Priscilla Menezes é artista, escritora e pesquisadora, autora de Erro tácito (Patuá).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho rotina matinal, cada manhã evoca um movimento diferente. O que se repete é: tomar cinco gotinhas de homeopatia antes de levantar, arrumar a cama, varrer o chão, regar alguma planta que pareça estar mais murcha, tomar suplemento de vitamina B12. Às vezes, passo disso para o chuveiro e caio direto na rua. Em outras, consigo sentar, fechar os olhos e prestar atenção na minha respiração por 15 minutos. Há manhãs em que já acordo sedenta por interação e vou olhar e-mail e redes sociais. Existem ainda as manhãs nas quais vou direto escrever ou revisar meus textos. Ao acordar, sinto que tenho a mente mais limpa e mais disposta para grandes esforços intelectuais. Alguns textos (os acadêmicos, sobretudo) demandam o tipo de esforço que uma mente descansada e fortalecida pode proporcionar. Mas eu nunca acordei e fui direto escrever poesia, por exemplo. Para mim, a poesia demanda outro tônus mental que tem a ver com algum grau de tensão.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pratico a escrita acadêmica e a escrita poética, que funcionam de modos bastante distintos. A acadêmica acontece em horários solares: dias de semana, horário comercial. Se preciso enveredar por uma madrugada ou um final de semana com essa escrita, tudo fica mais sofrido. Sinto que tenho de me conectar com a energia da produtividade, dos esclarecimentos, dos movimentos para fora que os horários de trabalho convencional produzem. Já a escrita poética não tem nada a ver com os ritmos coletivos: surge em fragmentos, nas madrugadas, no bar, na cama, em locais de passagem. Via de regra, essa escrita se anuncia quando eu estou desprevenida e solicita que eu crie alguma estratégia de captura. Depois, há o momento de trabalhar em cima do que veio como lampejo e é aqui que entra o ritual (que também acontece antes das sessões de escrita acadêmica): sento em frente ao computador munida com minhas notas e acendo uma vela roxa que já fica na minha mesa de trabalho e então faço uma pequena prece. Tenho esse hábito há muitos anos e a vela precisa ser invariavelmente roxa de um tom escuro, que é uma cor que associo ao mistério.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias. Se tenho meta ou não, depende se estou empenhada em algum projeto. Disso também depende se dedicarei longos períodos à escrita ou se a praticarei de modo mais orgânico, impulsivo. Tenho também muitas escritas “não-oficiais”: que acontecem nas beiras dos livros, nas correspondências, nos meus estudos sobre temas diversos, nas redes sociais. Levo todas a sério, então mesmo se eu não escrever pesquisa ou poesia, eu pratico a escrita. Todas, no fim, se alimentam, se mobilizam e se atritam em algum lugar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita acadêmica funciona nesse movimento: leitura, compilação, redação. Essa trajetória, entretanto, não é reta e nem simples, há muito desvio. Acho importante não recuar do desvio sem dar uma passeada por ele antes. Muitas vezes, acaba por ser elegido como uma nova via principal ou vem para criar uma estranheza crucial no cerne do que já parecia pronto. Acabei de terminar a minha tese (chama-se O feminino mal-dito como abertura ao pensamento poético) e um momento de virada nesse processo foi o de dar aulas acerca da minha pesquisa. Organizá-la para transmiti-la ao outro foi o que mais me ajudou a compreendê-la. Em relação à escrita poética, acho difícil falar em termos de pesquisa. E, se for para usar esse termo, seria preciso ressignifica-lo, porque a pesquisa que alimenta a minha poesia não tem tanto a ver com o acúmulo de saberes e referências. Ser uma leitora me ajuda a ampliar territórios e a adquirir ferramentas, mas a pesquisa acontece em outra parte, penso-a mais como uma experimentação alquímica. Coleto as palavras ali onde estão embebidas de mundo, então, experimento enxugá-las ou deixá-las ainda mais úmidas. Misturo fluídos, fricciono formas. As esgarço até algum limite. Trituro, aglutino, disseco. Cada poema é um preparado de matéria de palavra levada até algum estado de transformação. Penso a poesia como essa pesquisa arqueológica, coletora e alquímica que se dá no corpo a corpo com a linguagem.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu só travo quando caio na armadilha de achar que preciso fazer minha escrita coincidir com a escrita que paira em um ideal qualquer. Para escapar disso, lembro dos versos da Marguerite Duras: “Escrever. Não posso. Ninguém pode. É preciso dizer: não se pode. E se escreve”. E escrevo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Retorno ao texto acadêmico incontáveis vezes até considera-lo pronto. Sempre que possível, gosto de contar com a leitura e a revisão de pessoas de confiança. O texto poético passa por menos revisões próprias e dificilmente o apresento, em estado de construção, para alguém. Eu escrevo e releio, para sentir os pontos onde está mais fraco. Isso nem sempre é racional, é algo bastante sensível e até mesmo corporal. Como quando você dá soquinhos em uma parede e, pela sutil variação dos tremores e dos sons, sabe onde a parede é mais densa, onde está oca, por onde passa uma tubulação. Vou tateando o poema mapeando suas regiões mais frágeis. A ideia não é deixá-lo inteiramente forte, maciço, mas poder jogar com a densidade e a fragilidade até que me pareça estar pronto. Depois, o critério final é a leitura em voz alta.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Carrego caderninhos comigo para anotar possíveis versos e ideias que surgem feito lampejo, mas só consigo organizar e dar forma para o texto no computador. Eu li a entrevista que Júlia Hansen deu para esse site e adorei a menção que ela faz ao fato da escrita no celular ser majoritariamente feita com os polegares, dedos quase que inoperantes em outras tecnologias. Fiquei pensando nessa escrita ambidestra que acontece no teclado, bem diferente da escrita à mão. No teclado, as mãos trabalham em equipe, correm em um ritmo mais proporcional ao fluxo de pensamento. A escrita à mão é uma prática de lentidão, precisão e espera: a minha esquerda fica ali de apoio, alisando ou segurando o papel para a direita. Como eu também desenho, além de escrever, minha relação com a escrita à mão se tornou uma relação com o traço. Gosto muito de incluir pequenas frases em minhas composições. Acaba, então, que penso essa escrita como grafia, ela é também desenho.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
De onde vêm as minhas ideias eu não sei, acho que isso é um enorme mistério. Não gosto de pensar em termos de criatividade, porque acho que é uma palavra que precisa de muita reabilitação. Atualmente, está bastante enredada em discursos de produtividade e de absoluta positividade. É muito importante não perder de vista a dimensão negativa da criação, aquilo que ela demanda em termos de esvaziamento, criação de lacuna, reconhecimento de incoincidência. Prefiro usar a expressão atenção poética para falar disso que cultivo e que me mantém disposta a criar. Atenção demanda, a um só tempo, esforço e desistência, é uma espécie de abertura ativa. O poético é muita coisa, mas penso-o sobretudo como aquilo que se pode fazer com a dimensão lacunar da existência. Então, cultivar a atenção poética é, por um lado, ter experiências estéticas com outras obras de arte. Mas é também se relacionar com aquilo que, no mundo, é não-total, não-equivalente, não traduzível. Cada vez mais penso o poético como uma ética: uma decisão em não abrir mão do negativo da existência e de não calar diante da falta. Uma renovada decisão por essa ética é o que me faz seguir criando.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou tudo. Mas, ao mesmo tempo, algo de fundamental restou. Mudaram as mídias, as referências, o estilo, as obsessões. Restou uma relação estruturante: faço a escrita porque ela me faz. Por isso ela muda e resta, porque também eu só resisto ali onde me transformo. Há um conceito no xamanismo americano que é o de “lugar de poder”, uma região, entre tantas na terra, onde um ser encontra um grau até então desconhecido de sua própria potência. Gosto dessa ideia porque ela sugere o encontro como propulsor de uma novidade. Não é sobre o território ou o indivíduo, mas sobre a potência transformadora que acontece no encontro. Assim visualizo minha relação com a escrita, gosto de pensá-la como um lugar de poder itinerante. Encontrá-lo é sempre novo, mas a possibilidade do encontro sempre resta. Quanto ao que eu diria para mim, me ocorrem muitas coisas e quase nenhuma tem a ver propriamente com a escrita. Em geral, eu me diria para ter em mente duas tarefas: procurar a minha turma e cultivar a minha estranheza.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto literário que mais quero fazer é escrever meu segundo livro de poemas, que já comecei. Os livros que gostaria de ler: a história invasão das américas escrita pelos povos indígenas, a Bíblia escrita pelas mulheres, a diáspora narrada pelos povos escravizados, a inquisição contada pelas bruxas que foram queimadas, os poemas perdidos de Safo e suas alunas. Já que estes não podem mais existir, desejo que essas e outras inexistências possam assombrar, informar e potencializar todas as nossas invenções.