Yuri Al’Hanati é escritor, músico, editor do Livrada.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Geralmente começo meu dia com muito sono, frequentemente atrasado para o trabalho. Não sou uma pessoa matutina, mas procuro tirar um tempo na manhã para fazer um café coado, num processo só meu que é demorado, e um tempo para acordar, durante o qual não faço nada além de beber o café e escutar música. Geralmente algo na linha de Minutemen ou Primus, mas ultimamente estou escutando muito Tool.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Se horários comerciais não existissem, meu sono iria das quatro da manhã ao meio-dia. É claro que é possível aprender uma disciplina do sono, compartimentar esse tipo de necessidade fisiológica numa rotina condizente com a cadeia produtiva. Mas trabalho melhor à noite, entre 21h e 02h. Quase nunca, porém, é o horário em que eu escrevo. É geralmente nessa hora que flano pela internet, acho artigos esdrúxulos de temas desimportantes e vou me alimentando de cultura inútil. De maneira que na maior parte do tempo, desperdiço minha janela criativa. Esse tipo de coisa às vezes vem a ser útil no futuro. Mas às vezes não.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo quando preciso escrever, e preciso escrever quando me encomendam um texto ou quando preciso publicar minha crônica semanal. Sei que todo mundo diz que você deve escrever um pouco todo dia, para praticar o exercício da escrita, mas isso demanda um tempo que eu não tenho. Tem dias que eu saio de casa de manhã cedo e só volto depois das onze da noite. Gostaria muito de viver para isso, ser um “pastor do ser”, como diz o Juliano Garcia Pessanha, mas posso almejar, no máximo, ser um homem do subsolo de crachá.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu não faço fichamentos ou notas porque nenhum trabalho ainda me exigiu isso, à exceção de artigos acadêmicos, é claro. Porém, se fosse fazer isso para um projeto literário, tenho a mais absoluta certeza de que seria um processo dificílimo pra mim. Sou extremamente metódico para certas coisas, mas resolvo a maior parte dos meus processos criativos com microgerenciamento do caos.
Meu processo de escrita, talvez pela minha formação e experiência em redação de jornal diário, é baseado na pressão do prazo. A adrenalina do deadline acelera as sinapses, encontra soluções para os becos sem saída, dá gás para os argumentos e conclusões, vasculha meu vocabulário limitado em busca de certa elegância. Tem dado certo até agora, mas reconheço que é algo em grande parte fora do meu controle. Acho que adoto uma postura um tanto passiva diante do meu demônio criativo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Desses problemas listados, o único de que realmente sofro é a procrastinação. Mas acho que isso é algo geracional. Temos – eu e os da minha idade – uma atenção difusa, uma necessidade imensa de vida exterior, a ansiedade que faz querer fazer qualquer outra coisa menos aquilo que se está fazendo no momento. Se estamos escrevendo, gostaríamos de estar bebendo. Se estamos bebendo, gostaríamos de estar dormindo. Se estamos na cama, gostaríamos de estar fazendo exercícios. Se estamos fazendo exercícios, gostaríamos de estar no sofá assistindo TV. Se estamos assistindo TV, gostaríamos de estar na internet. E assim vai.
O medo de não corresponder às expectativas deve ser um pesadelo. Devo ser um privilegiado por ninguém esperar nada de mim. Isso me dá um conforto para que eu me sinta no direito de fazer o que eu quiser – inclusive nada. Pouca coisa mata mais uma criatividade em potencial do que ser transformado em promessa de algo, acho. E quanto a projetos longos, não penso em fazer nada. Projetos longos parecem ter um lugar no passado ou, quando no presente, num nicho específico. Recomendo muito a Titã do Mahler ou a 7empest do Tool pra isso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para pessoas antes de publicá-los?
Recentemente escrevi um conto encomendado e, pela primeira vez, submeti a leitura de mais de uma pessoa. Especificamente, enviei para os escritores Krishna Monteiro, Jorge Filholini, Marcos Peres, Rodrigo Casarin e Carlos Eduardo Pereira. Foi uma experiência muito gostosa, receber comentários, críticas e sugestões dessas pessoas cujo trabalho admiro, cada um por uma razão diferente. Normalmente não faço isso, sou tímido, detesto pedir coisas pras pessoas e acho inconveniente fazê-las lerem um texto meu, mas reconheço que me senti afortunado de poder contar com essas leituras. Eu reviso pouco meus textos, também estimulado pela pressa do deadline, e acho igualmente admirável quem tem a energia para todo dia burilar o texto, como meu amigo Felipe Franco Munhoz faz em seus livros. Mas sempre faço duas leituras pelo menos.
Como é a sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos no computador?
Quando estava na faculdade, fui aluno do Cristóvão Tezza, que ministrava uma disciplina eletiva de oficina de textos, nos quais precisávamos escrever toda aula. Um conto, uma pequena redação dissertativa, enfim, o gênero que a aula da vez pedia. Ele dizia especificamente que a gente deveria escrever textos à mão e ao vivo, pela sinergia da escrita. Não levei isso para a vida como um método de produção de textos, mas reconheço a importância desse aprendizado. Deu agilidade de pensamento, coordenação entre memória muscular e cérebro, quebrou um pouco da ansiedade que impede de viver o momento presente. Hoje em dia escrevo tudo no computador, mas sempre escrevo de uma vez só, como nas aulas do Cristóvão. Foi assim que eu aprendi.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Mais recentemente, minhas crônicas se converteram em uma espécie de ensaios de ensaios. Tento, a partir de uma ideia matriz, desenvolver desdobramentos filosóficos, argumentativos, intertextuais e interdisciplinares. Esses textos são o produto final, mas também são um treinamento para algo mais duradouro: a capacidade de me concentrar em uma ideia e extrair dela a minha própria literatura. Minhas ideias vêm do mesmo lugar das ideias do Huxley – embora nem de longe venha com a mesma qualidade – mas, de forma mais ampla, vêm dessa espécie de cérebro coletivo que minha geração impõe aos seus. O quanto consigo me distanciar desse cérebro em comum é o quanto eu julgo conseguir de sucesso com um texto. Mas nem sempre consigo, é uma força muito grande para lidar de maneira quixotesca.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tive algumas fases de escrita impossíveis de se aproveitar como resultado, mas que serviram para algum tipo de desenvolvimento literário. Talvez diria para mim mesmo ler mais os contemporâneos e menos os clássicos, já que eles me viciaram numa linguagem frequentemente apontada como aristocrática, burguesa, arrogante, mas acho difícil renegar os autores que me acolheram e me deram tanto em termos de grande arte. Escrevi algumas peças de teatro bem ridículas e absurdas, muita escatologia, muita violência – escrevi um livro de contos inteiro sobre a relação de violência, dominação e medo do homem com a natureza, e a quantidade de bicho que matei nesses textos é considerável. Mais frequentemente, um livro de estreia há de pecar muito mais pelo excesso do que pela falta. A prática e a experiência ajudam na moderação, no tom sóbrio – a temperar com sal e não com vinagre, como dizia Montesquieu.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero muito escrever ainda o meu próprio guia turístico ou um relato de viagem.