Rodrigo Tadeu Gonçalves é professor de Língua e Literatura Latina na UFPR.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Antes de minhas filhas nascerem e de ocupar um cargo como o que ocupo hoje, de diretor da Editora UFPR, meus horários variavam como o da maioria dos professores universitários, então muitas vezes eu conseguia ter rotina fixa para trabalhar (com escrita, tradução, leituras – essas que de fato ocupam a maior parte do tempo). Hoje em dia, a rotina é inversa: somente após o expediente administrativo e o expediente familiar, depois que elas vão dormir, é que consigo sentar para trabalhar. Isso aumenta a jornada diária, e muitas vezes diminui a capacidade de concentração. Rendo muito mais pela manhã, especialmente para tradução (estou envolvido num projeto enorme, o da tradução do De Rerum Natura de Lucrécio em hexâmetros datílicos brasileiros, o que geralmente só funciona se eu trabalhar de manhã, com a cabeça mais fresca). Mas como o trabalho noturno tem sido o que consigo realizar com alguma regularidade, a tradução tem sofrido um pouco, e me lancei há um ano na empreitada de escrever poemas. Meu primeiro livro sai em agosto, Quando o verão (Kotter/Patuá), e é resultado de muitas noites em que fui até altas horas sentado na mesma poltrona roxa, por vezes acompanhado de uma heineken.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho que já respondi na primeira pergunta, mas o meu ideal seria ter as manhãs livres, começar bem cedo, com um café preto, e ter muitas horas disponíveis para o trabalho intelectual. Quando era aluno de doutorado, o Werner Heiderman me contou que o Wilhelm von Humboldt saía todos os dias pela manhã com sua esposa para caminhar no bosque de seu castelo (posso estar romantizando ao recontar), e logo depois entrava no seu escritório, em que umas sete escrivaninhas diferentes abrigavam pilhas de materiais sobre assuntos diferentes (basco? kawi? chinês?) e ele escolhia a mesa em que ia trabalhar conforme sua disposição naquele dia. Como essa fantasia aristocrática não está disponível para praticamente nenhum de nós, contento-me com as sobras dos dias (sem que isso deixe de me angustiar um pouco, claro), e com trechos de tempo mais entrecortados e de tamanho variável. Hoje em dia o ritual é tentar abandonar as distrações como as redes sociais, entrar no espírito da concentração monotarefa e torcer para que dê certo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Um pouco como decorrência das circunstâncias que já expus, não consigo ter regularidade. Mas olhando para trás, percebo que mesmo quando tinha de fato tempo livre eu não tinha regularidade. Um exemplo: com o Lucrécio (que tem quase 7500 versos), o ideal seria conseguir traduzir uns 20 ou 30 versos por dia, ou mais (em dias empolgados, cheguei a 100), já que tenho que traduzir nas “horas vagas”. Em alguns períodos, como uns meses antes de nascer minha filha mais nova, eu consegui a regularidade obcecada de traduzir todos os dias um mínimo de 20 versos, anotando na agenda diariamente quantos e quais versos eu traduzi, como um exercício de estímulo e punição que me motivavam. Contava os meses para acabar, pois a conta era simples. Após o nascimento, passei meses sem conseguir abrir o arquivo. Outra história: mestrado e doutorado eu fiz trabalhando, sem licença. Então eu aproveitava feriados prolongados para escrever em pequenos intensivos. O resto do tempo eu lia tudo que precisava, riscava os livros e papeis, relia, riscava de novo, grudava post-its. Sem notas manuscritas, sem fichamentos. Quando surgiam os retiros de escrita, de 3, 4 ou 5 dias, eu escrevia quase tudo. Dezenas de páginas por dia, em fúria. Talvez não seja o ideal, e não recomendo aos meus alunos e orientandos, mas era o que eu podia fazer. Sempre penso que o ideal para alguém ansioso e obcecado é ter metas semanais anotadas numa agenda e ir riscando cada meta conforme o tempo permita, mas nunca deixando acumular para a semana seguinte. Assim eu consegui lidar com mestrado, doutorado e, depois, pós-doutorado, que fiz na França. O sistema era parecido: listas de coisas a ler por semana, ida diária à biblioteca da École Normale de Paris, mas, quando chegou a hora de escrever, janelas trancadas no studio onde eu morava, sem ver a hora, varando dias e noites. Assim surgiu o livro que publiquei na Inglaterra em 2015: Performative Plautus: sophistics, metatheater and translation. De lá pra cá, nenhum projeto foi tão intenso. Tudo foi mais esparso e os períodos de internamento de escrita desapareceram, ou rarearam.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Percebo que estou respondendo as perguntas seguintes sempre na anterior. Isso demonstra uma certa falta de planejamento que aparece na minha escrita. Como eu disse, raramente tomo notas escritas. Sempre risco os livros, com estrelas, asteriscos, uma, duas ou três linhas verticais ao lado dos parágrafos importantes (quanto mais riscos, maior a chance de a passagem ser citada e comentada, por exemplo). Por isso gosto de ter os livros. Quase todos os meus livros importantes para a pesquisa ou para a criação têm um lápis dentro. E lá eles ficam. Faço coleção de lápis. Quando é chegada (ou se me oferece) a hora de escrever, pego os livros todos, olho por cima para achar as passagens riscadas, reconstruo o meu percurso mental ao riscar tudo aquilo, e algo sai. Nem sempre me orgulho do que sai, mas sai. Um exemplo curioso foi o livro Algo infiel: corpo, performance, tradução, que co-escrevi com o Guilherme Gontijo Flores. Era um projeto de diversão. Queríamos escrever sobre nossos temas fundamentais de modo leve, agradável, sem fio condutor. Combinamos de escrever nas férias de julho (acho que em 2016). Cada um escreveria alguns textos e depois o outro leria e complementaria. Naturalmente, o Guilherme escrevia sem parar e eu me desesperava, pois não conseguia acompanhar seu ritmo. Por ele, o livro teria umas 800 páginas (ficou com quase 400). Mas as ideias iam pro papel sem planejamento. Alguns textos eram muito curtos, outros bem mais longos. Alguns textos não eram nossos, e só revelamos nas notas ao fim do livro. E aquilo virou mosaico-pandemônio que se completou com fotos do nosso amigo Rafael Dabul, que leu tudo, chamou os modelos para um estúdio e fotografou o que ele via no livro. Esse talvez tenha sido meu projeto mais interessante e agradável de conceber.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sei. A vontade era deixar essa resposta assim mesmo. Mas são muitos modos. Força de vontade (essa é bem rara), tabaco, álcool, análise, corrida, insônia. Essas são algumas das muletas, mas, na verdade, acho que ninguém consegue lidar bem com essas ansiedades todas. Elas são parte constitutiva do processo de escrita. Pelo menos quero crer que são, e que são para a maioria de nós. A maior ansiedade mesmo é a de trabalhar em projetos longos. No meu caso, particularmente, como os slots de tempo são variáveis, gosto de projetos que eu consiga concluir de uma tacada só (ou até umas três). Aí me sinto realizado. E logo aparece outra coisa. Ou várias. Então, no fim, parece que essa carreira é mesmo bastante penosa. Muita gente sofre bastante na academia. A pressão é grande, a expectativa de impacto, internacionalização, quantidade e qualidade de produção é muito grande. Tento não sofrer demais. Mas, no fim, é uma carreira que me dá prazer.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não gosto de revisar meus textos. Não gosto de ler meus textos. Não gosto quando pedem muitas alterações no meu texto. Mas especialmente a leitura de pares, anônimos ou amigos sinceros, é o que torna a coisa toda útil e interessante. Quanta coisa a gente acha que é incrível mas é na verdade uma bobagem ou, no máximo, medíocre? Vejo as coisas que já publiquei quando aluno e sinto que muito daquilo não merecia ser publicado. Mas todos precisam publicar o tempo todo. É difícil achar o equilíbrio. É difícil ouvir críticas severas ao seu trabalho, mas elas são fundamentais. Por isso o sistema de blind peer-review é muito importante. Mas as experiências mais enriquecedoras que já tive com edição e revisão de meus textos vieram com colegas de fora do país. A academia é diferente em vários lugares. Alguns de meus textos publicados nos Estados Unidos ou na Inglaterra passaram por uma quantidade de revisões e idas e vindas que eu não consigo nem descrever direito. Dois exemplos: um capítulo meu que saiu no livro Women in Roman Republican Drama, editado por Dorota Dutsch, David Konstan e Sharon James, falava de uma ópera joco-séria do Antonio José da Silva, O Judeu, um dramaturgo português do século XVIII que nasceu no Brasil e foi levado com a família para Portugal pela Inquisição por “práticas judaicizantes” (depois de preso duas vezes, foi queimado em praça pública). O texto tinha muita coisa que os leitores anglófonos não conheciam: a própria peça, uma versão do Anfitrião de Plauto, é enorme e não circula muito em outras línguas. Eu tentava escrever para ajudar o leitor de lá a entender por que aquela peça em português era tão importante, mas precisava contar o enredo, explicar tudo, traduzir passagens, comentar um monte de bibliografia. O texto foi e voltou lido e comentado pelos editores umas dez vezes, sem exagero. Eu entrava em desespero ao ver a quantidade de caixas de comentários do editor de texto por página, em média meia dúzia, totalizando centenas. Não eram leitores hostis, mas não eram condescendentes. O processo todo foi extenuante, demorou meses, muito diferente do que eu estava acostumado. Muitas vezes eu me senti um completo iniciante, incapaz, burro até. Me revoltava. Coisas que tinham sido cortadas em versões anteriores passavam a ser exigidas depois, e não por inépcia dos leitores, mas por que eles queriam que o texto ficasse bom de verdade. O resultado é sempre um alívio. Mas, nesse caso, também é um orgulho. Repeti esse processo diversas vezes, em textos que demoraram anos para serem escritos, lidos, editados, revisados, e que ainda não saíram. Eles trabalham de modos muito diferentes. Um texto com deadline para 2016 vai sair só em 2022, e isso já está no contrato. Mas os deadlines estão lá, e eles nos deixam malucos. Resumindo, acho que me alonguei demais, mas estar aberto para ouvir a opinião sincera de amigos e inimigos é realmente engrandecedor. Os textos precisam disso. Precisam do tempo. Nós precisamos do tempo. E é difícil aceitar ou realizar esse tipo de afastamento quando a pressão para publicar é enorme.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não consigo mais escrever à mão desde os anos 90. Depois de algumas linhas, começa a doer. É uma pena, mas tudo que faço é no computador. Backups constantes, essas coisas. Nada de muito interessante nessa perda triste da relação da mão com o papel e a caneta, mas ao mesmo tempo, hoje, por conta da velocidade da digitação, é difícil, para mim pelo menos, pensar em adaptar o ritmo do fluxo do pensamento e da escrita à manobra fisiológica do escrever à mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Em geral, de leituras. Acho que não dá para escrever nada sem ler bastante. Especialmente na academia. Ouvir os colegas é muito bom também. Dar aulas é muitas vezes um lugar privilegiado para se ouvir e ouvir os alunos e alunas. Muitas ideias vêm de aulas. Quanto à criação, às vezes de ouvir alguma conversa na rua. De ouvir minha filha de 4 anos falar as coisas mais incríveis. Da música. Menos vezes, de filmes ou séries, mas em geral de leituras e de ver recitações, performances, de ouvir a poesia com o corpo, mesmo quando lendo. De deixar aquela voz dentro da cabeça entoar, recitar, gritar o poema. De sentir inveja e espanto com tanta coisa maravilhosa que tem sido produzida na literatura contemporânea, inveja boa que vira motor de imitatio no sentido antigo. Às vezes, aemulatio. De sentir a percussão das aliterações como se fossem parte da música mais ampla (sempre me lembro da série de aliterações em s da música Unless it’s kicks do Okkervil River e me espanto com a cadência daquilo no meio do ritmo meio frenético da banda), de ouvir os ruídos da matéria bruta da linguagem. Do ritmo de Meschonnic. Mas acho que pirei um pouco.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Hoje penso que o que mudou, mudou porque tinha que mudar. Amadureci um pouco, mas os problemas são sempre parecidos. O máximo que eu diria ao meu eu mais jovem é para que ele não se desespere tanto. Meu mentor e eterno orientador, José Borges Neto, era de uma calma monástica. Eu me desfazendo de ansiedade e desespero e ele uma vez disse: “calma, é só uma dissertação de mestrado”. Aí a coisa toda ficou mais fácil e saiu. Às vezes a gente só precisa dessa voz que diga: “se desespere menos. Viva mais”. (Falar é fácil, né).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Terminar meu Lucrécio e traduzir as Metamorfoses de Ovídio também em hexâmetros datílicos (o livro VII eu traduzi para a edição organizada pelo Mauri Furlan que saiu pela EDUFSC; há traduções maravilhosas em andamento. Mas eu queria fazer a minha). Traduzir mais. Conseguir assentar a tradução na minha rotina. Fazer menos coisas e fazer melhor. E os livros que eu gostaria de ler existem, mas ainda não encontrei tempo de ler todos. Ainda bem.