Yuri De Lucca Dinalli é escritor, poeta e compositor, autor de “A cidade dos óculos sem Sol” e “Pedro Pedreira, Pedrada & Pedregulho”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho começado meus dias, há exatamente um ano, com o despertador berrando aos meus ouvidos que “chega de dormir, rapá! salta dessa cama e camba pro mundo que o leão te espera”. Atrasado, na maioria das vezes. Jogo uma água no couro que é pra modo dele entender que já acordou, mando pra dentro um café preto, sem açúcar — amargo feito a vida, diria — e me boto em prumo pra aparecer na rua sem assustar nenhuma criança indo à escola ou alguma senhora voltando da feira. Operário das letras, chego na editora e todo dia é um dia que nos reserva tudo, menos o óbvio. Essa tem sido, há exatamente um ano, a minha rotina matinal.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Isso depende de alguns tantos fatores, principalmente do fator “noite anterior”. Costumava, quando escrevia com periodicidade — oh, saudade —, produzir melhor pela manhã, água e café na mesa; gelada, a primeira e bem quente, o segundo. Esse foi, durante bom tempo, meu ritual. Hoje, conciliando trabalho e estudos, escrevo, quando, majoritariamente a noite, vez ou outra ao longo do dia, quando uma ocorrência me pega de soslaio e eu tenho de recorrer ao bloco de notas do celular ou a um ou outro pedaço de papel que esteja a mão. Mas sentar pra escrever pelo prazer de exercer a escrita, momento raro, quase impensável nos dias de hoje — oh, saudade!
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Volte uma casa. Uma vez me disseram que, numa entrevista, o escritor e compositor (gênio!) Paulo César Pinheiro “recomenda” aos profissionais das letras o exercício da escrita diária, nem que for pra olhar pro papel e rabiscar aquele troço branco até preenche-lo por completo, daí pegar outro e repetir o processo até sair algo que preste. Sou desse tipinho que vê na escrita uma prática que deve se tornar costumeira — ou pelo menos deveria. Acredito na máxima que diz que a repetição leva à perfeição. Foi assim que escrevi meus dois primeiros livros, o de poesia e o de contos. Hoje, repito, isso é coisa não mais vista d’ante os olhos meus.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu fardo, mas não talho. Há um processo que acontece dentro da minha cabeça que demora dias pra organizar todas as ideias, mas a malha que se tece é tão firme que, uma vez ante o papel, não se faz suficiente muito tempo pra que eu consiga chegar o mais próximo possível daquilo que imaginei. Eu passo muito tempo amarrando esses nós dentro de mim pra não perder tempo algum quando realmente tiver que criar as amarras. Funciono basicamente assim: 90% sofrimento e 10% escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não lido. Deixo que elas lidem comigo. Eu adoro escrever sob demanda. Ultimamente tem sido a minha saída. Dê-me dez dias pra entregar um livro, e eu o farei. Viro noite, durmo pouco, perco a vida, mas te entrego o suco do que consegui espremer neste período. Sou um sujeito pacato, e na escrita diferente não poderia ser. Mas, como disse, adoro ter que lidar com demandas, escrever sob pressão. Me força a criar, a pensar em soluções rápidas. Foi exatamente assim com os dois primeiros volumes da coleção “Aqui, tudo é samba”, para a Editora Kazuá. Eu só funciono, muitas vezes, no tapa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas. À exaustão. Costumo ser extremamente criterioso com a apresentação dos meus textos, no que diz respeito, principalmente, à ortografia e gramática. Reza a lenda que tenho uma escrita muito certeira, onde poucos erros sobram pelas pontas. Talvez por conta disso acabei me apinhando mais e mais no ofício de revisor. A minha digitação também é coisa de louco, modéstia às favas. Mais isso é prosa pr’outro causo. Enfim, tenho essa mania caxias de ler quantas vezes for até apresentar um texto que tenha o mínimo possível de erros evitáveis. E, sim, sempre que possível apresento a produção a amigos, para que leiam e também se certifiquem que nenhum vício de leitura passou pelas minhas fatigadas vistas que a terra um dia há de comer.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não me é muito comum escrever à mão, confesso, apesar de achar poética essa relação da caneta com o papel. Tem ficado cada vez mais rara esta sensação. Inclusive, me pego muitas vezes não sabendo grafar uma palavra à mão por conta de só lembra-la no teclado. É mole ou quer molho? Esse negócio de tecnologia toma a gente de assalto. No papel, na maioria das vezes, eu rabisco uma frase que não me deixe esquecer de uma ideia, uma palavra chave, um norte. Daí corro pro celular ou pro computador pra batucar no teclado com a intimidade de um pianista. É meio que assim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Beber, pra mim, é realmente importante para me manter criativo. Sem demagogia ou numas de querer romancear o álcool. A minha natureza já é muito observadora, mas, bêbado, essa pré-disposição triplica. Beja bem, eu não gosto de escrever bebendo. Como disse antes, costumo escrever tomando água e café. Eu gosto de beber pra ter sobre o que escrever, pra olhar as coisas sobre outra perspectiva que não essa dos nossos sóbrios olhos de pessoas corretas. Eu gosto de beber pra ver os bichos saindo, pra ver os trejeitos se aflorando, pra ver as caricaturas do cotidiano se apresentando à minha como fosse eu se mais sincero e verdadeiro amigo. É por isso que a mim me apraz a noite. É neste curto período de tempo que essas figuras residem, se soltam, se mostram. E é nelas que mora a minha literatura; é com elas que eu quero beber pra sobre elas escrever.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Maturidade não é algo que se pede, né. É algo que vem com o tempo. A minha escrita amadureceu bastante desde o primeiro momento em que eu tentei escrever alguma coisa, rabiscar um versinho ou coisa dessas. Quando a gente começa a escrever — pelo menos comigo foi assim — a gente ainda tem uma mania de falar muito sobre a gente, se desnudar, expurgar aquilo que os remédios não curam, vomitar as dores da alma. Acredito que meu amadurecimento foi aprender que tem coisa mais importante e interessante pra ser falada do que a minha insônia ou o quanto eu sofri por aquele amor no colegial, ou como eu sou revolucionário e as minhas ideias quebram com os padrões estéticos daqui e dali. É isso. A gente aprende a olhar pro outro, e, mesmo que escreva sobre o que há na gente, será de uma nova perspectiva, mais inclusiva, mais alicerçada nos costumes da sociedade do que só e tão simplesmente só nas dores que carregamos no peito.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho alguns muitos projetos que comecei e não terminei. Há muita coisa nas gavetas da memória — e nos arquivos de computador — que eu gostaria de retomar. Fato é que ando meio desgostoso com a literatura. Ando meio de saco cheio dessa coisa toda de pagar pra escrever. O que tem me feito feliz é conseguir pôr em prática essa espécie de jornalismo literário que tenho cunhado no meu texto, misturando os troços da academia com o meu proselitismo poético. Eu gosto disso, sabia? De contar histórias mesclando esses dois estilos de escrever; o de informar e o de, digamos, entreter. O livro que eu gostaria de ler existe e eu já li. O livro não, os livros. Acredito que depois de conhecer a escrita marginal de João Antonio pouca coisa vai me surpreender, no que diz respeito à forma de abordar a literatura como sendo o grito daqueles que não tiveram chance de contar as suas histórias. Inclusive fica o meu conselho para que todo mundo leia João Antonio ao menos uma vez que seja. Foi o trabalho desse escritor que me fez entender de uma vez por todas a que eu vim nesse mundo. Por que, pra quem e sobre quem eu escrevo. Ele existe e, se é assim, eu existo pois.