Adriana Lisboa é romancista, poeta e contista, autora de Parte da paisagem, Pequena música e Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma rotina muito simples, de modo geral – nada sensacional ou mirabolante. Acordo cedo, tenho o hábito de correr algumas vezes por semana no meio da manhã (em geral na rua, com o meu cachorro e sem ouvir música). Tento driblar os e-mails e o dardejar do noticiário até o final do dia de trabalho, porque eles às vezes consomem um tempo precioso, além da dispersão que muitas vezes representam. Pelo mesmo motivo (e por outros mais) não tenho página pessoal em redes sociais.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou uma pessoa fundamentalmente diurna no que diz respeito à escrita. Se a leitura é uma maravilha à noite, ao longo dos anos constatei que as minhas horas para escrever são enquanto houver luz no céu. Também lido melhor com ambientes com pouco barulho, porque tenho dificuldade de me desligar dos estímulos externos. Ou seja, se houver gente falando, música tocando, televisão ligada – tudo isso me desconcentra. Mas é claro que se tiver de ser, será. Fora isso, não tenho ritual nenhum.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tendo a escrever um pouco quase todos os dias. Acho importante esse contato “crônico” (em oposição a “agudo”) com o texto. Não sei trabalhar intensamente ao longo de algumas semanas ou meses, por exemplo, e depois me distanciar da escrita por um período. Já me aconteceu isso por necessidade, mas é bastante difícil, principalmente porque a escrita faz muita falta no “período não”.
Sobre ter uma meta de escrita diária, para mim é impossível. Posso ter um naco de tempo à minha disposição, três ou quatro horas, digamos, mas o que vai acontecer nesse tempo é inteiramente imprevisível. Às vezes termino um dia de trabalho tendo escrito duas páginas, o que é muito bom, ou cinco, o que é extraordinário, às vezes tendo jogado fora um punhado delas. Por outro lado, sei reconhecer becos sem saída renitentes, e também não me incomoda virar as costas à escrita e ir fazer outra coisa quando a maré visivelmente não está para peixe num determinado momento. É que a escrita, embora seja um processo diário, cotidiano, espraia-se de maneira um tanto quanto indefinida pelo tempo, é um projeto de anos, décadas, é um projeto da vida inteira.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não faço compilação de notas antes de começar a escrever, mas sim durante o processo. Só consigo pensar bem sobre um livro enquanto estou escrevendo esse livro – do contrário ele se torna uma abstração. Não sei que problemas vou encontrar até arregaçar as mangas e efetivamente começar a trabalhar. A pesquisa vai se apresentando da mesma exata maneira: de acordo com as exigências que o texto vai fazendo. Claro, estou me referindo essencialmente à escrita de ficção e de poesia, mas o processo é semelhante mesmo quando escrevo ensaio. Preciso do pontapé inicial.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Escrever para mim é comparecer, é me permitir mesmo o vazio de um dia mais difícil. É também saber parar. Correr me ensina muito: não sou maratonista, nada disso – minhas ambições atléticas são modestas. Mas quando dá preguiça, eu calço o tênis e vou assim mesmo. É a melhor maneira de resolver o problema. Por outro lado, não preciso bancar a heroína – os estadunidenses gostam muito da expressão “no pain, no gain” ou seja, se você não “sofre” não conquista, mas outro dia vi alguém com uma camiseta em que se lia “no pain, no pain” e achei sensacional. Se é um dia realmente difícil para correr, pode ser melhor ideia descansar ou ir fazer outra coisa. Assim também com o trabalho da escrita. Às vezes pode ser mais inspirador ouvir música, ver um filme ou trocar ideias com um amigo do que ficar pensando o parágrafo que não quer ser escrito.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso os textos inúmeras vezes, praticamente até as vésperas de serem publicados. Acho que um autor nunca bate o martelo – mesmo depois de publicado um livro há algo que pensamos que poderíamos (ou deveríamos) ter feito diferente. A edição definitiva não existe – ela é só a decisão de parar em algum momento do processo.
Mostro meus trabalhos para algumas pessoas antes de publicá-los, não muitas. Algumas são leitores especializados, como meus agentes e editores, ou amigos escritores. Mas um dos meus leitores mais especiais é o meu marido, que não trabalha nem nunca trabalhou com literatura. A opinião dele é valiosíssima, porque ele me lê como um leitor comum.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo fundamentalmente no computador. Com frequência tomo notas à mão, e os cadernos também servem para a concepção de um ou outro poema – ou para rabiscos que não têm nenhuma pretensão de vir a ser publicados. Já escrevi, por exemplo, numa viagem, umas cinquenta páginas à mão, entre observações, comentários, registros. Não era um projeto literário, era simplesmente uma maneira de (também) viver aquela experiência. A escrita tem disso, não é? Às vezes ela funciona como mediadora, como ferramenta de observação do mundo. Ao modo de um fotógrafo que registra o que vive num punhado de cliques, ou de um desenhista que para diante de uma ponte ou de uma praia para “entendê-la” graficamente.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm das leituras. Nada me mobiliza tanto para escrever quanto a leitura de ficção e de poesia, e sempre foi assim, desde a minha infância. O impulso de escrever surgiu em mim junto com o prazer da leitura – ou o desafio da leitura (o que chamo de prazer, neste caso, inclui o desprazer, inclui a experiência penosa, dolorosa e árdua de um texto que machuca, seja o de outro autor que leio, seja o meu próprio).
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Com o passar dos anos, tenho a impressão de que a minha autocrítica se sofisticou, ficou mais afinada. Tenho muito menos tolerância para certos cacoetes meus, mas é mais fácil me descartar deles. De todo modo, se pudesse voltar aos meus primeiros textos acho que os deixaria como são, porque a função dos primeiros textos é essa – quebrar pedra, furar arrebentação, experimentar a mão, ensaiar. Com o tempo a gente vai adquirindo um pouco mais de consciência do que faz, começa a entender a própria voz, mas não há como queimar etapas do processo. Aprender a caminhar inclui as quedas. E volta e meia, na verdade, a gente tropeça e se esborracha de novo. Assim como o corpo está sempre se adaptando às suas novas idades, também o processo criativo nunca deixa de ser um processo, um “enquanto”. O que é um pouco diferente de ter um projeto para o momento – por exemplo, o de simplificar o meu texto, o de distanciar a minha poesia do compromisso com a prosa etc.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de trabalhar mais com música em minha literatura, tanto tematicamente quanto através da possibilidade de escrever imitando formas musicais. Quanto ao livro que gostaria de ler mas que ainda não existe… acho que penso mais nos tantos e tantos livros que gostaria de ler e que existem, mas aos quais, por tempo ou inércia ou desorganização, ainda não consegui me dedicar.