Bruna Kalil Othero é poeta, autora de Anticorpo e Poétiquase.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nos dias de semana, acordo às 7h e tomo café da manhã. Essa parte é importantíssima. Sem comer alguma coisa que me sustente e tomar uma gorda xícara de café, nada feito. Depois, vou para a UFMG estudar, ler, escrever, trabalhar no meu lado acadêmico. Nos fins de semana, me dou descanso: acordo a hora que meu corpo quiser, e evito escrever. Só leio. A escrita acadêmica eu reservo aos dias de semana.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A manhã é o meu momento mais produtivo para o trabalho intelectual, principalmente o voltado à minha pesquisa de mestrado, na qual eu estudo a obra da Hilda Hilst. Com fone de ouvido ouvindo playlists de jazz dos anos 20 (inclusive estou ouvindo uma agora), ou gravações de orquestras sinfônicas, leio e escrevo meus ensaios e trabalho na minha dissertação. Essa é a minha rotina acadêmica. Já para a escrita literária, a coisa é diferente. Sinto que preciso de um momento encantatório, algo místico, meio mágico. Esse instante pra mim ocorre às noites, e dura madrugada afora. Quando a casa está silenciosa. Meu quarto tem umas luzes em cima da cama que deixam o ambiente com um tom lírico. Fecho a porta, coloco essas luzes, acendo um incenso e escrevo. Completamente entregue ao texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas de escrita, não sei se funciona assim. Pelo menos não pra mim. Quando tenho alguma ideia mirabolante, que me dá tesão, fico louca naquilo e escrevo compulsivamente. Foi assim na escrita do Anticorpo, meu segundo livro. Tive essa ideia de fazer um livro de poemas sobre corpo, e pronto. O dia inteiro, todos os dias, rabiscando versos, palavras aleatórias, no bloco de notas do celular, nos caderninhos que carrego comigo. Quando chegava em casa, à noite, fazia o ritual da resposta acima e trabalhava naquelas migalhas poéticas. Para a minha verve acadêmica, eu tento ser mais organizada, e me coloco alguns prazos para entregar ensaios ou artigos. Mas sem metas de escrita, coloco o prazo e pronto. E me viro pra terminar tudo até o dia que fixei.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pra mim, o mais difícil é chegar na centelha inicial. Aquela ideia que vai me guiar pelo resto do caminho. Depois que já me dá aquele clique na cabeça, aí é só alegria: me dá um tesão demais ir escrevendo os ensaios depois que já fiz todos os fichamentos, já organizei mais ou menos em partes, e só falta encaixar tudo. É a parte que mais gosto. Então, cronologicamente: primeiro, vou lendo tudo que acho que tem a ver com a pesquisa, livros, artigos, entrevistas, tudo. Marco as partes que me interessam. Espero o clique. Marco mais partes. O clique chega. Fico entusiasmada. Faço um esquema de escrita, divido aquele ensaio ou artigo em algumas partes. Só depois de fazer isso é que faço o fichamento, encaixando nas partes as citações e ideias que me interessam. Por fim, deixo a minha veia criativa guiar a costura do ensaio: vou juntando tudo com meus pensamentos e minhas críticas. É uma delícia.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Recentemente, descobri na terapia que eu me encho de coisas pra fazer para que eu não tenha tempo para duvidar de mim mesma ou daquilo que estou fazendo. Então não costumo procrastinar muito. Não é uma boa estratégia, mas estou trabalhando nisso. Ainda não tive um grande bloqueio criativo, só alguns momentos em que não sai nada, e tudo bem. Saio para espairecer, tomo um banho, bebo vinho. Depois volta. O medo de não corresponder às expectativas é algo que eu já deixei pra lá. Já aceitei que nunca vou agradar todo mundo, então agora busco agradar a mim mesma.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso compulsivamente. Todos os dias. Até me cansar completamente daquilo. Até decorar tudo que escrevi. Depois disso, envio pra outras pessoas, amigas, leitoras. É bom contar com o olhar do outro. Tenho sorte de ter bons leitores por perto, trocamos muito.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Estava ansiosa para essa pergunta. (risos) Poesia, só consigo escrever à mão. Sinto que o texto precisa passar primeiro pelo meu corpo antes de chegar no papel. Esse momento é muito erótico pra mim. A mão que segura a caneta e rabisca no papel. É uma comunhão muito íntima entre a escritora e seu caderno. Tenho muito apego aos meus cadernos, cada um traz uma memória afetiva muito grande. Vejo a capa e já sei em que época da minha vida escrevi aquilo. É um registro também. Um documento analógico, uma foto tirada naquelas Kodaks dos anos 90. Quando estou organizando um livro, tenho algumas etapas. O poema surge sempre primeiro no caderno. Na hora da organização, passo todos os textos à máquina, tenho uma Olivetti linda. Gosto desse momento porque o texto ganha materialidade. Coloco aquelas folhas todas, datilografadas, no chão, pra pensar em como será a organização daquilo. Só depois de fazer isso é que passo pro virtual.
Prosa, só sai no computador. Meu texto narrativo ainda é inédito, mas eu escrevo umas coisas bem doidas, cheias de fluxos dialógicos e vozes polifônicas. Por isso, é difícil fazer à mão, o corpo não consegue acompanhar a velocidade do pensamento. A digitação vai mais rápida. E a escrita acadêmica também é toda no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Olha, eu não sei. Tem toda uma discussão disso na literatura, coisa e tal, a Hilda falava que existia inspiração sim, vinha um verso no meio do banho e ela saía correndo pelada pra escrever, um negócio místico, sem explicação. João Cabral, engenheiro das palavras, falava disso da labuta do texto e tudo. Eu concordo um pouco com os dois. Não acho que é 100% inspiração, mas também não é tudo trabalho. É uma mistura dessa coisa mágica e do suor da escrita. Acho que quem escreve tem aquelas antenas da raça das quais o Pound fala. Para se manter criativo, precisamos exercitar a nossa sensibilidade, deixar a antena a postos para pescar algo fantástico na mesmice do cotidiano. Escritor não tem férias. O dia todo, todos os dias, a cabeça fica em polvorosa, pensando, inventando. Qualquer acontecimento pode virar matéria literária.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita dos seus primeiros textos?
Mudou muito. Quanto mais eu leio, mais eu sinto que a minha escrita muda, se desenvolve, cresce. Acho que é isso: a leitura fomenta a minha escrita. Quando comecei a escrever, eu copiava muito (ainda não conhecia a antropofagia do Oswald). Lia Álvares de Azevedo, escrevia cem sonetos seguindo aquela estética. Lia Machado de Assis, me aventurava a escrever uns contos bem machadianos, ambientados no século XIX. Depois de um tempo, percebi que não adiantava escrever sobre o passado vivendo no século XXI, ninguém ia querer ler. Se quisessem, leriam o Álvares e o Machado, muito melhor. Foi quando conheci os escritores contemporâneos. Quer dizer que eu posso escrever sobre internet? Masturbação? Uai, que chique. Vamos, então. E aí comecei a achar a minha voz no meio daqueles escritores todos que eu lia.
Acho que não diria nada pra mim mesma. Tudo foi do jeito que tinha que ser, pra eu chegar até aqui. Talvez só dissesse algumas palavras de incentivo, teria sido bom ouvir isso na adolescência. “Não escuta esse pessoal que te põe pra baixo. Dá pra criar carreira em cima da literatura sim. Continue. Persista”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho um documento no Google Drive que se chama: “ideias pra um livro”. São duas páginas com ideias de livros que eu gostaria de escrever. Vou compartilhar um que sou incompetente de fazer. Queria escrever um mesmo poema e fazer 50 títulos diferentes pra ele, mudando o seu significado. Esse livro seria muito incrível. Se alguém quiser escrevê-lo, sinta-se à vontade, não acho que eu seria capaz.