César Augusto Baldi é doutor pela Universidad Pablo de Olavide (Sevilla, España) e professor voluntário da Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Olha, eu sou servidor público de carreira há quase 27 anos; há algum tempo, eu tenho preferido trabalhar de tarde. Desde 1998, pelo menos, de uma forma ou de outra, tenho atividades de docência ou de palestra para compatibilizar com esta jornada burocrática: antes, no TRF4, depois na PGR e, ultimamente, no Executivo. Nos dois últimos casos, com muitas reuniões envolvendo movimentos sociais, pautas de políticas públicas, necessidade de pensar estratégias e mesmo reuniões. A manhã eu costumo utilizar para minha vida pessoal: tomar meu café descansado, resolver problemas cotidianos, malhar, correr, ler algo, etc. E do início da noite até eventualmente a madrugada, me dedicar a escrever algo; paradoxalmente, é depois de 21h que, no geral, eu tenho mais disposição de trabalhar em texto escrito, para produção de coluna ou para revista científica. Não curto, contudo, almoçar ou jantar em lugar barulhento. É um momento que procuro estar mais “zen.”
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como disse, no geral, eu acabo produzindo melhor de noite, preferencialmente depois de jantar ou comer algo. Acostumei-me a dormir muito tarde e acordar razoavelmente cedo; ou seja, tenho uma rotina de dormir poucas horas por noite. Mas há limites: no geral, não passar das 4h para dormir, nem de 10h para despertar. Não tenho nenhum ritual de escrita, mas eu prefiro sempre começar no computador depois de já ter visto as notícias pela internet (não tenho televisão em casa), ouvir músicas, pesquisar arquivos diferentes, ficar, realmente, “ligado” em alguma atividade para produzir melhor. Mas nem sempre, de fato, é assim que funciona: a última coluna do Empório Descolonial, que sai toda segunda-feira, tinha que ser enviada em plena segunda-feira de carnaval! Meio “cruel” esta agenda, não? Mesmo assim, sentei na frente do computador, matutei, pensei, etc e fiz o texto, que, ao final, teve uma ótima repercussão entre leitorxs e divulgação nas redes sociais. Acaba sendo um impacto, às vezes, fora do esperado. E a gente não imagina que determinados temas ou abordagens possam estar inquietando as pessoas, muitas vezes. Pelo menos, o “sacrifício” de estar fazendo isso em pleno carnaval foi recompensado. De fato, escrever as colunas tem sido um exercício gratificante, apesar de ter que cumprir os prazos e pensar “qual será o assunto da próxima vez?” Pessoalmente, gostaria de ter um estilo mais literário, inspirado, por exemplo, em Eduardo Galeano ou Mia Couto, tal como o meu amigo Pedro Brandão ou outros conhecidos meus. Ou em Arguedas, como minha querida amiga Rita Segato, mas as fontes de inspiração já surgiram de músicas, de poemas, de frases ditas por pessoas com quem estava conversando, de bancas de qualificação, de aulas, de exposição de ideias. Não há uma receita que acabe sendo seguida diretamente, e isso, creio, é justamente a parte boa de tudo isso: como consta em texto antigo do Immanuel Wallerstein, “incerteza e criatividade”. Mas um pouco de músicas de cantorxs negrxs preferidxs (Prince, Tina, Sam Cooke, etc) sempre tem sido uma forma de destravar ou mesmo de repensar a forma que vou escrever o texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende do que tenho para fazer. Existem convites de publicações com prazos e, às vezes, concomitantes. Fica difícil trabalhar com raça e gênero num ponto, com jurisprudência da corte interamericana em outro, com mulheres islâmicas para outra situação. E isso é uma questão que, muitas vezes, causa impactos na rotina tanto da escrita, quanto da vida que segue; afinal, temos direito a sair com amigos, beber cachaça, ver filmes, participar de baladas e de aniversários. E não somente os prazos da universidade e das publicações científicas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pessoalmente, eu prefiro me concentrar em determinados dias para escrever – se é algo mais longo, tipo 15-20 páginas – depois que eu já tenho esboçado na minha cabeça como fazer o texto. Assim tem funcionado com as colunas e com todas as minhas publicações. Isso acabou me facilitando a forma de desenvolver o raciocínio e conseguir finalizar as atividades pendentes com menos “desgaste”. Obviamente que o momento do artigo de revista científica envolve uma busca de bibliografia, de selecionar os trechos que vão ser citados ou colocados, a ordem de apresentação, a forma de expor determinados pontos, de desenvolver raciocínios, etc. Mas o processo de escrita, para mim, envolve querer saber onde eu quero chegar com o que vou colocar no “papel”, na tela; o que eu quero destacar, qual a questão que me move para desenvolver o tema. Apesar ser virginiano, sempre tive dificuldades de fazer “fichamentos” de livros; a boa memória, contudo, me auxiliou bastante (tanto que meu professor de introdução ao estudo do direito, Plauto Faraco de Azevedo, duvidando disso, nas primeiras vezes, ficava próximo, nos dias de prova, para verificar se eu não estava “colando”. Rs.). Isso, contudo, depende de pessoa a pessoa: cada qual sabe como funciona melhor, seja por apontamentos, por questões colocadas em rascunho, por enumeração de pontos a tratar ou que não podem ser esquecidos, etc. Ainda bem que não existe um modelo a ser seguido, e que a inovação, a experiência, a capacidade individual, a história de vida de cada um ou cada uma acaba alterando as “regras do fazer”.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sei se tenho medo de não corresponder às expectativas; na realidade, como, quando eu era mais novo tinha uma timidez impressionante, isso acabou, no período acadêmico, talvez tendo efeito inverso. Rs. Se eu digo, hoje em dia, que sou tímido, é capaz de sair uma estrondosa gargalhada por parte de amigsx e alunxs. As travas na escrita sempre podem acontecer: situações pessoais e familiares, momentos políticos específicos (na UNB, teve até um projeto do grupo do Zé Geraldo: como escrever em tempos de golpe?), situações profissionais. Claro que tudo isso pode interferir, de uma forma ou outra, para a produção da escrita. Nunca fico imaginando que tenho a obrigação ou a necessidade de produzir o texto mais inventivo, mais interessante da minha vida cada vez que sou convidado a fazer algum ou que tenho que cumprir os prazos editoriais. A prática de escrever colunas – primeiro no Estado de Direito, depois Conjur, Carta Maior, Carta Capital e, ultimamente, Empório do Direito – fez com que, também, as ideias não ficassem presas, mas em permanente contato com os distintos trabalhos profissionais que executava. É claro que as colunas de cunho mais jurídico-prático ou jurisprudencial foram sendo alteradas, nos últimos, para intervenções de cunho mais político e epistêmico. Os referenciais teóricos e práticos foram sendo, parcialmente, alterados e, com isso, um grau maior de liberdade na escrita vai sendo ganho também. Muitas pessoas – tanto em colunas, quanto na escrita da dissertação ou da tese – acabam ficando “presas” a determinados pontos de vista de determinados autores, e tal situação, muito comum no âmbito jurídico, acaba minando muito da criatividade e da “leveza” na realização do texto. E isso retira muito do “arrojo” que seria possível termos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
No geral, eu sempre leio e releio os textos, mais de uma vez. Claro que sempre depende do tamanho – uma situação é uma coluna de site como Estado de Direito ou Empório do Direito, outra bem diferente é escrever para uma revista científica e toda aquela parafernália de adequação aos parâmetros da ABNT ou mesmo de outros sistemas, o que varia, realmente, de publicação a publicação. Mas eu prefiro, em especial as colunas atuais do Empório do Direito, sempre, antes, enviar para alguém que já faz parte do nosso grupo – atualmente, somos 4 homens e 4 mulheres, o que é raro no meio acadêmico jurídico, em que o predomínio da escrita masculina e branca é praticamente absoluto. Como temos afinidades grandes dentro do mesmo campo teórico – e, eventualmente, também prático, é sempre mais interessante cada qual ler o que será publicado por alguém do grupo. Foi a dinâmica que temos tentado imprimir dentro do “Empório Descolonial”. Até porque tenho insistido – e isso é consenso dentro da maior parte dos coletivos do qual participo – que o conhecimento não pode ser solitário, tem que ser solidário, são redes de afetos, de participações, de experiências, de teorias que vão sendo partilhadas pelos grupos e coletivos para construção de um projeto que não pode ser individual. A universidade, no geral, acaba privilegiando o individualismo ou, paradoxalmente, ao mesmo tempo, a hiper produção, para cumprimento dos requisitos da CAPES, muitas vezes sem maiores questionamentos, inclusive, em relação ao próprio momento de escrita e de partilha, participação, apropriação e renovação dos conhecimentos por parte dos grupos. Como tem destacado o Pedro Brandão, outro parceiro de ideais, escrever é lançar-se, de alguma forma, ao mundo, ser questionadx, questionar-se, renovar-se, abrir-se para uma pluralidade de visões, contradições e sentimentos que atravessam nossas cotidianidades.
O que, para mim, é mais difícil, realmente, é a realização de compilações ou trabalhos coletivos, porque a revisão – nos patamares exigidos por editoras – acarreta um tempo imenso e muita atenção. Mas, nestes casos, verificar o trabalho coletivo é sempre gratificante e saber que a reunião e o compartilhamento de preocupações comuns – ou mesmo divergentes – em relação a determinados temas, é sempre um aprendizado ou des-aprendizado ou mesmo re-aprendizado. Assim foi com as coletâneas “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” e “Aprender desde o Sul”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Bom, em realidade, eu só faço apontamentos à mão quando é para alguma exposição diretamente e ainda correndo o risco de não conseguir decifrar o que escrevi no papel, porque minha letra é absurdamente horrorosa. Rs. Mesmo os apontamentos em monografias, dissertações ou qualificações, eu prefiro fazer diretamente no computador, de forma a ficar registrado e não ter maiores problemas. Acho importante, naquele momento que, para muitas pessoas, é mais tenso, entregar as minhas observações por escrito, facilitando, depois, a leitura e partilha de considerações. Ainda que, eventualmente, eu prefira, algumas vezes, ter impresso o artigo, a coluna ou a referida publicação para olhar com mais calma e verificar o que é possível acrescentar ou reduzir, de forma a tornar a comunicação mais fácil. Apesar de ter vindo do Poder Judiciário (onde entrei em 1989), tenho verdadeiro pavor da linguagem “bolorenta”, rebuscada e cheia de rodeios que é ainda muito comum no meio jurídico. É uma linguagem, literalmente, “engravatada”, em todos os sentidos possíveis. É óbvio que, desde o início, não foi assim, porque a tecnologia alterou muito a forma de relação com a escrita (alguns, como Boaventura de Sousa Santos, em O discurso e o poder, falam em oralidade secundária, para caracterizar os nossos tempos atuais). E as alterações tecnológicas foram bem interessantes nos últimos dez anos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Neste ponto, acho que sou parecido um pouco com a amiga Ana Farranha, fico meio que ligado no 220 e não consigo parar um pouco; na realidade, provavelmente nós dois devemos ser hiperativxs. Teve um aluno em minicurso sobre direitos humanos ano passado na UFG, que disse que tinha impressão de que tinha um portal abrindo permanentemente na frente para ligar ideias e ideias e repensar outros pontos, no próprio momento da fala. Mas acho que isso, para mim, não seria possível se eu não tivesse, por hábito, caminhar, correr ou malhar, momento em que, pessoalmente, talvez seja o que eu fico mais centrado e menos disperso e, provavelmente, por conta disso, seja onde apareçam as ideias mais divertidas ou legais para pensar um artigo, uma coluna ou mesmo uma coletânea de artigos. Quando trabalhava no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, teve vezes que a resolução ou a ideia para a minuta de um projeto de voto para o juiz ou juíza aparecia no momento em que estava correndo ou fazendo alguma atividade física. Daí ocorria a situação – hilária – de ter que pegar algum papel para anotar o que estava pensando, para não esquecer. Mas somente por tópicos ou ideias chave. Aprendi a desenvolver as observações a partir deste tipo de “rascunho”. Mas, de toda forma, que momento mais estapafúrdio para ter algum insight em relação a determinada coisa relacionada ao trabalho, não?
O fato de, desde minha dissertação, ter trabalhado com interculturalidade, me fez sempre ter mais contatos com outras áreas não diretamente “jurídicas”: antropologia, sociologia, história, etc. Desta forma, sempre estive mais aberto a outras formas de conhecimento e, portanto, de maiores estranhamentos. As “caixinhas” que nossos conhecimentos procuram ser enquadrados têm sido, sempre, uma forma de clausura, de novas prisões e de inibir a criatividade. Isso acabou me incentivando a trabalhos diferentes. A experiência profissional em Tribunal, Ministério Público e Executivo – e, portanto, os desafios do dia-a-dia, acabou sendo uma forma paradoxal de não me converter num burocrata e ser sempre questionado para além do que estava acostumado a fazer. Convocaram, sempre, a novos temas e debates.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Acho que muita coisa alterou: desde os assuntos que me interessam, a forma de escrever e mesmo a forma de organizar as ideias. Imagina que ter 21 anos e trabalhar fazendo minutas de votos para juízxs não é a mesma coisa que, com quase 50 anos, estar escrevendo uma coluna – a cada dois meses no Empório do Direito ou no Estado de Direito, para o qual colaborei durante um bom tempo.
E não é a mesma coisa escrever um voto ou um artigo para revista científica com 15-20 páginas do que ter que colaborar para uma publicação com número de caracteres definidos, tipo 3.500 ou 4 mil. No início, nas colunas do Estado de Direito, muitas vezes, eu tinha que ler, reler e verificar as palavras que seriam substituídas, as ideias que deveriam ser suprimidas, os pontos que deveriam deixar para uma segunda vez, etc. Chegava a ter “dramas de consciência” em relação à cota das “reduções”. Isso, por outro lado, vai fazendo a gente pensar e repensar a forma de escrever. Meu pai – e alguns alunos e alunas – tem salientado que eu tenho uma maneira de apresentar as ideias por tópicos – primeiro, segundo, terceiro, quarto, etc. Isso acabou marcando a minha forma de escrever e apresentar as ideias. Algo que, de fato, fui desenvolvendo, inclusive, por conta do número de caracteres. Rs.
De toda forma, isso fez com que a escrita ficasse mais fluida, mais concisa e, ao mesmo tempo, como dizem alguns e algumas conhecidxs, mais certeiro. Com isso, também, vai-se ganhando ideia de que há públicos distintos para distintas formas de publicações ou de comunicações, seja colunas, artigos de revistas, exposições orais, etc. Por outro lado, foi aproximando a exposição escrita da forma de falar, talvez comunicando de forma muito melhor do que antes. Neste processo, a visão da Carmela Grüne, como jornalista e depois formada em direito, no “Estado de Direito”, ajudou muito no processo, fazendo determinadas observações.
Tudo bem que isso já era depois da escrita da dissertação, mas bem antes do término da tese de doutorado. E continuo achando que são, contudo, duas situações bem diferenciadas de escrita e de formulação de projetos a serem desenvolvidos. A dissertação, pelo prazo que a gente usualmente tem (dois anos) é sempre um processo que, literalmente, acaba mais rápido. Claro que isso dá mais angústias em determinadas pessoas, considerando que, nos dias de hoje, as universidades – para não perder verbas, para determinar o cumprimento dos prazos de bolsas, etc – têm sido muito mais rigorosas com o corpo discente.
Mas creio que, no processo do mestrado, as pessoas têm que colocar na mente, como disse a querida Vanice Lírio, que não se vai reinventar a roda, tirar novas observações absurdamente inovadoras sobre o tema ou problema colocado em questão. No caso do doutorado, em que o tempo também é mais dilatado, a exigência na escrita, na análise do tema, da questão, requer um aprofundamento que a dissertação não exige. É também um processo de amadurecimento na forma da escrita, na leveza ou dureza na forma de colocar as questões, de desenvolver o tema.
E temos que pensar que não há “cartesianismo” nisso: o tão propalado método científico é, muitas vezes, uma forma de aniquilar as melhores intuições e a forma mais fluida de escrita. Todas as autoras feministas, como Sandra Harding e outras, têm insistido no quanto de sexismo ou racismo existe no pretenso método científico. Creio que a maior presença feminina, negra e lgbt na universidade vai acabar alterando radicalmente a forma como o predomínio masculino, branco e heterossexual de escrita imprimiu e naturalizou nas universidades, mesmo nas dissertações de direitos humanos. Os coletivos feministas, antirracistas e lgbt vão mostrando, com o tempo, como é possível fazer escrita “científica” com sensibilidade, com ativismo, com democratização de conhecimentos, de práticas, de saberes e como isso vai impactar a forma de entender o próprio processo de construção das questões que temos como científicas. Que, na verdade, são, de fato, racistas e sexistas. Aliás, a própria questão do ativismo é interessante: um homem branco e heterossexual pode escrever sobre qualquer tema sem nunca sofrer tal acusação. A sua branquitude e sexismo são tão naturalizadas, que partem como pontos de vista neutros, para desenvolver o assunto que queira. Gays, lésbicas, trans, negrxs, mulheres é que são acusadxs de ativismo quando problematizam o monopólio tradicional da fala e criticam ou põem em questão os privilégios existentes. A recente defesa da dissertação de Marcos Queiroz e o trabalho em andamento da Patricia Becker têm tocado muito nestas questões das formas de escrita, de oralidade, de conhecimentos partilhados e participados. Acredito que as presenças negras, femininas e lgbt vão continuar impactando as formas de escrita e de apresentação de trabalhos e de questionamentos que parecem absolutamente “corriqueiros” e “inquestionáveis”, com o aparato “técnico”, de “rigor” e “científico”.
Falta, muitas vezes, na universidade, também, o incentivo da construção de redes de solidariedade entre discentes que estão vivenciando estas situações. O trabalho que venho desenvolvendo como professor voluntário na UNB, em diálogo com a Rita Segato e nos minicursos que já fiz na UFG, com o grupo da prof. Vilma e Ricardo, mostra que, muitas vezes, discentes não têm ideia alguma do trabalho de colegas na mesma turma, na mesma edição do mestrado ou do doutorado e que é providencial que as disciplinas ofertadas dialoguem com as expectativas, com as angústias, com as dúvidas, com as solidariedades dos projetos que estão sendo desenvolvidos e que, na maior parte das vezes, passam invisibilizados dentro do coletivo da universidade. Isto, provavelmente, reduziria muito este processo de sofrimento, de angústias, de “premência” dos prazos que acabam trancando ou mesmo bloqueando de forma trágica a escrita. Ou imaginando que a escrita não é possível. Como me recordou estes dias a Luciana Oliveira Dias, comentando o livro “Tornar-se negro”, da Neusa Santos Souza, o racismo e o sexismo impactam muito mais que admitimos nossos processos na universidade e na escrita. Ao contrário do que tradicionalmente gosta de divulgar, a universidade é, ainda, um espaço de naturalização das desigualdades e de produção de muitas violências corporais, sexuais e de toda ordem. E, com isso, não me refiro somente às inúmeras formas de assédio existentes, mas também em violências às corporalidades, oralidades e conhecimentos distintos que são tidos como inexistentes, inapropriados ou que merecem silenciamento.
Em relação à tese de doutorado, por sua vez, o processo foi um pouco mais demorado: houve, no mesmo período, separações amorosas, mudanças de domicílio, alteração de local de trabalho, morte do orientador e tudo isso ter que se compatibilizado com prazos que, sinceramente, imaginei que não teria condições de cumprir. Felizmente, foi a própria premência dos prazos que me fez acelerar a escrita e produzir o texto que, ao fim, foi defendido com uma qualificação “sobresaliente”. Foi também um período de muito ativismo social e de direitos humanos, envolvendo lutas de indígenas, quilombolas, pescadorxs artesanais, ao mesmo tempo em que deveria estar dedicado, na escrita, em tema completamente diverso: os discursos de direitos humanos produzidos por feministas islâmicas, com distintas trajetórias pessoais, sociais, geográficas e de escolas jurídicas. Foi, por outro lado, um aprendizado imenso, para colocar um rumo em todas estas situações simultaneamente. Na finalização da minha tese, cheguei a dormir menos de 4 horas por noite para finalizar. Mas tenho certeza que se tivesse me planejado anteriormente, não teria passado por isso.
Sintetizando, acho que o tempo decorrido e as vivências simultâneas fizeram com que a escrita se tornasse mais concisa. Como diz o meu amigo Wanderson Flor, algo “meio cirúrgico”, ‘certeiro”; na minha expressão, mais oxaguiânico. Eventual reconhecimento de “profundidade” ou “erudição” não decorre, necessariamente, da forma de escrita, mas muito mais do conteúdo. Minha opção tendo sido por ter uma redação mais fluida, com menos “voltas”, mais “certeira”, “precisa”, como salientam amigxs leitorxs, tais como Marianna de Holanda e Regina Bastos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu projeto é continuar tendo projetos que me desafiem. O primeiro volume do “Aprender desde o Sul”, com autores e autoras de distintos países e linhas temáticas, da mesma forma que o volume “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” foram grandes desafios de concentração, de seleção, de observação, de criação de redes, aproveitando a existência da tecnologia. Algumas pessoas só conheci depois de publicados os livros. O novo volume vai na mesma linha. Os artigos que mais me desafiaram foram justamente as propostas que não estavam no meu campo tradicional de debate: por exemplo, um artigo antigo sobre monstros e tortura (em que utilizei ficção científica brasileira), um outro sobre cinema e direitos humanos (em que usei Blade Runner como ponto de partida). Não sei se conseguiria ter tempo e disposição para atualizar um blog ou mesmo reunir os artigos dispersos nestes anos todos. Mas tenho muita vontade, ainda, de fazer um livro sobre teoria crítica de direitos humanos, a partir do que venho pensando e trabalhando nos meus distintos órgãos públicos e universidades. E, para isso, as provocações, inquietações e questionamentos feitos em sala de aula sempre foram absolutamente motivadores.