Yves de La Taille é professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Todo dia, acordo entre cinco e seis horas da manhã. Se estou escrevendo (um livro, um artigo científico ou outro tipo de texto), após o desjejum, recolho perto de meu equipamento de som e de meus discos as anotações que fiz no final da tarde e na noite da véspera, vou ao escritório e, após ‘surfar’ (no meu nível, seria melhor falar em ‘pegar jacaré’) um pouco na internet (apenas à procura de notícias do mundo) e tocar um pouco de violão, ponho-me a reler as anotações, a levar algumas em conta e descartar as outras e a escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo quase que exclusivamente de manhã. À tarde, costumo reler o que escrevi de manhã, modificando uma coisa ou outra. À noite, praticamente nunca escrevo: limito-me, como já dito, a refletir sobre o tema que me ocupa e a tomar notas que relerei na manhã seguinte. Ritual propriamente dito, não tenho. Li em algum lugar que um autor (Georges Simenon, creio que é ele) costumava apontar todos os seus lápis antes de começar a escrever. Isto seria um verdadeiro ritual. Nada faço de parecido. Noto apenas que preciso de silêncio. Nada de ouvir música, por exemplo. Felizmente, vivo meio que no mato e cantos de passarinhos são bem-vindos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estou com um texto em curso de realização, escrevo toda manhã, domingo incluso. Mas não tenho meta estabelecida. Às vezes, consigo apenas escrever uma ou duas frases, às vezes escrevo três ou quatro páginas. Depende do trecho do texto no qual me encontro. Depende da clareza que tenho da parte que estou analisando. Depende também de eu achar as palavras e frases que me pareçam certas e até bonitas, pois sempre procuro ‘escrever bem’ no sentido de obter algum efeito estético. Deve depender também do que chamam de inspiração, termo que, na verdade, não sei definir, mas que intuo existir de fato. Quando ainda trabalhava na universidade, escrevia praticamente todos os dias do ano, pois tal profissão implica escrever variados artigos científicos. Agora que estou fora dessa faina universitária, escrevo somente quando tenho ‘assunto’, o que não acontece todos os dias nem todos os meses.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrevi essencialmente textos de caráter científico. Logo, sim, há reflexões e pesquisas que precedem a escrita. Não raramente aconteceu o seguinte: fiquei um ano estudando, tomando notas e refletindo, sem nada escrever do livro planejado, e, no ano seguinte, escrevi o livro. O mesmo vale para artigos científicos, mas em prazo menor. Agora, em se tratando de literatura, como no meu livro Ética para meus pais, o processo é mais, digamos, espontâneo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sinceramente, a única ‘trava’ que costumo experimentar é quando começo um novo livro. Às vezes demoro mais de um mês para me dar por satisfeito com as primeiras páginas. A partir delas, costuma deslanchar. Acrescentarei que, no começo, sinceramente tinha um certo medo de empreender a escrita de um livro, pelo tamanho da tarefa. E quando o havia acabado, eu mesmo me perguntava espantado como havia sido capaz de escrever tantas páginas. Mas, hoje em dia, pela prática e experiência, esse medo e espanto não mais existem. Ainda bem que a gente amadurece…, ou acha que amadurece.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nunca contei quantas vezes releio os meus textos. Mas garanto que os releio várias e várias vezes. Minha única leitora antes da publicação é Elizabeth, minha esposa. É muito raro mostrar um texto meu a uma outra pessoa. Sou meio solitário.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No começo (década de 80) escrevia à mão e depois reescrevia na máquina de escrever, pois ninguém entendia a minha letra (nem eu mesmo, às vezes) e não seria possível publicar. Agora, escrevo diretamente no computador. Não sou grande adepto da tecnologia, nem mesmo uso celular. Mas reconheço que editor de texto me convém plenamente
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
O essencial que escrevo diz respeito à ciência psicológica, à psicologia moral, para ser mais preciso. Logo, o ‘hábito’ necessário é estudar, ler, manter-se atualizado. Agora, para me manter criativo, ou seja, procurar ser inovador na medida do possível, sempre alimentei meus escritos de elementos exteriores aos textos restritos à psicologia moral: inspiro-me de literatura (por exemplo, minha dissertação de mestrado analisava L’Etranger de Albert Camus), de letras de canções populares, de teatro. Em outras palavras, procuro estabelecer relações entre temas e estilos que, a priori, são bem distantes uns dos outros.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Volto ao que acabo de responder: à medida que fui escrevendo e publicando, tenho colocado mais referências literárias e artísticas em geral nos meus textos. Hoje em dia, tenho até procurado colocar meus conhecimentos de psicologia moral para pensar obras artísticas como, por exemplo, analisar as ‘paisagens’ da dignidade na obra musical de Chico Buarque. Nada teria a realmente dizer na hipótese de voltar à escrita de minha tese (cujo tema, aliás, abandonei por completo). Acrescento que nunca releio o que já foi publicado por mim. Uma vez publicado, é passado.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever um romance policial. Acho que muita gente tem esse secreto desejo. Mas nunca criei coragem de fazê-lo. Acho que nunca cometerei esse crime… Não raramente fico na rede ou na poltrona deixando o pensamento vagar na espera de uma ideia de texto que me estimule. Até agora, ela sempre acabou chegando. Espero que continue. Em relação a um livro que gostaria de ler embora ainda não exista, não saberia o que responder ao certo. Sempre espero um texto que me surpreenda e inspire, seja ele científico ou artístico. Confesso que ultimamente, na área da psicologia, nada tenho lido que preencha, para mim, esses quesitos. Tampouco a literatura contemporânea tem me encantado. Por essa razão tenho mais relido textos antigos que me agradaram do que coisas para mim inéditas. Talvez eu seja de um outro tempo.