Bruna Kalil Othero é escritora e pesquisadora, mestra em Letras (UFMG) e autora de “Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas” (2019).

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Antes de tudo, gostaria de agradecer ao José Nunes pelo convite a essa segunda entrevista, e aproveito para parabenizá-lo por manter esse projeto tão importante, que registra os hábitos de escrita e técnicas dos autores e autoras do nosso tempo.
Se já existiu alguma organização na minha vida caótica de escritora, isso desapareceu com a pandemia. A escrita literária pra mim sempre esteve na ordem do mistério, dependendo mais do meu humor do que do meu planejamento (como já falei um pouco na minha outra entrevista aqui no site). Ainda assim, escrever é um trabalho, e, portanto, exige organização. Então a vida de escritora é um andar constante na corda-bamba: se eu não me planejar, fudeu; mas posso estar super organizada e não conseguir escrever nada. Geralmente, as deusas da literatura são sacanas: as melhores ideias vêm em momentos inconvenientes. Ex.: no banho, durante o sono da madrugada, no meio de uma foda espetacular, ou em qualquer momento em que não há papel e caneta à disposição. Esse estilo místico da escrita funciona bem pra poesia, pois os poemas vêm esparsos, surge a ideia, me dedico a ela, em alguns dias ou semanas está pronto. Agora, pra prosa, não é bem assim que a banda toca. Tem uns anos que tenho me aventurado a sair da poesia e penetrar no caminho da narrativa. Escrever contos tem um pouco desse método fragmentado da poesia, também. Porque vem uma ideia de um texto (comigo, geralmente o que surge são as primeiras frases. sou tarada num começo de texto), eu sento ali, trabalho ela, dias, semanas, e fica pronto. Vamos pro próximo. Depois de alguns meses ou anos, vejo que ali tem um livro. E aí organizo aqueles fragmentos pra ver se eles fazem sentido numa narrativa coesa. Isso funciona pra poemas e contos. Mas pra romance não. Já escrevi um romance (não publicado) e estou trabalhando em outro, que exige muito mais organização e planejamento do que qualquer coisa que já escrevi antes na vida, porque é um projeto mais ambicioso. Etapas da escrita do romance:
- Ideia.
- Ideias.
- Pesquisa. (essa é a parte mais longa, demora meses ou anos, porque eu sou uma pesquisadora compulsiva, quero ler absolutamente tudo que foi escrito pensado refletido sobre aquele assunto. só que chega um ponto que você não aguenta mais, se continuar pesquisando pra sempre não vai escrever nunca. então aceito a impossibilidade da pesquisa perfeita e sigo pra escrita. não cheguei nesse ponto ainda no meu romance novo. mas vai chegar)
- Estruturação da narrativa (capítulos? fragmentos? texto ininterrupto? qual vai ser, minha filha?)
- Encaixe dos fichamentos da pesquisa na estrutura feita.
- Escrita propriamente dita.
- Depois repete tudo de novo, porque quando a gente começa a escrever, vê que o texto tá pedindo mais pesquisa aqui, mais poesia ali, mais leitura alheia aqui, etc.
Tudo isso pra dizer que, sim, meu negócio é trabalhar em um tanto de coisa ao mesmo tempo, por falta de amor à minha própria vida e excesso de dedicação à Arte, maior do que eu e do que você. No momento estou trabalhando nos seguintes projetos:
- Revisão de um livro de contos (vou reescrever todos os contos porque já acho eles horríveis, após o respiro necessário na gaveta — o período que um texto precisa ficar separado da sua autora para ver se passa no teste do tempo)
- Pesquisa/escrita de um romance (esse que tava falando agora)
- Pesquisa/escrita de um livro sem gênero (não sei ainda se é poesia, ensaio, narrativa, sátira ou uma mistura de tudo)
- Escrita do meu diário (projeto no qual estou envolvida desde os 11 anos, e planejo que dure até o meu último respiro na superfície terrestre)
- Escrita de poemas esparsos (a pandemia tem me tirado o tesão da poesia, mas vez ou outra surge um verso e eu escrevo — no meu último aniversário, fiz um soneto dos vinte e cinco anos, coisa que não acontecia há tempos. amo sonetos, essa forma é uma delícia)
- Escrita de dois ensaios analíticos sobre literatura brasileira contemporânea (aqui já é mais acadêmico, mas eu sou uma acadêmica promíscua [termo da Laura Cohen Rabelo] e misturo literatura sempre na minha escrita teórica)
Agora vou pra próxima pergunta senão fico nessa eternamente.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu me vejo como uma escritora de fragmentos. Geralmente, me vêm frases: a primeira, a última. (importante frisar isto: me vêm frases, não ideias. escrevo mais linguagem que enredo) O meio é sempre o mais difícil. Me sinto o Bentinho fazendo o seu soneto no seminário: ele só conseguiu fazer o primeiro e o último verso, o meio não veio. Já velho, ele dá esses dois versos a um desocupado que desejar preenchê-los (obviamente, a Bruninha adolescente aceitou o desafio, e esse foi o primeiro soneto decassílabo que escrevi na vida [antes escrevia “sonetos” sem métrica, por ignorância]). Isso é uma metáfora perspicaz do Machado para a estrutura geral do romance — Dom Casmurro escreve porque quer atar as duas pontas da vida, restaurar na velhice a adolescência. Mas esse desejo está fadado ao fracasso, porque é impossível recompor o que se foi em quem se é. Enfim, filosofia. Tem textos que escrevo que precisam de um planejamento maior (como romances), mas na maioria das vezes eu vou deixando fluir. Uma coisa que aprendi nesses anos todos é que o texto vai te dizer o que ele precisa. Por isso é importante escrever sempre, ou tentar criar uma rotina de produção, porque às vezes começando a escrever despretensiosamente pode surgir algo genial. Ou não, também. Mas sempre há o dia seguinte.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Silêncio é essencial. Pena que vivo no Brasil. Risos. Eu não tenho escritório, não tenho mesa de trabalho, sou uma estrangeira em todas as mesas. Acho que isso influencia na minha atitude caótica, sinto que quando tiver um espaço de trabalho vou ser mais organizada (ou isso é só ilusão de artista). Por um lado, é bom, porque me acostumei a escrever em qualquer lugar — meus livros todos foram escritos na UFMG, em ônibus, no meio da rua, em cafés, no meu quarto, na sala de aula, no banheiro… Por outro lado, é péssimo, porque fico nesse exílio permanente. Lembro sempre da Virginia Woolf em Um teto todo seu, conferência de 1929 sobre mulheres e ficção. Nesse livro, ela fala da importância da mulher ter um espaço pra escrever, com tranca na porta (privacidade) e uma renda mínima anual (autonomia financeira). Falei um pouco disso aqui. Enfim, por conta dessa vida mambembe, não consigo ter uma rotina fixa, mas no futuro terei (ou isso é só ilusão de artista).
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Nunca procrastino, porque sei que tudo que faço é trabalho. A vida da escritora é trabalhar 24h por dia, todos os dias. Não tem férias nem CLT, infelizmente. Lista de coisas que são trabalho:
- Ler
- Escrever
- Ouvir
- Masturbar-se
- Observar o mundo ao redor
- Utilizar entorpecentes
- Alimentar-se bem
- Fazer exercícios físicos
- Assistir filmes e séries
- Jogar jogos
Ou seja, se não consigo fazer os itens 1 e 2, vou fazer os outros itens. Tudo isso faz parte da rotina da escritora, porque a vida é nossa matéria de investigação. Para escrever, é preciso viver. Se não vivo, não escrevo. Por isso, a vida é mais importante que a escrita. Demorei a entender isso. Passava dias e dias me remoendo, pensando: preguiçosa, vai ler, vai escrever, vai trabalhar! sem perceber que estar na rede balançando e ouvindo o barulho de obra do vizinho é, também, uma espécie de trabalho — vejam só como usei essa experiência nesse texto! E você achando que eu tava falando besteira! Mário de Andrade, na sua primeira carta ao jovem Drummond, em 1924, fala que grande parte do trabalho dele como escritor é estar vivo: caminhar a pé, sofrer recusas de amor, escutar Bach. Porém, segundo Mário, não basta estar vivo, é preciso “gostar da verdade da vida”, sair do gabinete: Que diabo! estudar é bom e eu também estudo. Mas depois do estudo do livro e do gozo do livro, ou antes vem o estudo e gozo da ação corporal. Pegando carona no conselho do guru modernista, se sinto que estou muito travada pra escrever, tenho três remédios indefectíveis: ler (a melhor forma de escrever é ler); ouvir (fofocas são matéria literária, uma frase qualquer de uma pessoa qualquer pode virar um texto estupendo); masturbar-se (a escrita e o tesão são da mesma ordem).
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Dos publicados, acho que Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas, um livro de poesia feito a partir do diálogo com a Semana da Arte Moderna. Ele foi selecionado num Prêmio do Ministério da Cultura, antes de ser extinto pelo atual presidente. Deu muito trabalho porque só pude escrever esse livro depois de viver vinte e três anos no Brasil. Então foram vinte e três anos de trabalho e de pesquisa. Além disso, tive que reler toda a obra dos modernistas que tinha lido na adolescência e na graduação em Letras — fui de novo no Mário, na Tarsila, no Oswald, no Carlos, no Manuel, na Patrícia, esse povo todo. Esse livro também só foi possível depois de duas viagens, uma pro interior de Minas e outra pra Amazônia (depois fui ver que segui o conselho de Mário sem sabê-lo: Em vez de irem se pavonear tolamente em Paris, os escritores devem pegar sua trouxa e desenterrar seu próprio país. Ouro Preto ou Manaus, em vez de Montmartre ou Florença!). É difícil falar de orgulho na literatura, porque escrever é o oposto absoluto de qualquer tipo de orgulho, mas tenho ficado feliz com a recepção que o Anticorpo (2017) ainda recebe, mesmo anos depois de publicado. É uma obra sobretudo acerca da sexualidade feminina, aí direto mulheres me mandam mensagem falando que se masturbaram pela primeira vez após ler meu livro, ou que só depois dele tiveram coragem de terminar relacionamentos abusivos. Isso é de uma alegria imensa. Mostra que a literatura, apesar de inútil, é muito útil.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Os primeiros livros escrevi sobre o que pensava e sentia naquele momento. Os mais recentes já têm um trabalho de pesquisa maior, além de um projeto que estou empreendendo: uma investigação literária, sarcástica e sem-vergonha da história do Brasil. Comecei com o Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas, que conversa com a Semana de 22. O próximo, Tinha um Pedro no meio do caminho, fala da nossa independência. Ele foi premiado pela Secretaria Especial de Cultura e no momento está engavetado para ver se sobrevive ao teste do tempo. O meu romance também entra nesse projeto, mas não quero falar dele ainda — deixemos o mistério. Não escrevo pensando em leitora ou leitor ideal. Só me faço as seguintes perguntas na feitura de qualquer texto: Hilda Hilst aprovaria? Monteiro Lobato aprovaria? Se a primeira resposta for sim e a segunda for não, eu publico. Se as duas forem não, também. Se ambas forem sim, reescrevo.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Mostrar rascunhos para os primeiros leitores é a maior demonstração de amor e intimidade que alguém pode receber. Afinal, é um momento de exposição extrema. O texto, nu em pelo, esperando para finalmente cumprir seu destino: ser lido. Eu gosto de mostrar quando já tenho algo um pouco mais estruturado, mas às vezes mando só uma frase pra leitoras de confiança e digo: e aí amiga? que vc acha? me ajuda!!! etc. Tenho a sorte de ter grandes leitoras e leitores por perto que me honram com suas leituras críticas: todo o amor do mundo a Laura Cohen Rabelo, Maria Thereza Pinel, Laura Gomes, José Eduardo Gonçalves, Sofia Perpétua, Filipe Dias Vieira, Pablo Heinrich, Felipe Cordeiro. Adoro quando eles me elogiam, mas amo mesmo quando me xingam.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Eu decidi me dedicar profissionalmente à escrita com 15 anos, quando comecei a levar a sério o que escrevia, passando a chamar minhas produções de textos e não de coisas. Nesse momento, percebi que, para ser uma escritora, precisaria ler muito. Então me entreguei de corpo e alma à literatura, sobretudo a brasileira: nesses três anos de ensino médio devo ter lido uns 300 livros, lia ferozmente, com fome com fúria, tentando tirar o atraso que, inevitavelmente, nunca será tirado. O que eu gostaria de ter ouvido quando comecei: calma, minha filha. pra quê essa pressa toda? Na verdade, até me falaram isso, mas eu não escutei. Enfim, a juventude. Acho que publiquei muito rápido, hoje releio meu primeiro livro e vejo que ele precisava de mais tempo de gaveta. Mas não me arrependo de ter publicado, ele foi muito importante naquele momento. Já que não ouvi, busco repassar esse conselho a todos os meus alunos, usando as palavras de Machado de Assis: não precisa correr tanto; o que tiver de ser seu às mãos lhe há de ir. Literatura é inimiga da pressa. Todo texto precisa de tempo: pra ser escrito, pra respirar, pra ser revisado, pra ser reescrito, pra ser preparado, pra ser publicado. Hoje em dia acho inconcebível publicar qualquer coisa sem, no mínimo, um ano de gaveta (o ideal são uns 3 anos, talvez. o Milton Hatoum espera 30 — e me xinga falando que eu publico rápido. ele está certo, obviamente).
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
A coisa mais difícil do mundo é cortar o cordão umbilical dos autores que você admira. Eu já tive várias obsessões literárias, cujo estilo eu imitava (antes de conhecer a antropofagia) com devoção: Álvares de Azevedo, Machado de Assis, Fernando Sabino, Hilda Hilst. Esses quatro foram a minha bússola literária, norte sul leste e oeste, me ensinaram a geografia da escrita, e sou muito grata a tudo que aprendi com tão grandiosos professores. O meu maior problema na verdade foi a Hilda. Quando eu li sua obra completa (estudei-a no mestrado), pensei: fudeu. Não dá pra escrever mais nada, essa filha da puta já escreveu tudo. Então fiquei um tempo de luto pela escritora que eu poderia ter sido e não fui, porque HH já foi antes de mim. Mas depois percebi que pensar assim era besteira, e isso me deu mais liberdade: o mundo já teve Hilda Hilst, não precisa de outra. Então vou ser Bruna Kalil Othero — eu ainda não existia, até então. Aí cortei o cordão umbilical da minha mamãe e dos meus papais literários e me inventei como escritora. Quem sou eu? Uma sem-vergonha que escreve no século XXI. Qual é o meu estilo? Deboche, brincadeira, misturando referências eruditas e populares, sempre com os pés firmes no presente (ih, gente, até eu perceber que vivia no século XXI foi um rolezão… vivi muitos anos no século XIX, mais ainda no XX…). Escrevo o meu tempo, escrevo meus pares, escrevo o mundo lá fora e o mundo aqui de dentro. Escrevo o Brasil, sobretudo.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
A minha mais recente obsessão foi a escritora estadunidense Chris Kraus, que escreveu a obra-prima I Love Dick (1997), uma mistura de ficção, ensaio, diário, epistolografia, teoria literária, enfim, só coisas que eu morro de tesão. O livro todo é um tesão, aliás: a sua estética e seu conteúdo são um bálsamo pra mulher sem libido no Brasil do Bolsonaro. Chris Kraus me lembrou que eu sou um corpo pensante, que teoriza, escreve e sangra todo mês. Deusa. Mas não sei se recomendo esse livro pra todo mundo, porque pode ficar meio enfadonho aos leitores sem costume de ler teoria literária (eu amo). Então indico outro livro que gostaria de ter escrito: Alias Grace (1996), de Margaret Atwood, um romance histórico sobre uma jovem condenada pelo assassinato do seu patrão e da governanta da casa em que trabalhava. A narrativa é absurda, incrível, maravilhosa, e investiga as complexidades e dificuldades em torno da imagem da mulher assassina. Esses dois livros, aliás, tiveram excelentes adaptações audiovisuais: Eu amo Dick, no PrimeVideo, e Vulgo Grace, na Netflix. Assistam e depois me agradeçam.