Leonardo Tonus é escritor, professor de literatura brasileira na Sorbonne Université (Paris), autor de Agora vai ser assim (2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu começo meu dia sorrindo. Sou um homem diurno que tenta, em sua rotina matinal, conservar o prazer dos instantes primeiros do dia. Acordar. Levantar da cama. Preparar o chá. Cortar as frutas para o café da manhã. Sintonizar o rádio ao se barbear. Sentir o prazer da ducha sobre o corpo ainda adormecido. Sentar-se à mesa. Fazer planos que não serão cumpridos. Ainda não se preocupar com planos diante dos inúmeros afazeres do dia. Com o passar dos anos e com minha mudança para Europa acabei por adaptar minha rotina matinal a um novo contexto sociocultural e a novas obrigações. Por aqui já não há o calor e a luminosidade tropicais. Já não há o canto dos bem-te-vis. Já não há a inconsequência da infância e de uma juventude para sempre perdidas. Não sou um homem saudoso. Soube, no entanto, adaptar-me negociando cotidianamente com esta nova situação. Viver a expatriação é situar-se diariamente no âmbito das negociações marcadas por perdas e ganhos. Perdas e ganhos entre um « antes » e um « depois ». Entre um « aqui » e um « alhures ». Entre um « eu » e outros diversos « eus » que atravessam a experiência do estar fora. Negocio cotidianamente em minha rotina sem, no entanto, abrir mão de um ponto elementar: o sorriso matinal.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Privilegio o período matinal para o trabalho intelectual e criativo. Isto já acontecia na época em que estudava música. As manhãs eram reservadas às escalas. Aos arpejos. À execução de peças arduamente trabalhadas durante o período vespertino. Ainda hoje aplico este mesmo método ao processo de escrita. Reservo minhas manhãs para a redação de meus ensaios cujos planos foram longamente traçados à tarde ou à noite. É de manhã que nascem os poemas, as crônicas ou outros textos ensaísticos. Para tal sirvo-me de ritual colocado em prática durante o concurso público que passei na França para me tornar professor. O concurso compreendia uma extensa lista de obras e de matérias obrigatórias a serem estudadas: linguística aplicada, filologia, tradução, literatura, civilização e história. No ano de meu concurso, tínhamos de estudar, entre outros, as éclogas de Antonio Ferreira e de Camões, os sonetos de Bocage, Marília de Dirceu, Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro, Alexandra Alfa de José Cardoso Pires, Cada homem é uma raça de Mia Couto. Tudo a ser lido e trabalhado para as provas escritas e orais em apenas seis meses. Desenvolvi então um método em função de minha capacidade de concentração. A cada hora ou hora e meia, uma nova obra era estudada. A cada hora ou hora meia uma nova matéria era trabalhada. Em suma, recortava o dia em seis ou sete momentos que, rigidamente respeitados, tinham por objetivo dar conta do conjunto do programa. Este mesmo método apliquei durante a elaboração de minha tese de doutorado e de livre-docência que apresentei em 2016. Continuo servindo-me deste método para a redação de meus ensaios e, nos últimos tempos, para minha produção poética: a cada hora ou hora e meia, a redação livre, a revisão, a leitura ou a realização de planos. Se para alguns tal método pode parecer enfadonho, ele assegurou-me, no entanto, a adaptabilidade que exige a função de um professor universitário que também deseja dedicar-se à criação. Em outros termos, ler quatro ou cinco romances ao mesmo tempo, redigir quatro ou cinco textos ao mesmo tempo. E poder passar das sagas islandesas de Kristín Baldursdóttir ao regionalismo de Graciliano Ramos, da periferia de Allan da Rosa aos relatos de viagem do século XVI, da aridez de um ensaio em narratologia à escrita criativa que elege o drama dos migrantes como matéria poética.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando e como escrevo? Escrevo quando posso. Escrevo como posso. Escrevo por acreditar no poder libertário e libertador da escrita. Escrever não é empreender. O processo de escrita não implica a execução de tarefas com um fim determinado. Do mesmo modo, por mais que a arte se mostre cada mais dependente das leis de mercado, ela não responde (ou pelo menos não o deveria) às logicas neoliberais do sistema capitalista. Neste sentido, não concebo minha produção ensaísta ou criativa a partir de metas a serem cumpridas. Penso-as, antes, em função de sua capacidade « trans-formadora ». Sublinho aqui o poder do prefixo « trans » que no contexto da contemporaneidade evidencia o dinamismo do processo transformador, buscando repensar ao mesmo tempo a crise da modernidade. Grande parte da produção romanesca brasileira já o experimenta como atestam, entre outras e outros, as narrativas de Adriana Lisboa, Julián Fuks, Carola Saavedra ou Aline Bei. Se as obras destas autoras e destes autores colocam em evidência a necessidade de uma busca, esta se realiza mediante a reformulação das modalidades do tradicional Bildungsroman pela ausência de uma perspectiva teleológica. Esta mesma postura pode ser observada na antologia de poemas que acabo de publicar (Agora vai ser assim) em que à resposta privilegio o questionamento, às conclusões o constato e à percepção passiva do leitor um engajamento de sua parte. Mais do que um simples empreendimento a escrita decorre de um comprometimento responsável à mão dupla entre o autor e o leitor. Do ponto de vista material, este se manifesta por um longo, cuidadoso e árduo trabalho cotidiano. Em outros termos, a velha lógica do 1% de inspiração e dos 99% de transpiração.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Raramente compilo notas com o intuito de escrever. Compilo-as por hábito e por necessidade de tentar compreender o mundo. Já há anos os cadernos tornaram-se meus grandes companheiros. Como não utilizo agendas é neles que tudo anoto, desde os encontros profissionais a receitas de bolo passando, é claro, por notas de leitura, esboços de textos ou observações, muitas vezes, desprovidas de lógica. Sem ordem aparente, tais cadernos conservam a escrita crua, que, ainda desprovida do olhar crítico, constitui a primeira etapa do processo de criação. Não vejo assim grande diferença entre o momento da anotação e o da escrita. Ambas participam daquilo que chamo o « processo com ». Transcrever uma citação num caderno não significa somente recopiá-la. Trata-se de um processo que implica uma escolha e, sobretudo, a ressignificação de um discurso que pouco a pouco se dilata graças à intervenção do « copista ». Do mesmo modo, não acredito na existência de fronteiras estanques entre a pesquisa e a escrita. Se a pesquisa conduziu-me até a criação poética, esta última continua a alimentar cada vez mais os projetos de investigação que tenho desenvolvido. Há anos debruço-me sobre a questão da presença e de representação da imigração na literatura brasileira. Após interrogar a emergência do discurso fascista no modernismo brasileiro através da obra de Plínio Salgado e seu romance O estrangeiro (1926), apresentei minha tese de doutorado em 2003 sobre a escrita do não-pertencimento de Samuel Rawet. Em 2016 voltei ao tema da imigração desenvolvendo um trabalho para a livre-docência que interroga o retorno da figura do imigrante no contexto da transição democrática no Brasil. Desde 2015 minha pesquisa voltou-se para o drama dos migrantes e refugiados, tema que também abordo em diversos poemas da antologia Agora vai ser assim.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Talvez por conta de minha experiência acadêmica e dos diversos projetos de tese que ao longo destes vinte anos desenvolvi, lido de maneira saudável (e salutar) com o tempo lento que exigem a reflexão e a criação. Os avanços técnicos e tecnológicos que tiveram lugar em diversos setores da nossa sociedade nos últimos séculos foram responsáveis por uma alteração radical de nossa percepção do tempo. A temporalidade aderida à aceleração do tempo presente (o presenteísmo) apoderou-se de todos os espaços da sociedade. A velocidade tornou-se um bem de consumo subjugando a sociedade (e a produção de que dela resulta) aos princípios do desempenho, do rendimento e das performances do trabalhador em sua área de atuação. Por isso me pergunto: Para que escrevemos? Para quem escrevemos? O que buscamos com nossas publicações? Leitores ou somente ganhar espaço nas prateleiras das livrarias?
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Para mim a revisão é a etapa mais dolorosa do processo criativo. Reviso meus textos até a exaustão. Até a véspera da entrega do manuscrito. Uma vez finda esta etapa raramente volto a meus textos ensaísticos. No que tange à minha relação com o trabalho de criação, ela tem sido diferente. Vivemos num contexto em que se exige cada vez mais a atuação performática do autor em feiras e encontros literários. Em alguns anos passamos do autor funcionário público ao autor leitor e comentador de sua obra. Não acredito que este movimento seja nefasto à literatura. Ele não o é, se tivermos plena consciência dos seus benefícios, bem como de seus limites e possíveis derivas.
Gosto de compartilhar os textos que produzo e conto com a generosidade de alguns leitores. Aprecio, em particular, os efeitos que a descoberta de um texto pode suscitar. Trata-se de uma postura que também aplico em minha prática docente: confrontar os estudantes à primeira leitura de um texto, àquela desprovida de qualquer construção racional, àquela que ainda se fundamenta na afetividade e que é capaz de fazer emergir um espaço-em-comum entre o autor, o texto e o leitor.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Pertenço a uma geração que desconhecia computadores, celulares e outras tantas engenhocas tecnológicas. Hoje quase não sobrevivemos sem elas. Talvez, por isso, ainda conserve tanto apreço ao contato físico com um lápis (sim, eu ainda escrevo a lápis), com uma caneta ou com um caderno de anotações. Somos, no entanto, contemporâneos e enquanto pessoas vivendo a contemporaneidade, não podemos deixar de ignorar os avanços tecnológicos. No que diz respeito ao meu processo de escrita, este articula-se em duas etapas: anotações e esboços de textos à mão; revisão e reescrita pela tela do computador quando então passo a « arranhar » os textos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Sou um observador « do » e « no » mundo. Dele vêm minhas ideias. Manter-me disponível a ele constitui o único (e essencial) hábito que cultivo para me manter criativo e vivo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Tenho buscado, nos últimos anos, um tom mais pessoal em minha escrita. Esta mudança teve início há cerca de dois anos quando começava uma nova pesquisa sobre a presença e a representação de migrantes e refugiados na literatura contemporânea. Na altura ganhara uma bolsa de estudos e transferira-me para Berlim com o intuito de encontrar escritoras/es em situação de refúgio. O próprio festival de literatura de Berlim organizava naquele ano algumas mesas-redondas com escritoras sírias convidando-as a redigir um texto sobre a experiência do exílio. Não me lembro exatamente do nome do encontro e da autora que naquele dia assisti. Dele, no entanto, ficou-me a lembrança de uma bela mulher que, sob a forma de uma ladainha, evocou a sua dor desde a saída da Síria até a Alemanha. Esta situação descrevo de maneira quase literal no poema « Urgências » que compõe antologia que acabo de publicar. No texto evoco o impacto da fala da escritora que acabou por suscitar em mim uma reflexão profunda sobre a relação entre escrita e voz autoral. Diante da dor ali expressa comecei a interrogar minha postura ética enquanto autor e pesquisador. Queria trabalhar sobre a questão do refúgio e pesquisar a produção artística realizada por refugiados. No entanto, de que direito tinha eu de falar daquela dor? Como transformá-la em objeto de estudo ou em produção poética sem cooptá-la? Tais questões foram fulcrais no caminho que, desde então, conferi à minha produção poética e ensaísta. Em suma, passei a convocar a subjetividade como elemento cardeal do processo de escrita combatendo a proliferação de ferramentas de aferição e de avaliação cada vez mais anônimas, descontextualizadas e aparentemente objetivas. Se tivesse de voltar hoje ao meu trabalho de doutorado apresentado em 2003, talvez este também sofresse a mesma mudança em adequação com o universo fascinante do escritor Samuel Rawet que através de suas propostas erráticas apontava, igualmente para novas posturas estéticas e éticas do processo de escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O dia em que eu descobrir tais livros e conseguir desenvolver tais projetos, saberei então que deste mundo já não faço parte. Concebo a literatura, a escrita e a vida como uma aventura. Uma aventura que tem como mote a eterna busca de algo a não ser atingido. Ou melhor, como evoco no poema « Com Adriana » da antologia Agora vai ser assim: « caminho/porque tenho de caminhar/o caminho ». O caminho da escrita ou da vida. Nada mais. E tanto mais.