Caetano W. Galindo é professor da UFPR e tradutor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu acordo às seis, como quatro colheres de sobremesa de granola com três colheres de leite. Faço uma xícara de café e venho com ela para o computador. Termino a entrada do meu diário referente ao dia anterior e abro a de hoje. E-mails. E aí o que estiver pela frente… Se não for dia de dar aula cedo, fico direto na frente do computador até a hora de sair para passear com o cachorro, antes do almoço (minha mulher fez o primeiro passeio do dia). Se eu estiver em algum projeto que me deixa muito empolgado, ou muito apertado de prazo, posso ir direto para esse trabalho, sem nem passar pelo diário e pelos e-mails. Nesse horário, se houver necessidade, eu sou capaz de ser muito concentrado. Sou capaz de entrar direto no trabalho sem precisar pressurizar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu funciono bem direitinho de manhã e, depois do almoço, até lá pelas três… depois fico lento. Quando eu volto a trabalhar de noite pego de novo uma janela boa, até tipo nove e pouco. Tenho ritual nenhum. A não ser a xícara de café. Aquela da manhã e outra depois do almoço. Ah! E a mesa arrumada. Eu gosto de estar com a mesa sem quase nada em cima. Bem livre.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende. Eu escrevo alguma coisa todo dia. Tipo todo santo dia mesmo. Entre textos acadêmicos, colunas de imprensa (hoje só na internet), ficção (muito raro) e as traduções, eu sempre estou escrevendo alguma coisa. Mas não tenho metas por dia. Tenho prazos. Deadlines. E me viro com eles como forem vindo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A coisa toda funciona meio em segundo plano para mim. Mesmo quando eu estou pesquisando especificamente para alguma coisa maior, eu raramente tomo notas, ficho textos, preparo documentos. Eu funciono tipo estalactite. Eu vou lendo, vou acumulando informação. Vou deixando as coisas passarem por mim. E vou meio que vendo o que fica. A coisa vai formando um agregado com que eu começo a lidar ainda em segundo plano. Sem montar esquemas, sem esboçar textos. Eu só começo a ir concebendo os caminhos do texto. Tomando banho. Andando com o cachorro. Eu começo a entrever estruturas, rotas retóricas, abertura, transições. Isso pode durar muito tempo. Dias. Semanas. No caso de ficção, teve um conto que viveu assim comigo por mais de sete anos. No caso da tradução de poesia, fico com estrofes decoradas e tentando achar soluções de rima. Aí, quando eu sento a coisa tende a ser muito rápida. Eu “escrevo” geologicamente devagar. Mas eu “redijo” muito rápido. Aquele conto dos sete anos ficou com a primeira passada pronta em menos de uma hora e meia.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu trabalho e cumpro prazos. Como der. Sempre. Eu tendo a gostar da pressão, do prazo, da pressa. Tende a me deixar pilhado. Mas tenho que confessar que recentemente, no caso da tradução da poesia de T. S. Eliot, a responsabilidade, a enormidade da tarefa me deixou travado por meses a fio. Precisei pela primeira vez de uma “terapia”. Precisei traduzir um poema (“Oh, the places you’ll go”, de Dr. Seuss) como que para me “provar” que ainda sabia traduzir poesia rimada e metrificada. Fiquei quase uma semana lidando com o poema. Depois disso, e de ter chegado a um resultado bem decente num projeto que, curiosamente, eu vinha acariciando há uns cinco anos, pude voltar ao Eliot, e aí produzi um primeiro copião de quase todo o volume em cerca de um mês.
Agora, especialmente no caso das traduções longas, eu venho notando há anos uma coisa estranha. Rola um frisson, claro, para começar. Primeira página. Rola uma sensação de “quando é que eu vou dar conta de fazer isso tudo”. E quando você acaba, com isso de traduzir nas “horas vagas” da universidade, sempre rola uma sensação de “quando foi que eu dei conta de fazer isso tudo”.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu tenho meio que um esquema. Eu tendo a escrever “limpinho” em termos de estrutura. E tendo a traduzir deixando já uma versão também muito limpa na primeira passada. O que eu quero dizer com isso é que a revisão inicial, portanto, tende a se concentrar em arestas, aparas, não em “reescrita”, reconcepção estrutural ou sintática, nem em preenchimento de lacunas ou resolução de indecisões. O texto, uma vez escrito, tende a estar “escrito”.
Mas essa primeira revisão é obrigatória, de picuinhas. Sempre. Uma segunda tende a me deixar feliz, mas no caso das traduções mais longas ela acaba sendo normalmente uma passada por ctrl+f, a partir de uma lista que eu vou gerando durante a primeira. Nos textos acadêmicos (sejam eles palestras ou artigos) eu idealmente prefiro que essa segunda revisão seja uma leitura em voz alta. E aí eu uso uma terceira para redigir mais notas de rodapé (as que eu escrevo direto tendem a ser as discursivas) e montar a bibliografia. No caso das traduções, a leitura em voz alta só se sustenta nos textos mais curtos, no entanto. Para citar de novo o “projeto Eliot”, ele foi inteiro lido em voz alta: poemas e posfácio.
Nem sempre eu passo os textos por outros leitores. Normalmente é tudo muito em cima da hora. Mas quando posso passo pra Sandra (Stroparo), minha mulher, que também é professora aqui no curso de Letras da UFPR.
Mas depois da entrega, conto com toda e qualquer colaboração. Preparadores, revisores, editores… acho um privilégio e uma felicidade ter gente ajudando a melhorar o texto. E tendo a trabalhar muito bem com eles.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Totalmente carbono livre. Só escrevo no computador ou no celular. Só uso dicionários e fontes online. Eu tendo a pesquisar online (para montar bibliografias, por exemplo) até livros que às vezes estão a meio metro de mim, aqui na estante.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu meio que acredito (para uso interno: não sei se recomendo isso) nessa certa “indisciplina”. Eu leio muito, muito irresponsavelmente. Ouço muita música, tento ver muitos filmes. Sempre numa espécie de diletantismo. Sempre por e com tesão. Tendo a ser muito ruim de cumprir obrigações de leitura, por exemplo. Para mim funciona. Eu vou agregando coisas e pensando em coisas, muitas, meio que simultaneamente. Boa parte das ideias que nesse tempo vão me surgindo eu acabo esquecendo, e faço as pazes com a suposição de que se elas foram esquecidas era porque não valiam a pena. Ou porque não estava na hora. Já as que vão ficando, ou as que voltam de repente, vão ganhando corpo daquele jeito meio calcário, meio micótico… e as coisas, nessa irresponsabilidade, vão meio que se interfertilizando de uns jeitos divertidos. Eu acho.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Eu fui ficando mais em paz com como eu sou mesmo. Acho que é sempre assim. Você vai entendendo como funciona a tua própria cabeça: linguisticamente, estruturalmente, profissionalmente. E se tudo der certo você vai encontrando maneiras de transformar as tuas características em formas produtivas de trabalho. Você aprende a dormir com a tua corcunda.
Se eu pudesse voltar a conversar comigo mesmo lá em 2006, quando entreguei a tese, eu só diria “faça menos força”… não tente ser original, pense mais no leitor e menos em você.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ih! Pilhas de projetos. Queria escrever um romance um dia. Tem tanta coisa que eu quero traduzir…
Queria ler os livros que eu podia escrever, porque é só esse valor que eu acho que eles podem ter, o valor de serem coisas que eu queria ler e que se eu não escrevesse ninguém mais escreveria para mim. Se mais alguém gostar é bônus, mas eu não ouso contar com isso.
Pode ser que eu escreva um romance baseado na minha própria incapacidade de contar a história do meu avô materno. Eu queria.
Quero ler um livro que o meu irmão está escrevendo. Quero ler um livro que eu deveria neste momento estar escrevendo com a minha mulher.