José de Assis Freitas Filho é jornalista, escritor, sociólogo e mestre em Letras (UFBA).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu não diria que há uma rotina, mas obrigações que se impõem ao amanhecer. Se pudesse eu ficaria em estado de letargia por muitas horas, ruminando ideias, elucubrando sobre a existência. Então, tenho que despertar às vezes assustado, às vezes sonolento e cumprir com os afazeres do quotidiano tributável, como diria o Pessoa.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Durante algum tempo, costumava escrever nas madrugadas. Nas horas de silêncio e calmaria do mundo ao redor. Colocava uma ária de Bach ou uma suíte de Schubert e vagava com o pensamento pelas palavras até que uma delas tivesse o efeito de um raio. Então era o labor de carpir, desbastar. Invadir o verbo até que ele deixasse de pertencer a uma significação e ganhasse o status de símbolo poético. Hoje em dia alterno as horas de criação com manhãs e madrugadas, principalmente porque aproveito o fato de chegar cedo ao trabalho e encontrar a sala vazia. Até que o tumulto se instale, eu dou vazão ao instinto criativo e me imponho diante da tela branca do computador. Mas consigo escrever também diante do burburinho cotidiano. Em meio às pessoas conversando. Nessas vezes vem um estalo, uma iluminação e mergulho em epifanias.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo um pouco todos os dias, escrevo em períodos concentrados, mas nunca consegui me disciplinar para estabelecer uma meta diária. Quando estou escrevendo narrativas, há um processo de concentração maior, de rigor com a produção. É um período de maior sofreguidão porque as narrativas pedem continuidade, acontecimentos para explorar e, principalmente, as personagens atormentam o escritor pedindo prioridade. Já em relação à poesia sinto-me mais à vontade, tenho mais intimidade com o mister. Normalmente escrevo poesia diariamente, pelo menos alguns versos esparsos que depois vou dar prosseguimento em um poema. A poesia já faz parte do meu organismo, como pulmões, coração, cérebro.
O problema com as narrativas é que elas demandam certo tempo, desde a concepção até a conclusão. A poesia é mais rápida e também mais incisiva. Já as narrativas são mais passíveis de reciclagem. Por isso algumas ideias em prosa ficam armazenadas esperando maturação.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é caótico. Eu sou atraído quase compulsivamente pelo inusitado. Então escrevo e pesquiso ao mesmo tempo, não consigo determinar o instante de parar as buscas e dedicar-me somente à escrita.
Convivo obcecado ante o espanto que as palavras me causam. Saio à cata de etimologias, simbologias. Ao mesmo tempo, citando Clarice Lispector, os mecanismos da linguagem são um código arbitrário, incapaz de traduzir a realidade em sua dimensão completa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quem acredita no Assis equilibrado, lógico, meticuloso cai num grande equívoco. Eu sou relaxado, preguiçoso, adoro o ócio lúdico da música e da leitura. Se me derem o prazo de uma semana, eu faço tudo assoberbado nas últimas 12 horas. O pior é que ganhei confiança para essas loucuras e sento, e fico esperando, e digo para mim mesmo: “não se desespere, as coisas vão acontecer”. Só que é uma confiança atônita, um misto de desespero positivo. No meio da minha desorganização pessoal as coisas vão acontecendo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso até depois de publicado. O pior é que a gente encontra erros depois que o livro já está impresso e circulando. Jô Soares confessou certa vez que a primeira edição do Xangô de Baker Street tinha um erro gritante de concordância no primeiro capítulo que passou despercebido por todo mundo. Foi o Pedro Bial num encontro casual que comentou sobre o erro e foi feita a correção nas edições seguintes. Outro escritor incrível, o Murilo Rubião, nunca deu por encerrada a revisão nos seus contos e a cada edição ele fazia alterações nas narrativas.
E há as histórias dos grandes editores que corrigiam os textos de muitos escritores. O Max Perkins recebia os originais e dava forma final aos romances de gente como Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald. Conta-se também que o José Olympio recebeu o Vidas Secas do Graciliano originalmente como um livro de contos, mas sugeriu alterações para publicá-lo como romance, já que o conto é considerado um gênero menor.
Na verdade, hoje em dia se sente falta da figura do “editor” que foi tão importante no século passado. O que se pode tentar, neste mundo contemporâneo, é a publicação de fragmentos nas redes sociais e aí obter uma avaliação preliminar do leitor.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou absolutamente tecnológico. Não me imagino mais envolvido com montes de papéis tentando corrigi-los e depois ir para uma máquina de datilografia. Às vezes rascunho alguma coisa no papel quando não tenho o laptop ou o computador disponível. Tem uma história interessante sobre o Thomas Wolfe, escritor norte-americano que morreu prematuramente aos 37 anos, autor de Of Time and the River. Ele era muito alto, escrevia de pé sobre a geladeira e jogava as folhas de papel dentro de um caixote. Depois mandava o caixote para o editor.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu sou um ser apaixonado pelas palavras. Eu sonho com elas. Às vezes meus devaneios oníricos não possuem imagens, são apenas povoados pelo verbo. Acontece de conceber um poema durante um sonho e acordar apressado para recuperá-lo. Comigo isso ocorre frequentemente e é angustiante, porque nem sempre eu consigo me lembrar da totalidade que me aparecia e se oferecia aos sentidos. Quanto às leituras, são as recorrentes. Gosto de reler os meus preferidos. Ficar repetindo trechos de narrativas ou poemas. Socorrem-me na minha angústia de escrever Rosas, Pessoas, Bandeiras, os gatos do Cortázar, os tigres de Borges, as trilogias de Auster, o imponderável de Rubião, as lâminas da Clarice.
Eu almejo o imponderável da existência, que é ludibriar as circunstâncias da hecatombe final, quando os deuses aflitos nos remetem aos nossos próprios desígnios. Qual aquele homem que sente as trevas da caverna e cada poema é uma lamparina no percurso labiríntico. Almejo o fogo que Prometeu resolveu roubar e que ainda queima, e ensandece os nossos dias. Sei também que “um dia estarei mudo”, canto profético da Cecília, mas a minha intenção é adiar cada vez mais o momento da dissolução.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Faulkner alertava que “ensine a si mesmo a partir de seus próprios erros; as pessoas aprendem somente pelo erro”. Agora, errar em literatura é complicado. Já escrevi narrativas que não considerava primorosas e que depois foram muito elogiadas por leitores críticos. O contrário também acontece. Todos nós vamos amadurecendo, a não ser os gênios que nascem prontos e escrevem obras primas aos vinte anos de idade. Os mortais vão se moldando ao longo da existência. A literatura é prima-irmã da experiência. Não é à toa que Walter Benjamin dizia que “as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo”. O narrador é, originalmente, este ser da experiência. No nosso mundo contemporâneo, de relações tão fluidas, de seres enclausurados, tudo é fragmento. As pessoas estão cada vez mais sós, enredadas em virtualidades. A escritura, como Barthes costumava se referir à literatura, não foge a esse escopo da realidade. “Quando eu escrevo penso em mim”, vaticinava Truman Capote. E este “eu” que se desdobra no verbo está em constante ebulição e transformação. Se eu pudesse dizer alguma coisa a mim mesmo seria: “não desista, nunca se sinta culpado”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu já comecei todos os projetos possíveis, agora é dar conta de desenvolvê-los. Como disse o Antônio Torres “eu já tenho o título, agora só falta escrever o romance”, quando se referia ao livro Um cão uivando para a Lua. O que virá é sempre uma incógnita. O Raduan Nasssar decidiu parar de escrever, achava-se esgotado para criação. Outros, como Saramago, descobrem a literatura na maturidade da existência e empreendem projetos fabulosos. A vida é mãe de todas as possibilidades. De repente surge alguma coisa inesperada que move a criação do artista.
O livro que eu gostaria de ler existe, mas ainda não consegui encontrá-lo. Quem o escreveu deve ter guardado meticulosamente como aquele O Livro de Areia do Borges.