Antônio Torres é escritor, autor de Um cão uivando para a Lua.
Como você começa o seu dia? Tem uma rotina matinal?
Sim, tenho uma rotina matinal: ler jornal (assino dois), fazer o café da manhã etc. Depois disso, computador. E aí, dependendo das demandas virtuais, o tempo pode ir embora num piscar de olhos. Basta me deixar levar pelos e-mails, WhatsApps, redes sociais. Tudo a contribuir para o desvio do que mais deveria me interessar: escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando estou mesmo motivado para escrever, a melhor hora para começar é às seis da manhã. Nessa hora está tudo quieto, a Sonia, minha mulher, ainda dorme, e os sons à volta da casa são de pássaros, portanto, bem inspiradores. Para você ter uma ideia do cenário: moro num condomínio muito tranquilo de Itaipava, um distrito de Petrópolis, na região serrana fluminense. Pela janela do meu escritório, avisto árvores e montanhas que “caminham na paisagem quando estou dormindo”, para lembrar um belo poema de Lêdo Ivo. Na parte da tarde, se estou no embalo, tenho por ritual ouvir antes um pouco de musica instrumental – o piano de Thelonious Monk ou Tom Jobim, o trompete de Miles Davis, o sax de John Coltrane, o vibrafone de Milt Jackson, o violão do nosso Baden Powell -, ou ler um poema para entrar na corrente rítmica do texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, como agora, ao responder às suas perguntas. Como dizia o poeta português Alexandre O’Neill, a bem dizer o meu tutor literário lisboeta nos meus anos mais juvenis e vulneráveis, “folha de terra ou papel, tudo é viver, escrever”. Escrevo até quando estou dormindo, como aconteceu com o romance Um táxi para Viena d’Áustria, que nasceu de um sonho. Mas não tenho nenhuma meta de escrita diária, nem obedeço a disciplinas rígidas. Mentalmente, escrevo o tempo todo. Agora, transformar isso em texto é um processo mais demorado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Até agora só escrevi três livros que dependeram de pesquisas: O Centro das nossas desatenções, uma crônica em torno da história do Rio de Janeiro, e os romances Meu querido canibal e O nobre sequestrador, o primeiro tendo como protagonista o grande guerreiro tupinambá Cunhambebe, e o segundo, René Dugway-Trouin, o corsário do rei Luís XIV que, em 1711, fez o primeiro sequestro do Rio – o da própria cidade. Trabalhar com pesquisa requer saber a hora de parar, não deixar que a história comece denotando um ranço acadêmico, nem que venha a ser sufocada pelos dados pesquisados. Nesses casos, só consegui me mover da pesquisa para a escrita quando baixou no teclado uma primeira frase a dar o tom ficcional a uma história real: “Era uma vez um índio”. Ou: “Quando o mundo era dos marinheiros, eu, René…” Mas isso levou um bocado de tempo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido com tudo isso o tempo todo, sempre a me lembrar do título de uma peça do finado Plínio Marcos: A longa jornada de um imbecil até o entendimento. Que perfeita definição para a minha lida diante das travas da escrita! Por falar nelas, e no medo que acarretam, volto a outro saudoso ente querido, o já citado poeta Alexandre O’Neill:
O medo vai ter tudo
Quase tudo…
Penso no que o medo vai ter
E tenho medo
Que é justamente
O que o medo quer.
Superar o medo diante da tela em branco tem sido o meu maior desafio no desenvolvimento de todos os meus projetos, sempre longos, em sua maioria, afinal, sou um romancista.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reescrevo mais do que escrevo. Costumo ficar horas, dias, semanas penteando um parágrafo. Sempre cercado de dúvidas se o teclado está batendo errado ou certo. Quanto a mostrar meus textos antes de publicá-los, fiz isso no começo. Recordo quando, redator recém-chegado a uma agência de publicidade carioca dirigida pelo poeta Celso Japiassu, ganhei um livro de sua autoria intitulado O texto e a palha, cuja leitura me deu coragem para lhe passar o primeiro capítulo de um romance que eu vinha escrevendo nas caladas das noites, e que viria a se chamar Um cão uivando para a Lua. No dia seguinte, o Celso me devolveu as páginas que eu havia lhe passado, dizendo: “Você pode até nem saber disso. Mas é um escritor”. Imagine a força que tal parecer daria aos meus dedos dali por diante. Poucos meses depois eu estava com o romance pronto. O mais extraordinário: a crítica literária, muito operosa à época (1972), viria a concordar com o Celso. Sim, até o segundo romance (Os homens dos pés redondos), aporrinhei os amigos mostrando um ou outro capítulo em andamento. Depois, não mais.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve os seus primeiros rascunhos à mão ou no computador.
Escrevo direto no computador. Com o risco que isso apresenta: o da tentação de reescrever tudo o que foi escrito antes. A mesma tecnologia que em princípio agiliza o trabalho, o torna mais demorado, pela facilidade de refazê-lo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Uma frase de William Faulkner, no seu monumental Luz em agosto, nunca me saiu da cabeça: “É o conhecimento, e não a dor, que faz você se lembrar de centenas de ruas selvagens e ermas”. Algo que conheci e me marcou muito em algum tempo pode vir hoje, numa forte recordação, a me dar uma ideia para o começo de uma história. Às vezes as ideias surgem em sonhos, como no já mencionado caso de Um táxi para Viena d’Áustria, que surgiu numa noite em que sonhei que matava um amigo. Quanto aos hábitos para manter a chama criativa acesa, o principal deles é o da leitura mesmo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos?
Tenho experimentado os mais diferentes cenários – urbanos, rurais e da História –, cada qual a requerer o seu processo de escrita. E nisso venho tentando evitar ser um sambista de uma nota só. Além disso, procuro seguir a receita do finado Scott Fitzgerald: “Romance é personagem”. Portanto, é o(a) personagem quem dá o tom da escrita. Sua classe social, sua faixa etária, seu nível de escolaridade, sua visão de mundo, sua complexidade. Enfim, o meu processo de escrita muda de romance para romance.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Venho tocando um romance há mais de seis anos, e que tem sofrido interrupções brutais, em virtude dos compromissos que têm surgido: conferências, viagens, os quefazeres cotidianos, as atividades na Academia Brasileira de Letras etc. E se tempo de vida ainda tiver para mais do que um romance, gostaria sim, de escrever um livro sobre o último vice-rei do Rio de Janeiro. Sobre a outra pergunta: olhando para as minhas estantes, e vendo a quantidade de obras importantes, fundamentais mesmo, à espera da minha leitura, não dá para pensar em algo que ainda não existe.