Julio Groppa Aquino é professor titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Creio que, quanto mais se avança na idade, mais as manhãs começam a tomar um lugar privilegiado na rotina escritural. Foi o que sucedeu comigo. É nas manhãs que muitas vezes se equacionam alguns enigmas escriturais do dia anterior, à moda de um jogo de palavras cruzadas que se resolve sem grande esforço após uma pausa do pensamento. Minhas manhãs são, assim, um momento propício para a reescrita, ao passo que minhas noites são mais afeitas à fabulação. Se o sono só faz remexer o espírito, baralhando os acontecimentos a que somos expostos, as manhãs tornam-se, então, ocasiões de decantação e, em seguida, de poda. Há de envelhecer para conhecer sua força.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há uma regra geral para tal, uma vez que estou quase sempre em estado de escrita – sem que isso se confunda com o trabalho da redação ipso facto. Ao contrário, não se escreve quando se está tomado por esse estado e suas estranhezas tantas. Nele, aguenta-se, e pronto. Isso se passa, quero crer, com aqueles a quem a cronologia da vida se resume a terminar um escrito para poder iniciar outro, enredados que são em um torvelinho de forças insuspeitas e jamais refreáveis. Para eles, a expectação os atravessa como uma flecha todos os dias, todas as horas. Assim, tal como se passava com Clarice Lispector, escreve-se quando não se pode mais evitá-lo, muito antes de querê-lo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não consigo me fiar verdadeiramente na conjectura que haveria algo semelhante a uma meta escritural, a não ser para aqueles que ensejam ingressar na Academia de Letras. No meu caso, na condição de docente-pesquisador universitário, embora eu o faça por profissão, escrever consiste rigorosamente em um modo de vida outro, descobri com o passar dos anos. Não sem uma boa dose de angústia – nunca se sabe o que acontecerá de fato –, escrevo por espasmos e, muitas outras vezes, com vistas a uma mera reconstrução, do modo mais cuidadoso possível, do que antes me ocorreu de maneira atabalhoada ou, pior, grandiloquente. Sai de cena o arquiteto, entra o pedreiro. Sem este, aquele não sobreviveria.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Iniciar, suponho, é o calcanhar de Aquiles de quem escreve, uma vez que as palavras em estado de dicionário, como escreveu Drummond, são infinitamente mais potentes do que quando encurraladas na forma textual. Daí que é terrivelmente difícil começar um texto quando se tem em vista um tipo de escrita não representacional ou, mais simplesmente, uma escrita que não se proponha a fazer expressar um sujeito nem a descrever um objeto. Com isso, quero dizer que, embora estejamos sempre referidos a algo que já foi escrito por outrem – mesmo que não o tenhamos imediatamente em mente –, escrever implica uma inauguração no mundo, e não uma mera recomposição descritiva dos fatos que nos rodeiam ou que nos interceptam. Desse ponto de vista, escrever é postar-se diante de um abismo. Ali, treme-se, e só.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Mediante a dramaturgia psicológica típica do escrevente – acabo preferindo este à designação de escritor – responsável pelos temores vários advindos do apequenamento e da vitimização diante dos outros escritores e suas gramas sempre mais verdes, só há um remédio: o deadline. Ele organiza o espírito, já que oblitera o arbítrio do próprio sujeito, deslocando-o para fora de si próprio. Trata-se de uma escrita contra o tempo, por assim dizer, e, em geral, de fibra bastante bem mais honesta do que aquela originada no reino da dita inspiração – um dos muitos clichês perniciosos do métier, a meu ver. Entre a musa e a oportunidade, sou adepto da segunda. Novamente, trata-se apenas de escrever por espasmos e, inevitavelmente, a fórceps.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sem nenhum exagero, tenho o costume de revisar meus textos centenas de vezes. O processo desenrola-se mais ou menos assim: escrevo uma linha e, então, volto a ela algumas vezes, porque dela depende todo o restante. No meio da segunda linha, retorno à primeira e a mudo. Na terceira, volto à segunda e, se necessário for, à primeira. E assim sucessivamente, linha a linha, parágrafo a parágrafo, de modo a atingir o limite do absurdo. Tendo em mente que meus textos, em geral, ultrapassam as 20 páginas, o grau de obsessão é tamanho que, ao cabo da experiência, estou completamente esgotado e, sobretudo, enfastiado do que escrevi. Aliás, o resultado do processo de escrita se me afigura invariavelmente como nada além de uma excrescência. Em raríssimos casos tenho algum apego a algo que já escrevi, mas ele é logo passageiro. Sofro meus textos, não gozo com eles. Isso porque, para mim, a escrita é aquela que está por vir. É preciso, portanto, aprender a conviver com certo sentimento inevitável de impostura, de desconcerto e, por fim, de desapreço por si mesmo. Por outro lado, é preciso também nutrir um encanto extra pela primeira linha de um texto, sempre misericordiosa para quem o redigiu. Quanto aos leitores de primeira mão, há alguns ocasionais. Tento ter o cuidado de não os sobrecarregar com essa tarefa inglória. Gostam de mim e, por força do hábito, do que escrevo. Mas não é para eles que escrevo, feliz ou infelizmente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo sempre no computador. O advento deste meio permitiu o trabalho de rasura ao infinito de que eu falava antes, já que sou do tempo em que, uma vez datilografado, o texto não podia ser alterado. Se o fosse, teria de ser datilografado de novo. É preciso também recordar o advento do corretor líquido: um pequeno milagre para quem tanto dele se valeu. Aquele tempo tão longínquo, hoje vejo, continha lá sua virtude, pois moderava a ânsia por uma escrita supostamente irretocável. Nesse sentido, a pior desgraça que pode se abater sobre mim ocorre, ainda, ao deparar com algum erro de grafia ou de pontuação quando o texto já foi publicado. Nessas horas, é preciso ter alguma compaixão consigo mesmo, bem como algum desprendimento; este bem mais viável do que aquela. Aquiesço então: aquele escrito não mais me pertencia, caso tivesse pertencido algum dia.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias – melhor seria dizer emanações, já que elas não se me afiguram como algo propriamente formalizado – advêm, sem dúvida, do encontro com as coisas ditas neste mundo, o que pode incluir falas triviais, mas, amiúde, matérias já pensadas/escritas por outrem, como se eu continuasse cantando, por minha conta e risco, algo que me foi soprado no ouvido por alguém ausente. Nada afim ao que se denomina criatividade, portanto. Quero crer, assim, que acabo por operar como um imã arquivístico: o que atrai minha escuta – mais comumente o que me comove e menos o que me indigna – tem o condão de gerar alguma réplica em mim, à moda de um diálogo tardio e insuficiente com os protagonistas desses encontros, criaturas já desaparecidas ou em vias de desaparição. Em suma, escrever perfaz-se como nada além de um gesto amoroso e, ao mesmo tempo, in memoriam.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Tal como dito anteriormente, minha interlocução preferencial é com os autores mortos. Disso decorre que se, de uma parte, consigo atestar alguma sofisticação em meu modo de escrita, por meio de um anseio cada vez menos pedagógico, isto é, uma demanda cada vez mais rarefeita de me comunicar com um suposto leitor a quem eu deveria, em tese, transmitir algo edificante, de outra parte, pressinto uma escrita cada vez mais minimalista e, no mais das vezes, mais circunscrita a determinados problemas pontuais. Por que inflacionar ainda mais o mundo? Não seria a própria dissolução escritural o ponto de chegada de qualquer escrita que mereça seu nome? Trocando em miúdos, não residiria uma iminência bartlebyana em cada belo escrito pretérito? Eis o que o tempo parece ter me mostrado, caso eu o tenha compreendido. Daí que, se me fosse permitido voltar atrás, eu diria a mim mesmo: desista; prefira os vivos; contente-se com o que está ao seu alcance; durma suas noites em paz.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Em primeiro lugar, julgo demasiado pretensioso imaginar um livro que não existe, já que, certamente, tudo o que eu fosse capaz de imaginar já foi escrito, séculos atrás, por algum monge medieval ou por uma cortesã chinesa. Bastaria investigar. Desta feita, prefiro me orientar, do ponto de vista dos chamamentos da escrita, a partir da premissa de certa ignorância ativa em nós do que segundo uma ilusão do tipo revolucionário-criativa. Aprecio, portanto, uma escrita de teor mais arquivístico e menos de tipo original, independentemente do gênero, aliás – eis aqui outra palavra de ordem do métier totalmente prescindível, a meu ver. Em segundo lugar, vejo-me cada vez menos seduzido por um projeto escritural totalizante e mais atento às possibilidades fáticas de uma escrita bem cuidada, seja em qual suporte ela se der. De e-mails a pareceres acadêmicos, de mensagens de whatsapp (excluídos os emoticons e congêneres) a relatórios de pesquisa ou enquetes sobre o como escrever, o intuito é um só: oferecer ao mundo algo tão ou mais bem talhado do que aquilo que dele recebi. Um noblesse oblige escritural, se se quiser. Trata-se de uma vontade resoluta de honrar este mundo que me precedeu, mesmo que, em grande parte das vezes, eu preferisse dele me evadir. Resto aqui, entretanto.