Lucas Verzola é autor de São Paulo Depois de Horas (2014), Em Conflito com a Lei (2016) e A Última Cabra (no prelo).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia não começa muito cedo, não. Eu costumo terminá-lo tarde, então acordo pouco antes das oito horas, tomo banho e café preto (a ordem depende do humor), depois reservo o resto da manhã para as atividades que pagam as contas, que é quando me dou menos mal com elas. Quanto mais cedo as encaro, melhor as engulo. Espaço para a literatura só resta quando sobraram pendências urgentes da noite passada, seja na atividade criativa (resolver um parágrafo, uma escolha lexical), seja na atividade editorial (um e-mail de autor sobre alterações que sugeri no texto dele, confirmação de presença em eventos, burocracias de projetos paralelos, os diferentes prazos da cadeia de produção).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Definitivamente de noite. O silêncio da cidade, a possibilidade da meia-luz e a certeza de que as outras pessoas já baixaram a guarda e só pensam em amenidades são componentes importantes para o estado de espírito que preciso atingir para render bem. Não é nada metafísico. Ao contrário, é bem tangível. O ambiente adequado é essencial para o bom desempenho da atividade da escrita, assim como as condições climáticas (temperatura, umidade, pressão) afetam a performance de um atleta. Isso diz um pouco sobre o que você chamou de ritual. Não acho que se trate de uma mania ou uma espécie de TOC, mas se eu puder estar nessas condições ideais e ter matado todas as pendências de curto prazo, me dou melhor com a escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias. Não significa que tudo que eu escrevo será aproveitado, mas é importante para manter a forma. Também não quer dizer que eu crie um novo texto ou continue o seu desenvolvimento diariamente. Tem dia que é de revisão, tem dia que é de organização de ideias ou do projeto, tem dia que é de imersão em pesquisa ou fontes mediatas do texto e disso eu consigo extrair uma frase. E às vezes essa frase deu mais trabalho do que o resto do capítulo em que ela está inserida. Tudo isso entra no escrever um pouco todo dia e por isso é também difícil estabelecer metas diárias. Eu definitivamente trairia qualquer meta com frequência, ainda que a superasse em outras oportunidades. O que importa, no final das contas, é que parte significativa da minha rotina está comprometida com a vivência da literatura (seja a leitura, a divulgação, a discussão literária, a participação em eventos, a edição e a escrita em si). Como me disse uma vez minha amiga Ana Rüsche, uma autora e poeta bárbara, ser escritor é ter lição de casa para o resto da vida.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Cada projeto tem um processo próprio, porque cada projeto representa uma forma específica que se escolhe para contar uma história. Mas há pontos em comum: sempre há uma pesquisa prévia (que pode ou não culminar em elaboração de notas), a estruturação de um projeto (que pode ou não ser reestruturado durante a execução), a reflexão sobre como atingir o que se busca e, enfim, a execução em si. Quando percebo que o texto está respaldado o suficiente para começar a escrevê-lo, é hora de achar o tom. O poeta Tarso de Melo conta sempre uma anedota sobre essa busca do tom: o saudoso Waly Salomão, antes de começar a escrever qualquer coisa, lia um poema do Fernando Pessoa; a partir desse texto, escrevia os seus. Eu também costumo ler textos dos meus referenciais estéticos para afinar meu instrumento e seguir adiante.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Travas da escrita não me preocupam muito. Não que eu não as tenha, mas acho que me dou muito bem com elas. Se é algo recorrente, é necessário fazer o diagnóstico e entender de onde vem. Pode ser resultado de uma coisa bem banal, como uma cadeira nova ou uma dor de dente, ou você pode estar angustiado com a possibilidade do Bolsonaro ser eleito. Algumas causas você tem capacidade de resolver (e consequentemente acabar com o bloqueio), com outras você precisa aprender a conviver ou abstrair. Nessa segunda hipótese, talvez a trava seja só da escrita, então me dedico a outras atividades literárias de peso equivalente. Se percebo que não vou render mesmo, saio para correr ou boto um episódio de Seinfeld que já assisti catorze vezes para esvaziar a cabeça. O que não dá para fazer é ficar encarando a folha em branco, esse clichê, e lamentar que ela continuará indefinidamente assim. Quanto à ansiedade para projetos longos, tento mitigá-la tendo sempre projetos de curto prazo para dividir a atenção. Atualmente, trabalho em um romance, mas a cada quinze dias publico um conto curto no meu projeto Álbum de Família. Como todo mundo que está no meio sabe, o tempo de um livro é muito próprio e, se você esperar que uma obra percorra uma linha do tempo fechadinha (concepção, feitura, edição, publicação, repercussão etc.) para cuidar da próxima, a chance de você perder o bonde é alta.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende muito. Há textos que acho que estão prontos depois de dez revisões e a primeira pessoa que lê bate tanto nele que parece rascunho. Tem texto com uma relida apenas que sai redondinho e passa por crivos que respeito. O que é impossível é um texto ficar pronto sem passar por qualquer releitura e reescrita (ainda que seja mera lapidação). Acreditar nisso seria acreditar no mito da inspiração, de que determinadas pessoas recebem um sopro divino e saem por aí escrevendo maravilhas perfeitas. Escrita é trabalho, é ofício. E, considerando as particularidades dessa técnica, é no mínimo improvável que um escritor termine um texto e ele esteja pronto. Tem gente que só parte para um segundo parágrafo depois de ler e reescrever um primeiro até que ele seja tido como pronto. Eu prefiro respeitar o ritmo de desenvolvimento do texto e só parar para revisar, trocar palavras, reestruturar parágrafos, cortar trechos quando meu fôlego acabar. E meus primeiros leitores são meus dois grandes parceiros nessa vida da literatura André Balbo e Arthur Lungov, os outros editores da Lavoura e dos quais não espero nada que não seja porrada. Os leitores e a crítica não vão pegar leve com um texto ruim. Então prefiro apanhar enquanto ele é ainda um texto em construção do que depois de publicado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo no computador. Tenho alguns cadernos de notas onde obviamente escrevo à mão, mas me sinto realizando uma atividade artesanal ou lúdica. A tecnologia está aí para ser usada. Gostaria de ter tempo para explorar mais aplicativos e programas próprios para a escrita, mas o Word velho de guerra nunca me deixou na mão (desde que você faça backups).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias estão aí, em todos os lugares. Não acredito nisso de que você precisa ter uma ideia inédita para sua produção artística ter valor. Eu prefiro focar no como e não no o quê. Todas as histórias já foram contadas, então o que fará da sua literatura especial é a forma como você escolhe contá-la. E, para seguir essa forma, você necessariamente precisa ter um projeto e segui-lo. A técnica da escrita te possibilita escrever sobre qualquer tema e é parte da sua competência no ofício transformá-lo em literatura de qualidade. Como eu especificamente ajo? Bem, isso faz parte da minha própria compreensão de mim mesmo como escritor. E isso só foi possível quando eu percebi que só dá para ser escritor 24 horas por dia. Não é apenas escrever, não é apenas publicar. Diz respeito também à forma como você lida com o mundo. É sair de casa com a predisposição de encarar qualquer conversa banal na fila do médico como matéria-prima para um diálogo de um romance, ter a capacidade de compreender que por trás de uma desculpa esfarrapada de um prestador de serviço poder haver o enredo sugerido na construção de um conto, saber lidar com um desabafo de alguém no trem lotado às seis da tarde como o ponto de partida da concepção de um personagem.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Profissionalização. Acho que todo mundo que começa a escrever o faz depois de ser um leitor apaixonado (não necessariamente um bom leitor, não necessariamente um leitor de muitas obras) e comigo não foi diferente. Tudo começa com a ideia de que a literatura pode ser uma forma especial de se expressar e que isso tem tudo a ver com você. Besteira. Se eu quero aprender um instrumento, vou estudar teoria musical, ter aulas, decorar acordes e escalas, praticar exercícios com o metrônomo ligado. Ninguém deveria chamar de músico o cara que pega o violão e toca Legião Urbana numa rodinha no final da festa (final de festa por definição!). Da mesma forma que ninguém deveria chamar de poeta o amigo que se acha sensível desde os treze anos de idade e quer mostrar toda essa sensibilidade em versinhos que rimam coração com emoção e se acha muito sofisticado quando constrói trocadilhos à Teatro Mágico. Então o que me diferencia daquilo que eu era quando comecei é esse salto do cara que escrevia contos só porque era uma forma de extravasar as angústias da juventude para um sujeito que possui um projeto artístico e concepções estéticas e políticas estabelecidos (não imutáveis), e isso é resultado de estudo e trabalho. Se eu pudesse dizer algo para mim mesmo no começo não seria isso, porque a descoberta disso tudo sozinho também foi importante para me forjar como escritor. Mas eu me daria um conselho (e talvez tivesse que voltar para o Lucas Verzola de 14 anos para isso): leia mais; você vai ter cada vez menos tempo para isso na exata medida em que vai ter cada vez mais livros para ler, aproveita enquanto a vida não é grande coisa e suas preocupações são todas bestas. Certamente eu xingaria o Lucas Verzola velho e gordo por fazer pouco caso das angústias da adolescência.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho muitos projetos começados e não começados, cada um com um nível de preparação maior que o outro. A urgência de uns faz com que eles atropelem os outros. No início do ano eu escrevi os primeiros capítulos de um romance juvenil e a escrita fluiu muito bem. Mas, depois de alguns acontecimentos no Brasil, outro projeto pareceu muito mais adequado para o meu foco – se não o escrevesse neste momento, perderia a única oportunidade. Aconteceu algo parecido com meu segundo livro. Eu já tinha um projeto de escrever sobre adolescentes infratores, mas trabalhava em outras frentes. Mas aí eu acabei ganhando um ProAC e tive que passar esse projeto na frente dos outros. Esse romance juvenil é um livro que estou com muito tesão de escrever, porém ficou para o futuro. E acho que não há nenhum livro que eu gostaria de ler e que não existe; se eu penso em algo que acho que deveria estar em um livro, ele vira um projeto de escrita, não de leitura.