder me sentir eu, sentindo o chuveiro sobre as costas. Noutras vezes sigo num automático, de levantar, trocar as fraldas, ficar com elas enquanto meu companheiro prepara o café da manhã. Mas para sobreviver em meio ao turbilhão que é criar dois seres, todos os dias após o café da manhã, tenho a parte da manhã para mim, são 3 horas onde preciso organizar trabalhos, aulas, autocuidado, produções e redes sociais. Após um ano desta organização, pois iniciamos ela devido à pandemia, tenho feito milagres cronometrados em 3 horas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O melhor horário do dia para mim sempre foi a parte da manhã, gosto de despertar cedo e é neste período que sinto minha mente fresca, sem as sobrecargas mentais e físicas que sinto no findar do dia. Mas devido às demandas da parte da manhã, tenho escrito também no silêncio da madrugada, algumas vezes quando embalo nos processos de escrita, consigo produzir bastante, mas ainda entre a escrita e a amamentação.
O rito de minha escrita tá dentro de mim, uma necessidade, uma emergência de anotar para tornar visível para mim, para tornar quase que palpável, e principalmente para não deixar escapar da memória.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Acabo escrevendo um pouco todos os dias e conforme as emergências, necessidades desta escrita. Já tentei metas de escrita, mas não funcionou comigo. Antes da maternidade conseguia criar períodos longos de processos de escrita e diariamente. Atualmente escrevo de forma fragmentada, no caso de pesquisas. No caso da poesia, ela por ser emergente precisa ser pelo menos estruturada, mas às vezes acontece de também ser fragmentada. E este processo fragmentado é atualmente corporificado em mim, o que me faz aproveitar de oportunidades mínimas para anotações, poemas em notas de voz ou bloco de notas no aparelho celular. Talvez minha meta diária seja não me silenciar, poder colocar pra fora todas as palavras que me inundam.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando trata-se de um texto de pesquisa, junto as peças, os fragmentos que consegui registrar e vou reorganizando o texto. E então surge o processo também fragmentado de revisões. Busco sentar para organizar o texto quando tenho pedaços o suficiente para continuar desenvolvendo, claro que quando existe uma data determinada é mais fácil para eu fazer. Agora, quando não existe uma data, o processo precisa ser revisitado conforme a emergência para mim de finalizar aquela escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A meditação e a performance arte foram formas que encontrei para aliviar um pouco as cargas mentais e poder abrir espaços para os processos dentro da escrita. Escrevi a monografia de minha pós-graduação com 2 bebês, no ápice de meu puerpério (processos de mudanças intensas físicas, psíquicas e sociais da mulher após o nascimento de seu bebe) e retorno ao trabalho após 6 meses, foi um período de cansaço, medos, bloqueios, limitações, ansiedade…dentre tantas outras questões. Foi criando imagens por meio de ações relacionadas ao tema, seja de um vídeo-poema ou de uma performance usando meu próprio corpo, que algumas vezes consegui gerar escritas, na pesquisa e na poesia. E vejo muito no meu processo este caminhar junto da palavra com a imagem. Ora a imagem vem de registros de escritas, ora a escrita surge de registros de imagens. E a meditação como um canal, uma ponte que conecta estes dois.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão já foi um processo mais ditado por mim, no sentido de revisar algumas vezes para depois publicar algo. Atualmente tenho feito menos devido ao tempo, mas tenho compartilhado eles antes com amigos e estes muitas vezes me apoiam neste processo de revisar, e acho importante ter o olhar de outras pessoas, pois às vezes ficamos tão dentro da escrita que para nossa cabeça está tudo claro, pois está ali o processo todo, e com o olhar de fora, muita coisa vem à tona. Em meu último processo, que foi na organização do meu livro de poesia que será publicado neste ano de 2021, consegui criar um cronograma para revisão, criando uma data limite junto à editora. Mas acho que o processo mais difícil da revisão é abrir mão após algumas vezes revisado e não virar uma obsessão.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Antigamente meus processos de escrita eram todos em cadernos variados, ou seja, totalmente desorganizado, muitos poemas se perderam desta forma, algumas vezes conseguia concentrar poemas em um caderno e pesquisas de processos em performance em outro, mas na maioria das vezes estava tudo misturado, então deixei de me forçar ter um caderno para poesia e outro para as performances, até porque se são bem próximos, quando não juntos. Me deslocando diariamente antes da pandemia em transporte público escrevia muito nestes cadernos, às vezes parecia até uma obsessão. Durante a gravidez eu dava aula, e levava 2h30 para ir e 3hrs para voltar, no transporte público, trem e ônibus eu escrevia freneticamente em cadernos. Depois de ter as bebês, em casa e com elas quase sempre mamando, passei a usar com mais frequência o bloco de notas do aparelho celular e a nota de voz, tanto para o processo de escrita da monografia da pós-graduação como para os poemas e projetos em performance arte. O computador costumo utilizar no processo da escrita mais para a reorganização de todos estes fragmentos que se juntam no aparelho celular e para as revisões e finalizações.
Mas tenho como principal aliado neste momento o aparelho celular e o bloco de notas, onde consigo anotar ideias, poemas, referências, entre outros processos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As minhas ideias vem por aquilo que atravessa meu corpo, seja fisicamente, psicologicamente ou socialmente. São imagens, sons, cheiros, texturas, lembranças, falas, sentimentos. Parte principalmente do vivenciar, experienciar algo. A partir desta experiência que atravessa meu corpo surge uma imagem ou algumas palavras, dependendo da imagem foco em processos de performance, vídeo-arte ou poema-visual, após a imagem ser visitada ou revisitada pelo meu corpo, surge uma escrita. Noutras vezes surge uma escrita e após estruturá-la pode ser que surja uma imagem. Talvez o hábito que eu mais cultivo é a percepção, consciência sobre o que vivencio, sobre o que me rodeia, que vem através do hábito de meditação e performance, processos que sei que me reorganizam para que eu possa produzir, sendo o próprio ato da escrita para mim um processo de meditação e que trouxe para algumas de minhas performances duracionais.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Nossa, mudou muita coisa. Como eu estava no processo de escrita do meu primeiro livro de poesia, revisitei muitos poemas, e como é bom amadurecer, como é bom vivenciar tantas coisas através dos anos por meio de encontros, desencontros, viagens, experiências…vejo que amadureci bastante, tanto nas estruturas de meus poemas, como também em seus temas. Talvez daqui há 30 anos eu olhe de novo para o que escrevo hoje e fale algo parecido. Mas hoje vejo que tenho um olhar mais amplo sobre o que atravessa meu corpo de mulher não branca, artista educadora e mãe, por dentro e por fora.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Escrever um segundo livro de poesia e contos sobre os processos da maternidade, sobre as alegrias mas também as tantas sombras que não são faladas numa sociedade que só romantiza estes processo e invisibiliza as mães em suas realidades intensas. Ah e o clássico projeto de “ter uma casa no campo onde eu possa compor muitos – poemas”.
Acho que esta é uma das perguntas mais inspiradoras que já ouvi “Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?”, a mente vai longe, revisitando o que já li, o que já li e esqueci, o que já li esqueci e preciso reler e o que ainda não consegui ler e quero. Mas neste momento quero ler um livro que conte a história de um Brasil possível, principalmente para quem sempre foi colocado à margem de nossa sociedade. Quero poder abrir este livro, não de ficção, mas de histórias reais, histórias escritas por quem faz a história acontecer para uma maioria que é colocada como minoria e não para uma minoria que é colocada como maior.