Vinicius Ferreira Barth é escritor e ilustrador, doutorando em Estudos Literários pela UFPR.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo tomando dois copos d’água e batendo um suco verde: uma folha de couve, um pedaço de gengibre, uma rodela de limão com casca e tudo (nesses dias estou usando o limão galego), um terço de manga (quanto mais doce ela estiver, melhor fica o suco), uma maçã e 500ml de água. Depois disso: uma banana picada com iogurte e granola, e finalmente um café com leite (mais café do que leite) e duas torradas com manteiga.
Bom, tirando isso… Eu não tenho uma rotina mas gosto muito da disciplina (coisa que eu nem sempre tenho). Minhas manhãs ideais começam indo dormir cedo no dia anterior, e são aquelas em que, tal como neste exato momento, eu sento pra trabalhar até as 7h30, depois de ter tomado um café demoradíssimo e rezado pra todos os santos. Esse momento, até meu estômago fazer soar o gongo do intervalo (perto das 11h) é muito produtivo, seja para fazer o que for. Aí paro absolutamente tudo, ligo uma música, faço o almoço dançando e dublando alguém como o Paul McCartney ou a Marina Lima, eteceteras e coisa e tal, até chegar na hora da verdadeira luta: render algo que preste a partir do começo da tarde.
Um parêntese: (acho de uma beleza imensa a rotina de pessoas como o Immanuel Kant, com seus passeios mais pontuais que os relógios da igreja, ou do Humboldt, citado nas respostas dadas para esta mesma entrevista pelo grandioso Rodrigo T. Gonçalves. Mas não pretendo ser uma máquina infalível, e embora aprecie a disciplina envolvida na construção da rotina, ainda assim gosto de deixar as portas abertas para a possibilidade do desconhecido e do imprevisto. Querendo ou não, vêm daí os mistérios da Literatura – pelo menos pra mim).
A pior sensação possível dentro de uma rotina produtiva é a de acordar depois das 9h-10h – estando de ressaca, pior ainda; o que não é incomum, absolutamente. Perde-se muito tempo do dia, justo na hora mais produtiva. (embora o efeito possa ser amenizado, dependendo da qualidade da noite anterior).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A minha rotina matinal, quando bem estabelecida, engloba a minha melhor e mais atenta produção. De manhã sou capaz de fazer tudo.
Meu ritual de preparação para escrever envolve: ter à mão todos os materiais necessários, sejam eles de referência, dicionários, anotações, textos de gente que vou copiar sem ninguém saber; e alguma bebida – a linha temporal dentro do dia, que separa o café de alguma bebida alcoólica, é muito tênue. De qualquer modo, preciso ressaltar que a escrita acadêmica é, nessas horas, muito mais sóbria e metódica do que a efusiva, sentimental e ébria produção literária (que pode, inclusive, acontecer em qualquer horário). O que não quer dizer que esta não seja igualmente séria, cerebral e erudita.
Por fim, preciso estar sozinho. Qualquer pessoa por perto nessas horas, mesmo que esteja apenas respirando ou existindo, me desconcentra e me irrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
No mundo ideal tudo mundo tem uma meta diária. Mas eu sou desses que produzem apenas quando a água bate na bunda. O lado bom disso, no meu caso, é que eu produzo fantasticamente bem quando chego nesse ponto, e a partir daí constrói-se, como que por obrigação, a mão de ferro da rotina – e para mim ela é extremamente bem-vinda. Lido demasiadamente mal com prazos longos, e quando não há uma previsão de entrega dos meus trabalhos eu dificilmente consigo estabelecer uma produção concentrada e diária.
Há épocas em que não sou capaz de ler uma única página. Quem dirá escrever.
Mas a absorção de conteúdos pode vir de qualquer lado. Da música, do filme, do pé de mexerica. Escrever é estar atento pra rua, pro mato que cresce na esquina, pro velho de chapéu que está parado todo dia no mesmo lugar, sabe deus por que. Enfim, estar atento pra vida.
Na verdade, me identifico muito com a filosofia de trabalho descrita aqui pelo Caetano Galindo, principalmente no sentido de ficar em paz comigo mesmo e saber respeitar os modos como o meu corpo funciona melhor, sem tentar me encaixar numa rotina “ideal” proposta por outro. Não importa como, mas nunca deixei de cumprir um prazo. Assim como o Caetano, sou desses que podem ficar maturando uma ideia dentro da cabeça durante anos.
Tal como a Clarice, estou longe de ser um escritor “profissional”.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É difícil começar, sim. Eu fico muito tempo – tempo demais, até – farejando os entornos do texto, flertando pra ver se ele me olha de volta e dá um sorrisinho – seja acadêmico ou não. Não sou do tipo de fazer muitas notas. Faço, no máximo, um esquemão, um esqueleto que vai ficar pendurado na parede à minha frente. O resto vem através da prática. Eu escrevo e o texto me responde. Eu tenho uma ideia e é ele que me diz se ela anda ou não, se se encaixa ou não, se é válida ou não. Para mim a escrita é uma atividade que passa diretamente do mental para a sua execução quase em estágio final. As anotações apenas auxiliam quando a estrutura do texto passa a ser mais complexa.
É semelhante ao modo como trabalho com meus desenhos em nanquim, já que sou muito impaciente para estruturar as imagens e fazer os esboços a lápis. Tento passar por isso o mais rapidamente possível, embora nunca de maneira irresponsável. A grande diversão e o grande tesão começam passando a tinta, correndo o risco do traço e de um erro permanente.
Ou seja, é um processo perigoso, furioso e obcecado, uma vez que eu esteja finalmente no clima. Mas quando a cabeça entra nisso eu não penso em mais nada. E o texto (ou o desenho) vem como uma beleza.
E sai, porque sempre dá certo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Vamos por partes.
Já tive mais crises com as “travas da escrita” pelo sentimento de culpa que é comum nos acometer nessas horas. Mas como disse mais acima, já aprendi a respeitar o meu tempo e as minhas diferentes épocas, e me sinto bem quando sento pra escrever estando totalmente disposto e preparado – às 7h30 e tomando um café, né. Mas num projeto muito longo como é o da minha tese – de tradução integral das Argonáuticas de Apolônio de Rodes, que beiram os seis mil versos em grego antigo – não posso dar muita liberdade pra esse “tempo”, e a prática deve ser diária – atualmente numa média de 20 versos diários/100 semanais.
No modo como eu vejo, a prática de escrita acadêmica e a de escrita literária separam-se completamente nesse aspecto de “trava”: na escrita acadêmica, a trava é falta de preparo; na escrita literária é falta de maturidade. Em ambas, uma certa falta de disciplina.
A procrastinação é uma coisa que me atinge vez ou outra, principalmente quando eu tenho prazos muito longos. Ela é essa sensação de que “tenho tempo o suficiente”, e é mais prejudicial que as “travas da escrita”, mas some completamente quando meus prazos começam a enforcar.
Olha… Quando eu me coloco nessa ingrata posição de escritor, são três as afirmações que me surgem para responder uma questão que cruza o meu caminho, seja ela qual for: eu vou responder, eu devo responder, eu devo ser capaz de responder.
Eu não gosto de escritores que mantêm para si mesmos o complexo de prima donna do “tormento”, da masturbação e do “sofrimento” por causa de sua atividade intelectual, e que a partir disso não conseguem se ver, se entender e nem lapidar as suas questões internas mais complexas, mesmo sendo alguém que tem como ofício o trabalho com o texto. O que eu quero dizer com isso? Que qualquer artista que se preze deve saber pensar e falar a respeito de si mesmo; sobretudo o escritor. Este domina o Verbo, não o contrário. Acredito que alguém que não consegue encarar as suas próprias polêmicas e guerras mais íntimas não está autorizado a denominar-se como artista. Vejo que alguém que se coloca como escritor deve dominar a atividade da escrita como se estivesse num atelier, assim como o desenhista é o senhor do carvão e do papel, o escultor é o senhor do bronze e da pedra, o Van Halen é o senhor da guitarra, e etc., etc. Isso envolve expectativas, prazos, uma boa ideia do resultado final – mesmo que esse resultado se transforme no percurso – e paciência. É a nossa obrigação desvendar tanto o “o que” quanto o “como”.
(como editor da R.Nott Magazine, já entrevistei poetas que eram incapazes de responder objetivamente a qualquer questão, seja ela relacionada a temas, projetos, processos, o que fosse.
Isso me irritava).
Em resumo: como coeditor do blog escamandro eu aprendi a subir e respeitar as minhas expectativas (acima de tudo as minhas, não as dos outros) ao máximo possível, dando conta delas com maturidade. Como tradutor das Argonáuticas e como ilustrador de Pripyat (poema de Guilherme Gontijo Flores que estou terminando de ilustrar) eu descobri que amo projetos longos, e irei sempre torná-los os mais grandiosos que a minha capacidade permitir.
Acho que é daí que surge um trabalho relevante e valioso, seja artístico ou acadêmico.
A vida é muito curta pra baixas expectativas e projetos medíocres.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Penso que textos acadêmicos devem ser revisados sempre e com muita responsabilidade, tanto por nós como pelo nosso orientador. Isso é um trabalho sério e deve ser visto de tal modo. Prezo muito mais a qualidade do conteúdo que os grandes volumes de texto.
Sobre textos literários…
Não costumo revisar muito, não… É um trabalho sóbrio demais pra mim. Não gosto de revisar e não gosto quando revisam pra mim. Escrever é um processo muito puro e muito consciente. Como mencionei acima, a elaboração mental é uma fase importantíssima dentro da minha produção, o que cria um texto já muito próximo da sua forma final, e eu sou do tipo de escritor intimamente ligado à forma e ao ritmo. Qualquer revisão que altere a sonoridade de uma parte que julgo importante pode acabar sendo descartada de imediato.
Por isso, quando reviso, costumo fazê-lo na hora, antes de passar para a próxima sentença. No fim do dia deixo umas horas o arquivo pra lá, esfrio a cabeça, depois leio de novo (muito dessa entrevista, por sinal, está sendo mudado agora, às 19h12). Ou no dia seguinte. Tá bom? Tá bom para as minhas expectativas? Tá. Vamos adiante. Aquilo já é passado. Claro que, pra chegar nesse ponto, é necessária alguma experiência e maturidade pra saber se o que foi escrito presta minimamente.
Odeio revisões de textos que já escrevi há muito tempo. Porque já são de outra pessoa.
Mostro minha produção em curso para pouquíssimas pessoas. São aquelas dos elogios e críticas honestas, pessoas que elegi como mestres e mentores na vida, como meu orientador e meus colegas de outras artes – não gosto de colegas do “meio” literário, e nem de saber de seus costumes. Aprendo mais com os pintores.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Para textos acadêmicos eu uso exclusivamente o computador, já que são textos que exigem inúmeras revisões, notas, reescritas, inversões, etc. Curiosamente, meu orientador, o excelentíssimo professor Alessandro Rolim de Moura, faz todas as revisões apenas no papel.
Para textos literários eu prefiro escrever no papel e estando fora de casa, em ambientes movimentados – ver pessoas em seus movimentos caóticos me ajuda a compreender as diferentes histórias e a pensar. Acho que meus melhores textos nasceram no papel, para serem (di)lapidados posteriormente no computador. De qualquer modo, são sempre esboços e rascunhos de ideias. A escrita no computador facilita a edição de uma ideia que já começou a tomar forma de maneira selvagem, livre e furiosa. Não sou anacrônico o suficiente – nem hipster – pra escrever um romance todo no papel. Editar no computador significa tornar o meu texto melhor.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Olha cara… (vou te responder como se estivéssemos no bar, ok?).
Esse “conjunto de hábitos” é um modo de vida, simplesmente.
Ele está longe ser um modo absoluto e arbitrário. É apenas o meu.
Então… Para mim não há outro modo de viver se não for entre textos, artes e culturas de onde quer que seja. Estar aberto a todo tipo de experiência intelectual e estética que meu cotidiano possa me proporcionar, desde “procrastinar” vendo um filme do Bergman, desde parar numa esquina no centro da cidade ao meio-dia dançando Smooth Operator da Sade enquanto os carros passam e te olham, até ficcionalizar uma possível história de vida pra tia velha de vestido roxo que sentou-se à minha frente no ônibus enquanto eu escuto um disco do Savatage.
Puxar ferro como um marombeiro pode ser uma experiência estética.
As ideias vêm de tudo, depende de estar aberto para absorvê-las e saber como transformá-las em matéria textual. Em saber como contar a história. Pra mim não faz sentido sair de uma rotina para “parar e apreciar/consumir arte”. Essa apreciação está entranhada em tudo.
Eu sempre pensei que… a não ser que fôssemos o Proust – o que é bem difícil – nosso umbigo e nossa subjetividade não são matérias suficientes para a produção de arte e de literatura. Existe uma tendência rolando por aí de literatura egoica, de literatura/arte subjetivas em demasiado, de “querido diário”, literatura dos “meus sentimentos”. Caguei pra isso. Quanto menos universal a arte, mais descartável e mais irrelevantemente egoísta. O contexto – e a sensibilidade a esse contexto e às suas questões – é que nos mantém criativos e, mais que isso, relevantes.
(o que quero dizer é: como não ser Patti Smith após morar no Chelsea Hotel?)
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Em termos de academia – estou trabalhando em minha tese agora – o que mudou de tempos pra cá foi o tremendo amadurecimento do pensamento crítico e um entendimento muito maior do que significa a pesquisa em filologia clássica e a tradução de um texto importantíssimo como são as Argonáuticas. Se meu Eu futuro voltasse pra me dizer algo agora, gostaria que dissesse “Força, mermão”.
Em termos literários, posso apenas dizer que fico contente ao rever a pequena história de minha produção, e bastante aliviado por ter tacado no lixo o que não prestava. Meu livro de contos intitulado Razões do agir de um bicho humano (Confraria do Vento, 2015) mostra a melhor literatura que eu pude produzir numa fase completamente distinta da que eu vivo hoje, e eu reconheço e me orgulho disso. A produção de hoje não é melhor nem pior; é inevitavelmente diferente – e mais madura.
E ao rever o material que compõe o livro de poemas e ilustrações chamado 92 receitas para o mesmo Molho Vinagrete, cuja composição já dura uns dez anos (e será publicado muito em breve pela Contravento Editorial), fico contente vendo que fui capaz de manter apenas o que se realmente devia se salvar, assassinando sem dó meus versos capengas e meus versos ruins. Vejo textos escritos numa juventude incontrolável e leio-os com surpresa, tal como se fosse o meu Eu-futuro olhando agora para o Eu-passado, pensando que “Era bom esse guri de bosta!”
É o livro de poesia que eu realmente gostaria de encontrar nessa vida – já adiantando a pergunta abaixo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou na fase de concepção de um romance, que representará a minha entrada num novo estágio de maturidade literária. Essa maturação tem demorado alguns anos. Boas ideias estão surgindo mas ainda não estou bem preparado para esse livro que me espera. Pra chegar lá preciso também trazer conclusão a todos os trabalhos que estão em andamento e dar uma forma, finalmente, ao meu Apolônio de Rodes traduzido. Enfim. Uma coisa de cada vez.
Gosto muitíssimo da frase de Kafka para Oskar Pollak que diz que devemos ler apenas os livros que “nos mordem e aferroam”. Foi uma alegria imensa quando alguém, resenhando um livro meu, fez referência a essa mesma frase para falar de minha literatura.
É isso, por fim, que estou sempre buscando.
E tal como disse o Caetano Galindo, eu estou sempre escrevendo o livro que eu gostaria de ler.
Outros autores do passado já me deram ferramentas. Ir além deles diz respeito só a mim mesmo.