Ádlei Duarte de Carvalho é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina é bem comum. Igual, provavelmente, à da maioria dos modernos escritores brasileiros, que, com raríssimas exceções, não podem, ainda, viver exclusivamente da literatura. Então, sem muito me delongar nesta questão, me levanto por volta das sete horas, me banho, me visto e tomo, ainda em jejum, meio copo de água com suco de limão, para equilibrar o PH do estômago. Depois, um comprimido para controlar a pressão e outro para o colesterol. Só então, alcanço o sagrado direito de sorver longa e prazerosamente uma boa caneca – esmaltada – de café. Beijo minha filha, minha esposa, e saio para o trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Faço aqui uma distinção entre a escrita da poesia e da prosa – que, no meu caso, é mais voltada para o romance. É que, na verdade, não consigo me programar para escrever poema. Ele é que me surge de repente, vez ou outra, da observação atenta, como o pássaro ao ornitólogo; ou nasce de alguma reflexão que venho nutrindo sobre as coisas da existência ou, ainda, da exultação e da dor, que sempre nos surpreendem. Quando isso acontece, é preciso registrá-lo imediatamente e guardá-lo com carinho, feito uma pedra bruta, para lapidá-lo depois, nalgum dia, ou deixá-lo viver como veio, ou, ainda, descartá-lo.
Já a escrita do romance requer, para o meu estilo de literatura, pesquisa às vezes muito aprofundada, e isso exige tempo, determinação e amor ao que pretendo criar. Quando me dou a escrever um novo livro desse gênero, costumo fazê-lo após as vinte horas, se durante a semana, ou durante todo o dia, se aos sábados ou domingos. Algumas vezes, se as ideias fluem bem, me esqueço do tempo e adentro as madrugadas navegando sobre as palavras.
Não tenho, propriamente, um ritual para escrever romance, mas tenho uma condição ou, antes, uma necessidade: estar descansado e tranquilo, sem grandes preocupações com outras coisas da vida. Aí, o trabalho flui melhor.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta de escrita diária. Isso não funciona comigo, até em razão do que já respondi nas perguntas anteriores. Não consigo, simplesmente, decidir que vou escrever e fazê-lo bem. Preciso estar intimamente preparado e, claro, inspirado. Quando isso acontece, o ofício me absorve por inteiro. Passo o dia a pensar no que escreverei mais tarde. Então, não tenho uma rotina diária de escrita, mas não me importo com isso. Minha meta é escrever bons livros, ainda que poucos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Considerando o que já respondi na segunda pergunta, relativamente à poesia, penso que devo me debruçar, nesta pergunta, apenas sobre o meu processo de escrever em prosa.
No meu caso, normalmente, surge primeiro a vontade de retratar algo: algum período da história ou um fenômeno social, por exemplo. Depois, nasce a ideia mestra, a espinha dorsal do romance, que me conduzirá daí por diante e me indicará, inclusive, o tamanho e a complexidade da pesquisa que se fará necessária. Invariavelmente, o estudo não se esgota previamente: move-se conforme as exigências do texto. Cada escritor tem o seu ambiente literário, ou seja, um universo temático em que sua escrita se situa melhor. Alguns, pelo estilo, talvez nem careçam de grandes investigações. O meu precisa demais desse trabalho, porque, quase sempre, minha literatura se encontra ambientada no passado. Quando sinto que a carga será muito grande, recorro à minha esposa, Lilian Mari, que é historiadora e faz o trabalho investigativo de que necessito.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Primeiramente, devo esclarecer que não me dou bem com projetos preconcebidos, assim considerados aqueles em que há prazos e temas já definidos. Em outras palavras: não faço literatura sob encomenda. Minha escrita precisa de liberdade irrestrita. Assim, uma vez que eu só escreva o que me apraz e quando me sinta em condição de realizar um bom trabalho, não tenho trava alguma para empreendê-lo.
Também não tenho medo de me expressar, ou de não corresponder ao que se espera da minha obra. Se as expectativas são minhas e não as satisfaço, busco me aprimorar; refaço o texto o quanto julgar necessário e aproveito, nesse processo, para aprender um pouco mais. Se, entretanto, elas vêm dos outros, procuro não interiorizá-las, porque, uma vez que o trabalho ganhe a luz, cada um o julgará segundo o seu gosto, a sua ótica, os seus valores, o seu universo, enfim. Sobre isso, não posso ter qualquer controle. Na arte, como em qualquer outra forma de comunicação, uma parte é o que se transmite, outra é o que o destinatário é capaz de absorver. Então, só posso me responsabilizar pela primeira etapa. Meu dever é criar com sentimento e redigir bem, com clareza e uso adequado dos recursos linguísticos. Daí por diante, a tarefa já não me pertence.
Quanto a projetos longos, todos os meus são. Penso muito antes de me propor a escrever um novo livro. Deixo-o amadurecer, primeiro, dentro de mim. Depois de concebida, a obra também precisará de maturação, antes que seja publicada. Então, não posso ter pressa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Algumas vezes, relendo os meus escritos já publicados, surgem-me novas ideias sobre os temas abordados, ou sobre a forma como foram expostos. Certamente, se fossem obras ainda em construção, eu trocaria palavras, mudaria parágrafos, excluiria ou incluiria versos, etc. A evolução nos faz debruçar olhares sempre mais acurados sobre o que já fizemos. Mas não julgo que isso seja conveniente. É preciso deixá-las como nasceram, até para que, numa análise conjuntural, se possa perceber nelas algum traço evolutivo. Esforço-me, então, para que meus novos trabalhos sejam melhores do que os anteriores.
Quanto às revisões propriamente ditas – que, necessariamente, antecedem a publicação da obra –, essas devem ser feitas, a meu ver, à exaustão. Por melhor que seja a redação, um bom revisor é imprescindível para a qualidade da obra. Os olhos do autor ficam viciados e passam facilmente por cima de coisas que precisam ser corrigidas ou melhoradas, sobretudo nos textos longos, como é o caso dos romances.
Costumo compartilhar os meus textos com o escritor Cláudio B. Carlos. Primeiramente, apenas para que ele tenha uma visão inicial, perfunctória, como o músico que dedilha a um amigo de ofício os primeiros acordes de uma nova canção. Depois, submeto-lhe a obra para o processo de revisão. É o melhor revisor que conheço.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Atualmente, como vivo cercado por recursos tecnológicos, meus primeiros rascunhos são feitos no computador. Quando se trata de poesia, tenho utilizado muito, também, o celular, por ser um instrumento que sempre está à mão quando o pássaro pousa.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
O hábito fundamental ao escritor é o da leitura. Mas como toda arte, a escrita requer também o dom. Sem isso, pode-se redigir com maestria coisas absolutamente vazias, desinteressantes. Então, não acredito na literatura forjada em um conjunto de hábitos, como se pudesse nascer de alguma fórmula. Ler muito aprimora a técnica, mas o dom é que cria.
As ideias vêm da vivência, da observação, do amor que tanto dói quanto vivifica… A arte é o resultado sublimado da tradução que o artista faz da existência. É o seu universo filtrado pelo seu dom. Então, a observação é fundamental, porque lhe será sempre necessário sentir as forças que pulsam ao seu redor, investigar como elas se movimentam, se entrelaçam, sobretudo para o escritor, que precisa mover sentimentos, criar novos seres, construir outros mundos e lhes dar o sopro da vida.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Um processo natural de amadurecimento conduz ao aprimoramento da técnica; à expansão do vocabulário e à opção por determinados modos de se expressar através da escrita. Nos últimos tempos, tenho buscado formas mais simples, sem fugir, claro, da minha identidade artística, ou seja, daquele traço que torna cada escritor diferente de todos os demais.
Eu diria a mim mesmo o que digo sempre: evolua! No campo do pensamento criativo, há sempre espaço para o crescimento.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O meu projeto mais desafiador é o da minha livraria-café. Um lugar onde eu possa vender, sobretudo, os livros dos melhores escritores de hoje. Está no papel. Quem sabe, amanhã ou depois?
Tenho também o desejo de voltar a escrever contos e crônicas, gêneros literários aos quais me dediquei há muitos anos, quando me lancei na escrita da prosa, e que acabei perdendo no carretel do tempo.
Sobre o livro que eu gostaria de ler, mas ainda não existe: por razões naturais, As nove páginas de Alberto Silva, romance em que trabalho no momento.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Não sou de planejar obras literárias. Como já havia respondido na primeira etapa da entrevista, não consigo escrever sob encomenda. Meus livros de poesia resultaram de uma consulta às gavetas, ou seja, foram reuniões de coisas guardadas. Os romances requerem mais disciplina do que planejamento. Depois que começo um, a imaginação flui e a escrita vai atrás.
Acho mais difícil começar. Sempre!
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Como não trabalho com literatura todos os dias, ou todas as semanas – mais leio do que escrevo –, não preciso criar cronogramas, métodos ou planos para a tarefa de escrever. Quando estou escrevendo um romance, procuro reservar algumas horas do dia para isso, mas nunca me obrigo à escrita nem me imponho prazos. Normalmente releio o que já escrevi, mudo uma coisa ou outra e se me sentir tranquilo para continuar, vou adiante. Do contrário, espero. Sei que nalgum momento retomarei o trabalho com mais vigor. O mesmo não se dá com a poesia, o conto ou a crônica: escrevo quando vem a inspiração.
Dado que, para mim, o trabalho de escrever romance é totalmente diferente do de fazer poesia, é perfeitamente possível que, enquanto realizo o primeiro, já até tenha um livro pronto de poemas engavetado, esperando por análise, escolha, lapidação. É possível também que eu escreva um ou outro poema durante a escrita de um romance, mas esses dois processos de criação não são, propriamente, “vários projetos acontecendo ao mesmo tempo”.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Como eu já havia dito numa entrevista concedida ao escritor, editor e revisor Cláudio B. Carlos, publicada na sua página “Balaio de Letras”, em 2012, penso que toda obra artística nasce da inquietação. Um escultor, por exemplo, olha a pedra e algo lhe revolve o espírito, instigando-o a libertar de dentro dela a figura aprisionada. Sempre acreditei mais na arte que surge desse impulso quase irresistível – ou insuportável – de gritar, de colocar para fora o seu inconformismo ou o seu encantamento. “A arte existe porque a vida não basta”, já disse Gullar.
Há quem diga que a arte não precisa ter um propósito, que ela basta em si mesma. Eu não acredito nisto. Toda arte tem um propósito, do contrário, não viria à luz. No caso do romance, escrevo para dar voz às pessoas que passeiam pela minha alma. Elas querem viver, querem dizer, querem participar, mudar alguma coisa no mundo. Já a poesia, quando escrevo, faço para expor a minha própria voz.
Quanto à segunda parte da pergunta, eu diria que não “decidi” me dedicar à escrita. Escrevo desde menino e há nesse fato muita influência do meu pai, que era professor de literatura, mas não posso dizer que comecei a escrever por deliberação. Já passeei por outras formas de expressão artística – o teatro e a música, principalmente –, mas foi na escrita que reconheci a minha melhor forma de expor a minha tradução das coisas, do momento, das pessoas; da vida, enfim.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Acho que todo artista já traz dentro de si um “jeito” de fazer, um estilo que o torna único. Assim como nenhum ser humano é igual ao outro, nenhuma de suas manifestações será igual às dos outros, inclusive as artísticas. Claro que há influências, todos temos alguma escola, mas ninguém conseguirá ser um Drummond, um Dostoievsky ou um Guimarães Rosa lendo incansavelmente as suas obras. Aliás, tanto melhor que sua escrita, ainda que orientada de alguma forma por outros escritores, deles se afaste o suficiente para ser o que pode a sua mente e o que pede a sua alma. O importante é ser autêntico, sem fantasias.
Não penso, portanto, que o “estilo próprio” seja algo a ser perseguido, porque é natural que cada um escreva ao seu modo. O que se pode buscar é o aprimoramento da técnica: vocabulário, gramática, aquisição de conteúdo e desenvolvimento de redação. Isso só é possível pela leitura e pelo estudo. Quando digo leitura e estudo, não me refiro apenas às obras puramente literárias, mas, também, às de história, sociologia, biologia e tudo o que possa acrescentar conhecimento ao seu espírito, porque tudo o que se aprende contribuirá para a qualidade do trabalho literário. Isto é, penso, o que todo escritor razoavelmente bom faz.
Penso, então, que cada um tem que ser o que é e escrever ao seu modo, ainda que seu estilo pareça não agradar. Entre os mais de sete bilhões de pessoas do planeta, haverá sempre quem goste, quem ame, quem tolere e quem deteste o seu modo de escrever. Conta-se que Van Gogh vendeu apenas um quadro em vida, das mais de duas mil e quinhentas obras que produziu. Cem anos depois da sua morte, uma das suas telas foi vendida por mais de 190 milhões em um disputado leilão em Nova York. Talvez o seu estilo esteja à frente do seu tempo.
Na prosa, o escritor que mais me influenciou foi o francês Victor Hugo. Quando li “Os miseráveis”, há mais de 30 anos, fiquei em êxtase. Ainda estou. Na poesia foram Drummond e Fernando Pessoa.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Putz! Há muito livro bom que eu indicaria, inclusive de escritores que me são caros. Mas, para ficar com apenas três sem fazer jabá sobre o meu novo romance, decidi pegar um de minicontos, um romance e outro de poesia. São eles: “O uniforme”, do escritor Cláudio B. Carlos; “Torto Arado” do Itamar Vieira Júnior, e “Curral del Rei – a desmemoria dos bois”, da Adriane Garcia.
Por que estes três livros? Porque são fortes, contundentes, viscerais.
Cláudio B. Carlos é um escritor ímpar. Seus textos são normalmente curtos, mas muito profundos. Li toda a sua obra publicada até hoje e toda ela é impressionante. Enquanto viveu em Belo Horizonte, escreveu outro livro marcante: “O homem do terno de vidro”. É um jeito só dele de escrever, de dar o recado: um estilo que incomoda, que faz pensar, que revolve os seus conceitos. Escolhi “O uniforme”, um dos seus primeiros livros, porque é uma porta de entrada fascinante à sua literatura.
“Torto arado”, livro relativamente recente do Itamar Vieira Júnior, seu primeiro romance, já se tornou um clássico da literatura em língua portuguesa. Brevemente, creio, será traduzido a outras línguas. A obra venceu o prêmio Leya de literatura, em Portugal, e não é por acaso. Um livro que traduz com precisão, singeleza e dor a vida de famílias que vivem em semiescravidão no seio de um Brasil ignorado pela maioria dos brasileiros. Traduz com precisão as suas lutas, seus modos, suas crenças, seus costumes e – talvez o que mais dói – seus sonhos. Desde o seu livro de contos “A oração do carrasco”, Itamar já impressionava por um estilo muito singular de narrar histórias. Seu romance foi a coroação disso.
Adriane Garcia é, talvez, o nome mais proeminente da atual poesia brasileira. A escritora é de uma inteligência ímpar e sabe conduzir a sua escrita de modo a fazer pensar. Invariavelmente, causa levante dentro dos leitores. Faz isto desde as suas primeiras publicações. Em 2018 trouxe à luz o “Garrafas ao mar”, obra que nos faz mergulhar fundo nas questões da vida sem medo de doer. No finalzinho de 2019 publicou o “Arraial do Curral del Rei – a desmemoria dos bois”, livro que agora indico, no qual revive poeticamente o drama das pessoas pobres, dignas e sofridas de um vilarejo varrido da história por um pujante projeto político e econômico: a construção da capital das Minas Gerais. É uma obra que faz chorar mesmo a quem não é de Belo Horizonte e não conhece a sua história. Não é por acaso que seu livro vem sendo comparado, por muitos, com o “Romanceiro da Inconfidência”, da Cecília Meireles.
Como disse, é cruel ter que escolher apenas três, diante de tantas obras boas publicadas, inclusive, nos últimos anos. Mas, diante do desafio, fico com estes.