Fabiana Augusta Alves Jardim é professora de Sociologia da Educação na Faculdade de Educação da USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Costumo acordar cedo e começar o dia com café da manhã e uma atividade física – que, a depender do dia da semana, é algo mais formalizado ou simplesmente passear com o cachorro pelo bairro. Isso me ajuda a acordar e a controlar algumas das dores que anos de atividade em frente ao computador e duas quedas me renderam. A partir daí, sigo para o escritório e vou começando o dia, planejando a semana, respondendo as mensagens mais urgentes. Trabalho melhor durante o dia, mas em geral começo mesmo a me concentrar depois das 12h, quando meu filho já saiu para a escola. A manhã acaba sendo de atenção mais fragmentada, por conta dos cuidados com ele e com a casa. Depois do almoço, porém, se não houver compromissos institucionais, aulas ou orientações, consigo trabalhar várias horas seguidas, por vezes interrompidas por caminhadas curtas – quando as costas, o cérebro ou o cachorro pedem.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como comentei, trabalho melhor de dia. No que se refere à escrita acadêmica, sou das que precisa ter muita clareza dos argumentos e do “plano de escrita” antes de começar, então o ritual propriamente dito começa apenas nesse ponto: separação dos textos, artigos e dados que serão utilizados, abrir espaço na mesa de trabalho apenas para aqueles vinculados com o texto (geralmente, trabalho em dois ou três textos ao mesmo tempo, e cada “projeto” tem sua pilha específica), formatar o arquivo eletrônico com as normas do periódico ou do livro para o qual o texto se destina, abrir a aba do dicionário online… Algum café, ou chá, e muita água. E, a depender do momento de escrita, música, muitas vezes algum álbum que fica rodando em loop. (Se estiver trabalhando em um lugar barulhento, em vez de música, uso o rainycafe.com – ajuda a concentrar e é uma delícia ficar trabalhando com o barulho da chuva!).
Quanto à escrita não acadêmica, hoje já não tenho uma rotina tão definida, uma vez que os blogs (individuais e coletivos) nos quais costumava escrever estão todos abandonados na era das novas redes… eles eram importantes espaços de escrita mais livre, desde a elaboração do que me passava ao registro de boas leituras, reflexões sobre o mundo. Pelo simples fato de existirem, me mobilizavam a escrever com alguma frequência. Hoje, porém, acabo escrevendo apenas quando consigo respirar o suficiente para que alguma ideia venha à tona (ou quando o peso do mundo é tanto que é preciso escrever para deixar o ar entrar…). Mas sinto que essa escrita tem características muito distintas da escrita acadêmica para mim – ela funciona a modo de instantâneo, de crônica e, nesse sentido, resulta do esforço de cristalizar sensações ou sentimentos cotidianos. Além disso, ao contrário da escrita acadêmica, que deve ser precisa, objetiva, quando escrevo esses textos parece que mergulho (quase me afogo) em imagens, adjetivos, tudo para produzir uma fotografia bem colorida e detalhada de um momento – bom ou ruim, raso ou fundo, de dor ou prazer. Há alguns anos, assinei uma das edições dos Desmanuais de escrita (projeto bonito da Cris Lisbôa), e embora não tenha tido a disciplina para fazer todos os exercícios, foi uma experiência interessante e, de vez em quando, pego um deles quando sei que vou ter um tempinho livre, para ver se rabisco alguma coisa – mesmo que na maior parte das vezes ele nem saia da mochila e fique lá, que nem coceirinha, só pra eu não esquecer do bom que é tatear o mundo com palavras.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A rigor, até escrevo quase todos os dias, pois, para o preparo de aulas ou na atividade de leitura de artigos/dissertações e teses/relatórios, há uma atividade de escrita que é muito mais anotação, mas que nos ajuda a amadurecer certos argumentos, consolidar ou se desembaraçar de leituras… Num sentido lato, então, a escrita é cotidiana na medida em que é uma das faces do trabalho do pensamento. À minha volta, tenho vários cadernos além do caderno de campo, por vezes um por tema que esteja investigando ou um por texto em elaboração – e é neles que vou anotando ideias, argumentos, citações que podem ser utilizadas ou, ao contrário, que não serão utilizadas, mas são formulações com o poder de síntese próximo ao da poesia e, por isso, contribuem muito para elucidar para nós mesmos certas coisas (em termos de achados ou de metodologia).
Apenas quando estou mesmo mergulhada na escrita é que defino metas claras – concluir um argumento ou seção, por exemplo. Mas então não se trata tanto de metas, e sim de uma espécie de urgência – como este “estado de escrita” (como chamou o meu colega Julio Groppa Aquino) atrapalha o sono, nos torna antissociais porque monotemáticos ou distraídos, é preciso logo dar a isso uma primeira forma, livrar-se da ideia para poder vê-la de fora e, assim, passar a uma fase da escrita menos intensa, ao menos subjetivamente – a da revisão e da reescrita. Atravessar essa fase, assim, é necessário para cortar o cordão umbilical que nos liga à ideia e, insistindo na imagem, conseguir ponderar seu significado enquanto algo que se produziu em nosso encontro com o mundo e que a ele retorna como algo novo, mas já finalmente independente de nós.
Há uma frase da escritora espanhola Belén García Abia de que gosto muito (tanto que até tenho tatuada): “escribo para dejar de ser yo”. Mesmo na escrita acadêmica, me identifico com este modo de entender o processo. Claro, há a dimensão da partilha e apresentação dos resultados de pesquisas, financiadas afinal com recursos públicos. Mas escrever é também um desembaraço – e por isso tão fundamental para o avanço do pensamento e da pesquisa: só a partir dessa exterioridade é possível iniciar um movimento para, novamente, deslocar-se.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Uma vez definido o tema e para onde vai o texto (se capítulo, se artigo para submissão em revistas de fluxo contínuo, se parte de um dossiê) e, caso não tenha ainda havido a apresentação de um resumo, começo pela estrutura do artigo: título provisório, seções, seus argumentos centrais e tamanho de cada uma delas… Desenho, portanto, um esboço da economia geral do texto, de modo a tentar garantir a hierarquia do peso das seções para o desenvolvimento do fio de argumentação. A partir dessa estrutura, seleciono as referências ou trechos do material analisado (documentos ou entrevistas) e começo a escrever. Nesse processo, também vou me dando conta de minhas próprias limitações teóricas ou de materiais e, se há tempo, ampliando leituras e retornando aos dados. Geralmente, os prazos são os mais eficazes instrumentos de decisão sobre onde colocar o ponto final no processo de reescrita e de revisão do texto.
Ao longo destes anos, fui me dando conta de que parte das dificuldades que enfrentei em relação à escrita, em especial ao final do doutorado, devia-se também ao fato de que minha trajetória na universidade comporta alguns processos de transição geracional – algo que percebo com mais clareza hoje, do lugar da docência. Explico-me: entrei no curso de ciências sociais em 1996, antes da reforma da previdência dos anos FHC que precipitou a aposentadoria de uma parte da geração de professores ainda formada pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e que era herdeira de uma tradição de pensamento que se desdobrava tanto em um conjunto de preocupações e compromissos em relação ao país quanto em certo ethos acadêmico, no qual a publicação de artigos não tinha centralidade e, de fato, tinha outro caráter: os artigos eram mais um ponto de chegada de longas pesquisas do que parte do processo de investigação. Durante o mestrado (que fiz entre 2002 e 2004), esse panorama já se alterava devido à recomposição do quadro de professores e também às alterações que foram se consolidando no sistema de Ciência e Tecnologia no país, em especial com as avaliações do sistema de pós-graduação – uma nova compreensão da pesquisa se construía ao passo que também outros modos de fazer, mais coletivos, tornavam-se possíveis (com importantes ganhos subjetivos e analíticos, vale notar). Foi ao longo de minha pesquisa de doutorado (entre 2005 e 2009) que tais mudanças começaram a se manifestar de modo mais intenso, como desencontro e sofrimento subjetivo: poucos professores que tive na graduação ainda estavam na ativa; a lógica com prazos e exigências de produção já era outra; sendo orientada pela querida Heloísa Martins, gozava ao mesmo tempo de liberdade para perseguir a meu modo os problemas que me inquietavam e experimentava a solidão de não participar de um grupo – agravada pelas limitações da maternidade, uma vez que meu filho nascera no final de 2005. A escrita da tese foi, nesse sentido, muito dolorida e traumática – tenho dificuldades até hoje em retomá-la, apesar de ser extremamente agradecida pela travessia que ela me permitiu fazer, em termos teórico-metodológicos.
Descontadas todas as crises e dificuldades pessoais, hoje entendo que eu me tornara extemporânea àquele espaço, que tudo aquilo se tornara ilegível para mim. Por isso mesmo, minha chegada à Faculdade de Educação, ainda que na mesma universidade, representou uma oportunidade ímpar de me reapropriar da herança transmitida pelos maravilhosos professores que pude ter (herança muito presente na sociologia da educação que ali se faz) e de me apropriar, finalmente, dos novos modos de fazer e produzir – processo que também não deixou de trazer suas tensões, uma vez que o que estava em jogo não era mais o título de mestre ou doutora, mas minha própria sobrevivência, isto é, meu contrato de trabalho (até o ano passado, o período probatório na USP era de seis anos, prorrogáveis…). Não se trata, portanto, de um saudosismo em relação a uma universidade que foi se perdendo nas mudanças; trata-se apenas de reconhecer que, em algum momento, essas mudanças me tornaram descompassada com o presente e que voltar a escrever passou por me deslocar de posição em relação à escrita, conferir a ela novos sentidos, mais afins às condições de atividade acadêmica hoje, no Brasil.
É por tudo isso que penso que a escrita vai se integrando a certa dimensão cotidiana do trabalho, desdobrando-se dos acúmulos na pesquisa, mas na docência e na extensão. E tem se tornado também ocasião de diálogo e partilha com colegas queridos – seja na coordenação de dossiês, seja na coautoria de artigos. Afinal, se disso resulta um texto, já ganhamos mais legitimidade para cavar tempo, garantir encontros e momentos de troca, e assim vamos marcando um fio vermelho na diversidade de atividades e funções que desempenhamos na universidade e preservando um modo de pensar com o qual me identifico.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esta é uma pergunta que, me parece, se desdobra em várias. Talvez uma primeira resposta resida em entender que as travas são, realmente, plurais. Existem travas que se ligam a dificuldades momentâneas, que podem ser pessoais (afinal, pessoas nascem e morrem, casamentos começam e acabam, pessoas adoecem, acidentes acontecem, muda-se de casa, assume-se cargos que demandam mais tempo…) ou se dever à própria dinâmica do processo de pesquisa.
Uma das dificuldades impostas por certo uso da produção acadêmica como lógica avalizadora de qualidade é que se desconsidera que a atividade de pesquisa não é um continuum, não é linear. Ao longo de uma (boa) pesquisa surgem dúvidas, questões, problemas não previstos e que exigem um “recalcular da rota”, como diriam os GPSs (que, vale lembrar, também precisam de alguns momentos para isso e conseguem fazê-lo mais ou menos rapidamente conforme a qualidade de sua conexão – e isso porque já têm um mapa detalhado à disposição!). Mover-se da pesquisa para a escrita é possível, ou mais fácil, nos momentos em que estamos satisfeitos com o rumo das coisas – seja porque a formulação do problema nos satisfaz, seja porque aquilo que essa formulação dá a ver contribui para dilatar a compreensão que temos sobre o assunto que investigamos. Ao longo de uma pesquisa há, portanto, momentos mais e menos oportunos para sua apresentação em congressos – que até comportam um grau maior de partilha da “cozinha” da pesquisa –, artigos e capítulos. Às vezes, a trava é temporária e significa apenas uma necessidade de reajuste; outras, sinaliza a necessidade de mudanças mais radicais de rumos.
Sinto que a internet, bem como as mudanças no sistema de pós-graduação brasileiro, em especial com seu efeito de proliferação de periódicos – concorrendo por um lugar ao sol das boas classificações –, dificultaram um tanto o trabalho de escrita, no sentido de que o volume de informações circulando é muito maior e, muitas vezes, a garimpagem do que interessa em meio ao fluxo vigoroso de publicações exige um trabalho intenso. Estamos todos premidos pela necessidade de escrever; o que, por sua vez, aumenta em muito o volume das coisas que precisamos ler para estar em dia com o campo de conhecimento no qual nos movemos e, assim, poder escrever.
Quando as travas são simples de resolver, é mais rápido – basta um tempinho para algumas leituras complementares ou pedir para que alguém de confiança leia e nos ajude a limar arestas; quanto àquelas cujas razões são mais fundas, como a que experimentei ao longo do que chamo de processo de “reconversão acadêmica”, que vivi quando cheguei à educação, aí valem as estratégias coletivas de seguir trabalhando e escrevendo em boas companhias, de modo que a parcialidade da clareza que temos possa produzir algo interessante no diálogo com outros colegas.
Finalmente, quanto a projetos mais longos, tenho lidado com a ansiedade que provocariam em termos de escrita já os desenhando em algumas etapas (e, nesse sentido, os projetos financiados bianualmente, os quais geralmente jovens pesquisadores conseguimos acessar, ajudam, por nos obrigar a definir objetivos compatíveis com o tempo e por nos obrigar, nas prestações de contas, a começar a explorar os resultados). Assim, talvez o que eu esteja apontando aqui é que as travas de escrita são minimizadas quando há uma diversidade de modalidades de escrita (relatórios, anotações de aula, resumos e papers para eventos científicos, além dos artigos e capítulos) que nos ajudam a amadurecer, inclusive do ponto de vista textual, ideias e argumentos. E então, no sentido de um projeto de escrita mais longo, o caminho é inverso – só agora, por exemplo, depois da finalização de uma das etapas de um projeto que venho desenvolvendo, é que começo a vislumbrar a possibilidade não apenas de artigos em torno dos resultados, mas da redação de um livro propriamente dito.
Uma última observação, ainda, em relação a esses processos de bloqueio ou trava. O momento da escrita pode ser um momento de angústia porque, realmente, por vezes as expectativas são muito altas – ou aquelas que temos em relação ao que estamos fazendo, ou aquelas que imaginamos que os outros tenham em relação a nós. Nessas horas, vale levar a sério a ideia de artesanato intelectual – não apenas no que se refere ao reconhecimento de que existe uma dimensão de cortes, montagem, movimento daquilo que arquivamos em “pastas” na composição de um texto, mas inclusive na sua dimensão propriamente física, do trabalho manual (pois Wright Mills montou uma casa, uma motocicleta e um carro, fazia seus pães…).
Num país como o nosso, em que o trabalho intelectual é valorizado por sua distância em relação ao trabalho manual ou reprodutivo, penso ser ainda mais importante levar a ideia de artesanato às últimas consequências: cozinhar, limpar, organizar armários, costurar, amassar pão, montar um móvel. Se jogar na vida cotidiana, aparentemente banal, em que sucesso é quando o pão cresce ou a costura fica com o avesso perfeito ou o filho (enjoado para comer) repete o prato… Ajuda a gente a ter perspectiva, a lembrar que além de abstração, ideias e cérebro, somos também carne, osso e vísceras.
E escrevendo isso, me lembrei de um poema de Leandro Durazzo (que conheci por meio de uma amiga querida):
“Quando as coisas curiosamente se tornarem tortas, estranhas, fora do lugar como uma foca albina, não sinta pena de si mesmo, nem de nada, nem de voo. Quando as coisas se esquecerem delas próprias, não se esqueça. Se alguma coisa for engano, se algum engano for a coisa, o meio termo de tua vida não deve te deixar de cama. A um nível cósmico tua vida não importa. A um nível micro, há mais coisas a fazer. O teu pequeno incômodo não se encontra nem na alta nebulosa nem na urgência do banheiro, na pequenez do ralo entupido, da banheira. Confie que o universo sabe tomar conta de si. Quando tua meia vida parecer errada, faça o que é preciso fazer, dê atenção ao que precisa ser atentado. Ajoelhe-se e limpe o ralo. Não há qualquer razão para tua mente estar em outro lado, em outro estado. Se a água não escoa mais, se é de limpeza que ali precisa, chegue lá, faça aquilo. De joelhos nos ladrilhos, com as mãos – de preferência -, seja a limpeza. Ouça as nebulosas longe se movendo, ouça estrelas, olhe a água suja a ser sugada novamente. Se o ralo entope, limpe-o. Não há qualquer razão que te autorize a não fazê-lo”.
Quando a trava parece muito apertada, às vezes o melhor a fazer é mesmo ir limpar o ralo e lembrar que esse lugar das abstrações onde nos movemos é plataforma, andaime provisório, mas não onde devemos fixar residência.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O próprio trabalho de escrita, para mim, envolve a revisão e a reescrita ao longo do percurso, pois a retomada da escrita a cada dia geralmente começa pela releitura do que já foi feito e, assim, vai-se corrigindo, mudando palavras, trocando a ordem de frases, isto é, mexendo no texto para torná-lo o mais fluido e preciso possível. Mas, quando a primeira versão completa está pronta, gosto de fazer a última revisão no impresso, para ter uma visão global e poder corrigir eventuais erros que já não vemos na tela.
Trabalhei por algum tempo como revisora e, hoje, acabo também tendo a tarefa e o privilégio de ser a primeira leitora dos textos dos meus orientandos (e sei bem que quase os enlouqueço com minhas sugestões de mudança e correções!). Sinto que este trabalho sobre o texto de outras e outros me ajuda a prestar atenção a certos aspectos da escrita e que se isso, de um lado, me faz escrever mais lentamente, me economiza tempo de revisão. De todo modo, o que faz com que a revisão termine são os prazos, sempre. O que é ótimo, porque nos salva da tentação da reescrita.
Quanto a mostrar a outras pessoas, depende do trabalho e do assunto. Antigamente, meu marido era o primeiro leitor, ao menos de trechos sobre os quais eu estava em dúvida, mas hoje, infelizmente, ele já não se prontifica à tarefa… Sobre alguns assuntos, um amigo é o leitor privilegiado. Mas estou convencida da importância da discussão de primeiras versões, então tenho tentado fazer disso uma prática em meu grupo de orientação, ao menos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto muito de escrever à mão – como comentei há pouco, tenho vários cadernos (em geral lisos, mas agora estou na fase dos quadriculados e sou capaz de jurar que ajudam a organizar melhor o pensamento do que os de linha) e, quando começo a estudar ou pesquisar um assunto, vou anotando e escrevendo ali. Mesmo fichamentos de leituras, ainda faço muitas vezes à mão. Tudo isso, no entanto, são as atividades preliminares, de reunião e exploração de um arquivo. Depois que a estrutura já está relativamente clara para mim – e traduzida num esquema desenhado à mão – escrevo no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Como o trabalho intelectual não é algo que sejamos capazes de estancar quando desligamos o computador ou fechamos o livro, as ideias vêm do encontro entre nossas inquietações e a atenção que dedicamos ao mundo. [No mestrado, por exemplo, várias compreensões importantes que tive se deram em conversas em pontos de ônibus, ouvidas ou partilhadas; ali, quando eu não era a aluna da USP entrevistando alguém que gentilmente aceitara o convite, mas simplesmente alguém que calhava de estar no mesmo carro, a horizontalidade do papo me permitia acessar aspectos da dinâmica do mundo do trabalho que eu não acessaria pela via da entrevista]. Às vezes um bom filme ou livro (ou até os maus…) nos ajuda a dar finalmente forma a alguma ideia. O encontro com amigas e amigos também é importante. Gosto e tento manter um tempo na semana para os trabalhos manuais – hoje em dia, além da cozinha e da costura, faço dobraduras de origami em tecido. A rotina também é bastante estruturante e, ao contrário do que se imagina, permite abrir espaço para o novo. Ou seja, um pouco de disciplina e exercício, outro pouco de distração e distensão e, claro, o esforço de manter sempre afiadas as perguntas de pesquisa – nossos instrumentos, afinal, para cunhar fendas na pluralidade do cotidiano.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Como comentei, fui formada de maneira a entender a escrita como final de um processo, inclusive privilegiando formas mais coesas e extensas de apresentação de resultados – o que não era um problema quando a perspectiva colocada era a entrega de uma dissertação ou uma tese. Quando precisei começar a escrever artigos, acabava travando porque tinha clareza de que não estava num momento de conclusão de pesquisa alguma e não conseguia entender como de um processo em andamento podia resultar algo que valesse a publicação. Então, mudou o sentido da escrita, que agora comporta objetivos menos ambiciosos (embora de modo algum menos rigorosos).
Entre o mestrado e o doutorado, houve uma mudança clara de estilo, de modo a incorporar a coragem de enunciar pressupostos e conclusões mais explicitamente. Na dissertação, a abordagem teórico-metodológica estava tão articulada ao modo de fazer e pensar que sua presença era estrutural – estava na divisão dos capítulos, no modo de apresentar as entrevistas e os resultados. Ossatura, não pele. Era algo que, em alguma medida, simplificava a leitura, tornando-a fluida; por outro lado, fui acusada por um parecerista de escrever de modo que “beirava o informal”… Então, esse é um fio da navalha para mim – prezo pela escrita límpida e simples, pelo esforço de não deixar que o(a) leitor(a) se sinta estúpido ao ler um texto meu, mas tenho consciência de que isso por vezes pode ser (literalmente) lido como falta de densidade ou profundidade. Meu ideal de escrita, porém, é que qualquer um(a) seja capaz de ler um texto que escrevo – com a diferença de que aqueles e aquelas mais equipados, por exemplo os meus pares, consigam acessar as camadas mais profundas que, sob a aparente simplicidade, estão lá.
No processo de preparação da dissertação para a publicação em livro, pude dialogar com um amigo querido, editor, e essas conversas acabaram tendo efeitos importantes no meu estilo de escrita, em favor (quero crer) de mais simplicidade e precisão, de economia em notas de rodapé, no uso de marcadores gráficos como itálicos e negritos, parênteses etc.
O conselho que eu daria a mim mesma se fosse voltar à escrita da minha tese talvez seja aquele que meu marido, tantas vezes, me deu: “o ótimo é inimigo do bom”. A escrita foi muito sofrida porque eu tinha noção clara do tanto que ainda não sabia e que achava que precisava saber antes de escrever e apresentar a tese. Se tivesse seguido tal conselho, poderia ter recortado, diminuído o volume de coisas a analisar, cuidado mais dos capítulos e da conclusão, me dedicado com mais vagar ao texto propriamente dito… A escrita acabou sendo o momento de ápice do desencontro sobre o qual falei anteriormente e permeada de muita dor. Quando acabou, estava certa de que ali se encerrava minha vida acadêmica – só se fosse louca escolheria viver daquela maneira. E aí temos outro conselho, talvez: a dissertação e a tese são pontos de chegada provisória, e isso é tão angustiante quanto bom. De novo a questão da escrita como desembaraço, como tessitura do fio de Ariadne que nos ajuda a escapar do labirinto em que nos enredamos por certo modo de construir o problema. Ao escrever, isto é, ao evidenciar ao leitor o fio que nos conduziu, ao mesmo tempo em que lhe mostramos nosso caminho, somos capazes de forjar uma saída.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Bastante lateralmente ao projeto que venho desenvolvendo de forma mais sistemática, no esforço de compreender o Estado que resulta das transformações que vivemos nos últimos 30 anos, a partir da consciência sociológica de trabalhadores nas pontas mais descentralizadas das políticas sociais, gostaria de dedicar um olhar mais cuidadoso aos deslocamentos e à consolidação da literatura de testemunho como gênero, em especial em nações com passado colonial, seus efeitos sobre modos de subjetivação política e suas conexões com políticas de memória e transformações na configuração estatal. É ainda a mesma inquietação que me mobiliza, mas montando a questão de outro modo.
Em relação à segunda parte: entre o final de 2017 e o início deste ano, li um livro de Scolastique Mukanasonga, A mulher de pés descalços, e outro de Han Kan, A vegetariana. Um livro sobre Ruanda, bem ao modo das narrativas testemunhais e outro enraizado na Coreia do Sul, quase perto do realismo fantástico. Ambos belíssimos e, a seu modo, impensáveis para mim. Não sei se se trata de querer ler livros que ainda não existem – o que chamamos de mundo, em geral apenas as cores e os tons que nossos olhos e ouvidos alcançam, parece tão saturado da sensação de que “tudo já foi dito”. E, de todo modo, de que valeria encontrar o que desde já sou capaz de desejar? Penso que se trata de me abrir à diferença, àquilo que nem sei desejar porque não conheço, porque não sou capaz de pensar, e que só vou descobrir que eu não era, nem pensava, quando encontrar. Desses encontros, talvez, sejamos capazes de rasgar alguma abertura para fazer passar o que ainda não existe. Para arranhar o que existe e sua atual asfixia, talvez seja menos uma questão de mais (do mesmo) do que de outros jogos entre o que já existe…