Júlia de Carvalho Hansen é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu sou acordada pelo meu gato Capim mais ou menos sempre num mesmo horário um pouco antes do despertador tocar. Me levanto, como pão com ovo frito, abacate e levedo de cerveja. Depois de comer, enquanto tomo o líquido café estudo os mapas astrais que vou ler naquele dia e, caso seja um dia sem mapas no qual eu possa escrever o dia inteiro a primeira coisa que eu faço é nada, não escrevo de manhã a não ser que precise entregar algum texto cujo prazo está próximo. Se é este o caso o mais comum é eu tomar café relendo o texto no computador ou arrumando a mesa onde vou escrever, limpando sua superfície com água florida, ou organizando papéis que eu possa ter deixado soltos com anotações ao lado do computador. Mas o mais comum é eu arrumar a mesa antes de dormir, pra quando acordar já ter ao redor o ambiente ideal e ir direto pra dentro do texto.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo melhor no fim do dia, naquele momento em que a penumbra se instaura, o mesmo momento em que a febre sobe se estou doente, ou em que mais gente morre nos hospitais. Tem a ver com cansaço. Escrevo melhor quando estou um pouco cansada, mas não com sono ou fome, só um pouco gasta mesmo.
Eu tenho alguns rituais e nenhum. Posso ser visitada por um poema num momento em que estou completamente distraída escutando uma música (é muito comum) aí eu pego o que estiver mais próximo, o celular, meu caderno ou um computador. Agora, se não posso esperar e tenho que produzir um texto, seja porque ele me foi encomendado, seja porque tenho desejo de fazê-lo, preciso primeiro arrumar a mesa como respondi na pergunta acima. E é uma arrumação sobretudo estética, pra que o ambiente ao redor esteja bonito, confortável. Outra coisa que também funciona é fumar, costumo dizer que às vezes preciso atingir o grau zero do sujeito pra conseguir escrever. Coisa que por vezes também produzo ouvindo música bem alto nos fones de ouvido: muitas vezes escrevo combatendo e surfando na música que estou escutando simultaneamente à escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não nenhuma coisa nem outra, e não. Nem pros meus livros tenho metas rígidas, porque vou aprendendo o que eles são com eles mesmos e sempre preciso de tempo pra conseguir escutar qual é o desejo do objeto. Só tenho como meta nunca deixar de escrever diários. Desde que larguei a psicanálise em 2008 é o meu jeito de não surtar com o tamanho que meu pensamento sensível sobre os acontecimentos da vida pode tomar. Em dez anos devo ter escrito mais de 40 cadernos de 120 páginas – é uma espécie de diário, aforismos, apontamentos, roteiros, listas, raivas, lamentos, euforias, relatos… às vezes poemas. Mas são diários muito lacunares, não é que eu me sente e escreva o que aconteceu, abro meu caderno ao acaso e por necessidade e escrevo como que bilhetes sobre determinada coisa que aconteceu ou que eu senti. São indecifráveis os meus diários.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende, hoje em dia o mais comum é vir num raio depois de muito tempo de espera por uma espécie de força, energia da palavra se encarregando dentro de mim de se tornar a matéria de um poema. Mas nem sempre fico esperando porque também sei como produzir essa magia. Aí, quando quero produzir um texto, eu fico orbitando por um tempo dentro das minhas ideias como se elas fossem uma paixão luminosa e cegante, me deixo delirar pelas ideias, prestando muita atenção no que estou pensando tentando transformar aquelas sensações em visões/som, ou seja: palavra. Aí entro numa sensação de cabeça e deixo ela dizer alguma coisa através de mim. Onde quero chegar eu não sei, quase sempre eu sei o caminho, vejo com clareza por onde estou passando, mas não conheço o ponto de chegada. É uma experiência, colocar a máquina do corpo em ação. E isto quase sempre no computador, porque a velocidade de escrita do computador permite encontrar a velocidade do pensamento, o que torna a escrita que precisa de velocidade menos frustrante. Não costumo achar difícil começar, mas às vezes encontro entraves no caminho. Aí varia, às vezes eu driblo os entraves, às vezes eu chuto, às vezes eu paraliso, às vezes eu como um chocolate, às vezes vou tomar um chá…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não procrastino, mesmo quando fico parada entendo que estou em movimento de escrita, entendo que todo tempo que passo antes de um texto é um tempo de gênese, caos e gestação. Os textos precisam da matéria do universo para serem bons – isso leva tempo e acontece em um instante. Não tenho nem nunca tive absolutamente nenhum medo de não corresponder às expectativas, qualquer espécie de superego crítico que possa aparecer pra cima de mim durante a escrita eu faço um churrasquinho com ele num espeto e como com a delícia das minhas próprias mãos e o mastigo com a força dos meus dentes o transformando em algum procedimento textual, ironia, sensação, salto, corte, imagem. Também não sinto ansiedade em trabalhar em projetos longos, pelo contrário, me agrada trabalhar num mesmo objeto por muito tempo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A depender do meio. No facebook sou capaz de ler uma vez só e postar. No meu blogue sou capaz de postar sem reler. Nos meus livros revejo o mesmo poema dezenas, centenas… revejo as vezes que são necessárias. E sim, eu mostro meus trabalhos pra outras pessoas antes de publicá-los. Sempre que sinto que estou a 80% do fim de um livro envio o arquivo do livro pra algumas pessoas da minha estima e reconhecimento pela sabedoria textual perguntando por sugestões, sensações, palpites.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo à mão, à máquina de escrever, no computador e no celular. Nem sempre, mas algumas vezes edito um texto que escrevi passando ele de um registro a outro, cortando, modificando palavras e estruturas conforme as diferentes mídias se apresentam pra mim. Se um poema consegue se firmar bem em cada uma dessas mídias é porque ele está pronto pra ser publicado num livro.
Gosto de todos esses meios com o mesmo afeto e por motivos completamente diferentes. Escrever à mão, por exemplo, tem uma textura saborosa e uma sensação de reencontro comigo mesma, porque uso sempre um mesmo tipo de caneta e um mesmo tipo de papel, e é bastante necessário acompanhar o texto no ritmo que está batendo o coração, pra escrever à mão preciso escutar minha respiração, produzi-la no papel com o ritmo das palavras. A mão obriga o pensamento a ir mais devagar pra aquietar-se na respiração. À mão é a respiração quem escreve.
Já na máquina de escrever é uma luta de boxe, o ruído do teclado cria um eco pro ritmo do corpo e já é possível estar mais perto da velocidade do pensamento do que à mão mas não completamente. Quem manda na escrita da máquina de escrever são as mãos e os braços, e o papel lindo saindo já pronto num suporte editável por si só com uma aparência de rascunho mas apresentação de objeto final.
Já o computador é o corpo do pensamento, e trabalha como ninguém nos recursos da colagem e realocação, apaga rápido qualquer lixo, reinventa depois o que veio antes – por isto não vivo sem ele, porque é nele onde vão parar todos os outros registros, o computador é o funil de todos os textos e é a máquina de escrever ideal. Mas às vezes ele é mais inteligente do que eu ou a luz me cansa, e preciso voltar pros outros registros.
Agora, a escrita pelo celular é algo recente pra mim, coisa de uns três anos pra cá… O celular trouxe também uma experiência que eu fiz muito no ano passado (2017) porque andava sendo visitada pelos poemas cotidianamente e o celular era o que eu tinha sempre mais perto de mim na hora de escrever e sem pensar muito comecei a escrever poemas diretamente no aplicativo do facebook e a postá-los imediatamente, sem nenhuma espécie de revisão. Por que fiz isso durante um tempo? Não sei. Sei que essa imediatez que um espertofone cria com a nossa mão, essa escrita com os polegares é algo completamente inédito, os polegares praticamente não trabalham nas outras tecnologias e em nenhuma delas os olhos são tão ligados na energia do que está acontecendo. Eu acho celular uma espécie de objeto mágico do nosso tempo, caixa de pandora e labirinto, um perigo e uma delícia, acho muito difícil entender o que é esse vínculo com um canal/objeto de energia digital segurado com gestos manuais que parecem mudras… e um monte de gente fazendo ligações do outro lado. A relação com o celular é algo que ando tentando (re)significar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Vêm da vida. E eu leio toda boa poesia que puder. Tomo banho de plantas. Escrevo e-mails pra me manter ativa. Converso com amigos. Trabalho muito. Escuto todas as sensações do meu corpo. Vejo sinais em tudo. Aprendo tentando escutar os outros.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Nossa, talvez fosse mais fácil buscar o que não mudou. Tanto meus processos de escrita quanto meus próprios textos são uma metamorfose em movimento – eu sinto que corro atrás deles como quem vai atrás de um trio elétrico. Agora, se eu voltasse pros meus ouvidos da época que escrevi uma dissertação me diria duas coisas: se diverte mesmo e no final coloca outro título.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um romance. Gostaria de escrever um livro de ensaios sobre poesia e um outro sobre assuntos vários. Gostaria de escrever um livro de astrologia. Gostaria de escrever uma autobiografia. Vou fazer tudo isso, espero só não morrer antes. Não saberia dizer que livro gostaria de ler e que ainda não existe… também porque já tenho tantos livros, existem tantos mais pra descobrir e por ler… que sei que nunca vou conseguir.