Yuri Rebouças é do teatro e da literatura, autor de “Cântico dos Ândalos” e “Além das Estrelas”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como escrevo de madrugada, costumo acordar tarde. Levanto e brinco com as minhas ratinhas enquanto a alma volta para o corpo, mas só começo a viver de verdade quanto tomo a primeira xícara de café. Só então consigo me concentrar em algo.
Não crio nada de manhã, mas costumo reler despretensiosamente o que escrevi na noite anterior com um olhar distante e sem cobranças, como alguém que apanhou o primeiro livro que encontrou na estante e só bate o olho pelas páginas sem grandes expectativas quando à história. Lendo com essa visão, será que aquilo consegue me atrair? A partir dessa primeira leitura é que eu começo a revisar o texto.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Costumo trabalhar à noite, e normalmente esse processo se estende pela madrugada sem fim. Sou muito perfeccionista com o meu trabalho, então não me importo de abrir mão de algumas horas para escrever e revisar. Já me disseram que isso tem a ver com o meu mapa astral, não sei, mas mesmo quando estou exausto na luta contra os olhos se fechando, tomo uma xícara grande de café e continuo focado.
Acho que o mais próximo de um ritual é que gosto de ouvir música para entrar no clima da história, e o gênero depende bastante do que será produzido. Quando estava escrevendo o “Cântico dos Ândalos” ouvia músicas xamânicas, já no “Além das Estrelas” ouvia cantos gregorianos. Nos meus trabalhos mais atuais eu sempre ouço playlists de Lo-fi.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Mesmo com o hábito de escrever de madrugada, eu produzo o dia inteiro. Tenho sempre cadernetas na mochila e vários documentos no celular, além das anotações que faço o tempo todo (em casa, na rua ou até mesmo no metrô…). Isso é ótimo para me dar habilidade de poder escrever a qualquer hora e em qualquer lugar e não depender daquele clichê de “esperar a inspiração chegar”.
Não estabeleço metas de escrita, mas acho importante escrever sem longos intervalos, assim a história fica sempre fresca, fluída e não tem problemas de continuidade.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu passo o dia inteiro fazendo observações do que acontece ao meu redor, e se for interessante e pertinente, isso acaba entrando nos escritos. Falo de coisas simples mesmo, como por exemplo observar o comportamento das pessoas na rua, e isso me ajuda a construir e dar profundidade aos meus personagens. Também faço anotações de tudo o que me vem à cabeça, mesmo que pareça uma ideia absurda ou estúpida naquele primeiro momento.
À noite, depois de fazer tantas anotações, eu descarrego tudo no texto, e não falo isso no sentido figurado, eu realmente coloco o máximo possível no papel, inclusive aquelas ideias que parecem ridículas. Não me preocupo com isso no primeiro momento, por que depois vou analisar meticulosamente esse resultado grosso e esse vai ganhando forma à medida que o reviso, mesmo que no final eu tenha excluído metade do que fiz.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sinceramente eu não me preocupo muito com essas coisas. Antes eu temia os bloqueios literários, mas com o tempo fui vendo que não é um monstro, e com persistência nós conseguimos resolver. A questão é tentar conhecer e compreender ao máximo a sua história. Eu sou muito disciplinado e também nunca procrastino quando tenho que criar. Nós precisamos estabelecer prioridades, certo? A minha é e sempre será escrever.
Sobre ansiedade e corresponder expectativas eu já acho um pouco mais delicado. Eu tenho uma postura de resistência na minha literatura e tenho muito cuidado e receio com alguns assuntos que vou abordar. Pesquiso o máximo possível e às vezes acabo caindo naquele pensamento de “o que fulano pensaria sobre isso?”, mas não no sentido de ser julgado, e sim na forma como o meu trabalho afetaria tal pessoa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso infinitas vezes, uma atrás da outra, depois espero alguns dias e começo a revisar de novo. Essa é uma parte fundamental do trabalho, necessário MESMO. Só com a revisão nós conseguimos perceber se existe uma real motivação nos eventos quando foram escritos e se há mesmo fidelidade na voz e atitude dos personagens. Revisão nunca é demais!
Eu costumo mostrar os meus trabalhos à medida em que vou escrevendo para colher reações, comentários e críticas sobre o desenrolar da história. Ouço tudo isso, e acho cada impressão válida. Aprecio muito quem tem coragem de me criticar, quando uma crítica construtiva, e são para essas pessoas que mostro o que escrevo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Durante 3 anos eu escrevi um blog e depois comecei a resenhar livros no Skoob, então adquiri o hábito de produzir textos diretamente na internet. Nesses casos específicos, nunca vi a necessidade de escrever o documento e depois enviá-lo para a página, então já criava tudo lá mesmo. Depende muito do propósito do que vou escrever. Se for um texto para a internet, já faço isso diretamente no site.
Pela praticidade, assim trabalho em absolutamente qualquer lugar, eu escrevo a maior parte no celular, inclusive edições e revisões, e só depois passo para o computador. Só em casos muito específicos e raros eu escrevo à mão, e normalmente são só anotações ou textos curtos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu tento sempre abordar questões cotidianas e se possível levá-las a um degrau absurdo. Esse degrau nunca tem fim, então não coloco limites no meu processo criativo. Minhas ideias vêm daí, das vivências e principalmente todos os espectros envolvidos na comunidade LGBT+.
Eu sou muito observador e isso ajuda na minha literatura. Isso soa piegas quando dito por qualquer escritor, mas ler muito (muito, muito, muito) é importante para manter aquecida a criatividade. Assistir séries, peças de teatro ou filmes também. Na verdade, qualquer contato com o que desperte o nosso potencial criativo. Acho isso fundamental, estar sempre cercado pela arte e adquirir uma visão artística sobre tudo o que acontece.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu me tornei menos mesquinho e egoísta com o que crio. Antes eu abraçava os meus trabalhos e aquilo se tornava o próprio Yuri e não algo produzido por ele. Se o meu trabalho fosse esfaqueado, essa arma penetraria diretamente em mim, e eu nem sabia como lidar com a dor. Hoje eu tenho mais segurança no que escrevo e entendi que a arte é viva e livre (em todos os sentidos que você imaginar).
Eu diria para esse Yuri-do-passado para escrever e só escrever, sem pretensões ou medos ou correias, escrever livremente pela simples vontade de escrever. Isso teria evitado uma porrada de dor de cabeça. Eu era tão preso à ideia do que PRECISAVA fazer que acabava perdendo a diversão do processo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho muitos planos e ideias, e fico feliz em já ter começado algumas delas. A minha literatura mudou muito desde o meu último livro (considerando que o Além das Estrelas foi escrito em 2017, há dois anos, mesmo tendo sido publicado em 2019) e acho que agora eu finalmente encontrei a minha voz. Estou escrevendo o terceiro livro e ele tem o que durante todo esse tempo eu senti que representava a minha literatura e a forma como gostaria de passar as mensagens dela, embora nunca tivesse sentido a confiança necessária para materializar essa força.
Nenhum livro existe quando ainda não o conhecemos, então gostaria de ler o próximo da minha lista quase infinita de títulos a serem lidos. Eles já foram escritos, mas de certa forma ainda não existem, certo? Estão só vagando em algum limbo até serem resgatados e lidos e passarem a viver de fato. Quero ler esses que já existem, o que ainda não existem eu vou escrever.