Z Carota é jornalista e escritor, autor de “a beleza que existe – crônicas com uma tonelada de leveza”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como se diz no interior em que existi menino, “acordo com as galinhas”, por volta das 5h, no máximo, às 6h, e, sim, tenho uma rotina: enquanto esquento a água pra coar um café, cuido das vasilhas de ração e água do gato, tudo ao som de música, não raro chorinho, blues ou folk music. Tomo uma caneca de café, acendo um cigarro e, como bom mineiro postiço (nasci em São Paulo, mas fui criado em Três Pontas, sul de Minas), vou fumar na janela da varanda do apartamento, para ver a vida acordar mocinha, com as pessoas ainda carregando uma leveza que, pouco depois, começará a ser esmagada por essa rotina medieval de gerar mais lucro para quem não produz nada além de lucro, dorme bem e acorda quando quiser, e tudo isso em troca de comida e de uns trocados para pagar contas, ou seja, gerar mais lucro para outros alguéns.
Cresci em casa, não tinha varanda, tinha alpendre, ali, ainda nos primeiros pirulitos Zorro, aprendi que é nesses momentos da leveza permitida, do falso banal, que mora o melhor das pessoas, logo, as melhores histórias.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Tudo acontece o tempo todo, então, pra mim, não é o relógio nem o giro do sol que determina o melhor momento, mas o acontecer do momento, que acontece a qualquer hora. Menino de alpendre, ponho reparo em tudo, o tempo todo, então, muita coisa é escrita no celular, e como sou cronista, muitas vezes o texto inteiro já é feito ali, tomando um café na lanchonete, fumando um cigarro numa esquina, no botequim, no restaurante.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não estabeleço meta, nunca, de jeito maneira, senão viro, Deus me livre e guarde, CEO ou coach de mim mesmo, mas, por necessidade existencial e gosto, escrevo todos os dias, ao sabor dos acontecimentos do meu entorno. Tem dia que, danados, feito sacis, eles se escondem direitinho, mas é aí que a brincadeira fica ainda mais emocionante: fuço até encontrar meus sacizinho. Quando o publico, é como se eu tirasse o capuz dele e, junto, seu poder de sumir, mas não o de encantar e fascinar os outros.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Por ofício, sou jornalista há mais de 30 anos, ou seja, num tempo em que, ao contrário de hoje, infelizmente, não se podia publicar os fatos a qualquer momento, a notícia tinha hora certa – e sempre apertada – para vestir roupa e ir apresentável às ruas, trabalhar a curiosidade e saciar a esperança das pessoas. Comecei em jornalismo como chargista, tirando Economia e Esporte, trabalhei em todas as editorias, até me tornar editorialista, e essa função, assim, como a de chargista, exige rapidez, porque, geralmente, eram as últimas pautas a serem trabalhadas, com a gente sempre esperando um último acontecimento de relevância, que, surgindo ou não, na hora de fazer, tinha que ficar pronto rápido, porque tinha horário certo na gráfica pra rodar. Com isso, aprendi a captar rápido a essência do fato e escrever igualmente rápido. Mas isso, claro, vale para a crônica. Meu próximo livro, sobre a formação da Vigília Lula Livre e suas personagens, envolve esse processo que você cita, de, primeiro, pesquisa, só depois a escrita. Já colhi todo o material, agora é escrever, e espero fazê-lo, senão rápido, ao menos no tempo exato que o tema exige, diretamente proporcional à libertação de Lula de sua prisão política.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Escrevo desde os 16 anos, quando comecei a colaborar para fanzines (fui punk praticante até os 23 anos), trabalhei em redações de jornal, revista, rádio, TV e portais dos maiores veículos de comunicação desse país, fora textos para publicações e rádios independentes, mas só fui lançar meu primeiro livro, “dropz – crônicas pop-proletárias & tostões de amor” (Editora Penalux), em 2017, aos 51 anos, exatos 43 anos depois de, aos 8 anos de idade, ler a crônica “Futebol de Rua”, do Verissimo, na Coleção Para Gostar de Ler, e decidir que seria “aquilo ali” quando crescesse. A publicação tão tardia não deveu-se a medo nem ansiedade, o sentimento era outro: pudor. Sabia que a crônica era, e é, a arte de falar sobre o cotidiano, o falso banal a que me referi, mas, exatamente por isso, transformar o falso banal no legítimo importante me parecia serviço somente para os titãs, gente como o Verissimo, o Rubem Braga, o Paulo Mendes Campos e o Fernando Sabino, para citar apenas alguns gênios do gênero, não para um caipira punk feito eu. Parecia muita pretensão até para o leonino que sou (risos).
Entrei no Facebook, publicava ali uma e outra crônica, as reações positivas eram manifestadas por pessoas de diversas idades, origens, classe social, todas perguntando se eu não tinha livro publicado, inclusive algumas editoras, garrei pensar: “Uai, gente, será que não custa arriscar?”.
Mas sou mineiro, e da roça, logo, arisco, desconfiado, então, para ganhar confiança, juntei uns originais que tinha e enviei e pedi leitura crítica para três profissionais da palavra: a Professora Cristine Zancani, Doutora em Letras pela PUC-RS, Guto Pires, veterano jornalista carioca que foi Chefe de Redação quando eu era editor do site do Ministério da Cultura, e o poeta, cronista e romancista mineiro, Sérgio Fantini.
Os três aprovaram, mas, mesmo assim, o matuto que habita em mim achava que era bondade deles, coisa assim, até que, num chat com a Professora Cristine, falando sobre isso, percebendo minha hesitação, ela, muito gaúcha e muito escorpiana, foi lacônica: “Publica”. Era uma ordem, não um incentivo, e ela tem autoridade, sobretudo intelectual, suficiente para ser obedecida, resolvi publicar, no que tive apoio de valor inestimável de outro profissional da palavra, o premiado poeta e escritor Manoel Herzog, que me referendou à editora.
Desde então, fiquei desavergonhado que só: recém publiquei o segundo livro de crônicas, “a beleza que existe – crônicas com uma tonelada de leveza” (Páginas Editora), pela qual lançarei o já citado livro-reportagem sobre a Vigília Lula Livre, depois a biografia de Cônego Vitor, filho de escravos que ordenou-se padre, servindo a vida toda em Três Pontas, cidade em que cresci, e que vai ser canonizado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Essa é a única parte do serviço de escritor que me aborrece: revisar o que escrevi. É um inferno, um trambolho, porque a gente sempre quer deixar o texto mais viçoso, mais elegante, e são tantas roupas – roupa de texto é palavra. Nessa parte, não sou nada rápido, pelo contrário. Demora um mucado, e só decido quando o dead line da editora vem gritar no meu alpendre: “Ô de casa! Quédi o texto, sô?!”. Aí, vai. Pudesse, mexia mais (risos).
Parei de mostrar originais para as pessoas, primeiro, acima de tudo, para não aborrecê-las, porque leitura crítica é um trem que exige, além de preparo, tempo, e as pessoas têm suas vidas para tocar. Por último, porque a crítica deve ser feita por aquele que é a razão de ser de meu ofício: o público leitor. Com o primeiro livro, me tornei o autor mais vendido da história da editora, com o segundo, lançado há um mês, já estou entre os mais vendidos. Ou seja: pessoal tá apreciando e aprovando, né? E tem a lição do Tolstoi, né? “Se quiseres ser universal, canta tua aldeia”. As histórias que conto reportam fatos que acontecem com as pessoas desde um alpendre em Catolé do Rocha, passando por um quintal em Istambul, chegando até um botequim em Moscou. Todo mundo tem uma história para contar, todo mundo tem importância, mas não sabe – ou acredita que importância é só o que veem nos garotos-propaganda do capitalismo… –, aí, não contam suas histórias, ficam feito eu, quando era mais jacu do que o aceitável, achando que é pretensão. Só faço contar as minhas histórias, há quem goste.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Uai, é um amor só, eu mais tecnologia, um grude que só vendo (risos). Só escrevo em aparelhos. Os textos são garimpados no celular, depois, no computador, faço a ourivesaria das palavras. Não me lembro mais a última vez que escrevi à mão nem mesmo um post-it pra eu não esquecer de comprar café, queijo, quitanda e abacate, o que não pode faltar nunca em minha casa. É pena, porque, desenhista, eu tinha uma letra vistosa, charmosa, mas hoje parece que eu fiz o cabelo e a maquiagem dela numa máquina de lavar…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como disse anteriormente, do falso banal do cotidiano, das ruas, e tenho alguma sorte, porque tem umas histórias deliciosas que simplesmente caem no meu colo, nos lugares menos improváveis ao que se imagina de inspiração para o serviço da escrita. Minhas “musas”, todos os dias, acordam, saem às ruas e, conscientemente ou não, têm um poder incrível de eternizar instantes.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria ao garoto que imitava o Verissimo, que é como comecei: “Caboco, vá procurar os seus sacis – e o seu jeito de prosear”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu evito isso de projetar e colocar como meta, porque, como disse, não me permito virar coach, ou CEO, de mim mesmo. Para abastecer a despensa e não ser humilhado pela imobiliária e por cartórios, já cumpro metas ordinárias de trabalho. Como escritor, só faço o que quero, quando quero, como quero, tendo por patroa somente a vida e as personagens que fazem desta um lugar suportável, bonito e divertido, em contraponto ao simulacro de vida e felicidade dos escravos do lucro.
O livro que gostaria de ler e ele ainda não existe é um cuja vontade de ler é tanta, que cheguei a propor a uma editora grande e conhecida de eu mesmo escrever: “A verdadeira biografia das grandes fortunas brasileiras”. A tal editora topou, mas disse que qualquer problema judicial seria por minha conta e risco. Achei mau negócio entrar com minha força de trabalho, dar 90% do lucro para ela e meus 10% para advogados, e como não bastaria, ainda ter que me endividar com empréstimos para pagá-los. Deixei na gaveta.