Yara Camillo é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia quase sempre trabalhando num conto, numa tradução, enfim, no trabalho no qual estiver mais envolvida no momento, antes mesmo do café. É uma boa hora, essa, em que nada ainda aconteceu… Mas não tenho bem uma rotina. Sou anárquica por natureza. E há, também, os fatores externos, que determinam grande parte das atividades diárias, os compromissos e as tarefas cotidianas, nas quais sou de uma inabilidade notável.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo a qualquer hora, obedecendo àquela urgência, ou vontade, que nem sei ao certo como acontece, de escrever. Diz Guimarães Rosa, em “Lélio e Lina” (No Urubuquaquá, no Pinhém), que “a gente, cada um está fazendo feitiço, toda hora… Só que não sabe.” Acho que é isso.Imantamos a todo momento o que queremos, o que é o nosso afazer. E um dos meus afazeres mais caros é escrever. Sim, me agrada um certo ritual, mas nem sempre é possível. Às vezes, quando a correria permite, me sento no quintal – com um caderno, um café, um que outro gato morador da casa fazendo companhia – e escrevo; mas às vezes só há tempo para me recolher a um canto da casa, entre um compromisso e outro, e escrever. Às vezes escrevo no notebook. E ultimamente tenho gravado, no celular, ideias que me vêm e que tenho vontade de registrar.Nem sempre essas ideias são aproveitáveis… Algumas estavam mesmo só de passagem. E a palavra falada nem sempre dá boa literatura, quando transcrita. Então, o que gravo mesmo é a essência. Agora: esse recurso me ajudou muito ao longo de uma tradução que levei uma eternidade para concluir: gravei impressões que me vinham sobre o trabalho, às vezes na rua, às vezes em meio a uma tarefa cotidiana. E algumas fizeram parte da nota de tradução que escrevi.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta para a minha escrita. Há épocas em que escrevo mais. Os períodos mais concentrados ocorrem geralmente quando estou finalizando um livro, uma tradução, ou criando textos/exercícios para uma Oficina Literária ou Oficina de Teatro. De modo geral, sempre acabo escrevendo um pouco, todos os dias. É um processo natural, que deixo acontecer.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Vou falar sobre meu processo na criação de contos, já que são eles minha principal produção literária, embora às vezes eu passeie pelo território da Poesia, da Dramaturgia. Raramente um conto vem pronto. Na maior parte das vezes, sinto que ali está uma ideiaque vale, que pode ser desenvolvida, e me entrego a esse processo de criação. Alguns textos demoram muito a chegar ao seu formato “final”, ou quase. Outros, nem tanto. Às vezes trabalho exaustivamente num conto e depois o abandono, ou deixo para a próxima volta, por assim dizer.
Dificilmente compilo notas… tudo vem junto. Não faço anotações para iniciar um conto. Apenas começo, às vezes já com uma noção do enredo. Outras, não.
Quanto a pesquisar, é algo que me ocorre muito mais em trabalhos de tradução, de Teatro, quase nunca na criação de um conto. Na tradução que fiz das Novelas Exemplares, de Cervantes, o trabalho de pesquisa foi extenso; não havia mesmo como ser diferente. Um bom modo de aproximar um clássico de seus leitores é situá-lo, contextualizá-lo, para que a passagem do tempo (quatrocentos anos, no caso das Novelas Exemplares, cuja primeira edição data de 1613) não seja um empecilho para a compreensão, para o desfrute da obra. Assim, no caso das Novelas, levei muito mais tempo na pesquisa do que na tradução do texto. E sendo Cervantes o mestre que é, cada busca se abria em caminhos de infinito aprendizado. Depois, era compilar, sintetizar a essência descoberta numa nota de rodapé ou num item do glossário. Tudo isso com a intenção de não interromper o leitor em sua viagem pelas Novelas, a menos que fosse para esclarecer algo essencial à compreensão e continuidade da leitura. Traduzir Cervantes foi um divisor de águas. Minha vida foi uma antes disso e é outra depois.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas, na verdade, são bem mais ditadas pela minha inabilidade nas questões práticas do cotidiano, do que na escrita, na criatividade. Gostaria de ter mais tempo para escrever, mas me enrosco e me detenho demais nas coisas práticas do dia a dia. Já tive medo de não corresponder às expectativas, não só às de outras pessoas, mas as minhas mesmo. Hoje sou um pouco mais tranquila com relação a isso. Quanto à ansiedade de trabalhar em projetos longos, não há como evitar. Quando o trabalho avança e flui melhor, a ansiedade vai baixando e chego a me esquecer de sua existência. Essa é uma das melhores partes. A gente sente quando entra em sintonia com um trecho de uma tradução, com um conto a ser concluído… Essa é uma sensação que, eu diria, vai além da mera felicidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso infinitas vezes. Em alguns textos ocorre um momento, sim, em que sinto que eles estão prontos. Em outros, não… E, na maior parte das vezes, prefiro excluí-los de um livro, a entregá-los para serem publicados, sem que tenham chegado à forma final. Gosto de brincar dizendo que, ao concluir um trabalho, é bom deixá-lo por um tempo na gaveta, para que as palavras conversem lá entre elas e deem um jeito nas tolices do escritor. Por outro lado, alguns contos nos enganam, ou nós nos enganamos neles… Pois num momento nos parecem prontos e, em outro, vemos o quanto faltava para que chegassem à sua maturidade. Mas Literatura não é ciência exata. E, por outro lado, há um momento em que é preciso lançar o barco-livro ao mar, para que ele encontre o rumo, os portos-leitores. Sim, mostro meus trabalhos a algumas poucas pessoas, cujo olhar me parece precioso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Hoje minha relação com a tecnologia é mais tranquila. Mas o início foi traumático. Meu primeiro computador foi um XT. Era o único, no povoado de Trancoso, onde morei, nos anos 80. Eu tinha vindo a São Paulo para visitar a família, os amigos… Encontrei um ex-aluno, um amigo, Márcio, que tinha ganho um 286, o top de linha, na época, e me deu seu antigo XT, me ensinou o básico do básico e lá fui eu de ônibus para o sul baiano, levando meu presente (que eu chamaria “de grego”, em horas vindouras e difíceis). O XT(que batizei de Xisto) causou espécie. Era uma novidade e tanto. Sem contar que a editora aqui de São Paulo, para a qual trabalhávamos (eu e Ed, meu companheiro de vida), comemorou a novidade com uma informação preciosa: os tradutores que trocassem a máquina de escrever por um micro-computador passariam a ganhar 30% a mais. E a editora ainda esclareceu que, além de nós, somente uma tradutora ainda datilografava. Os demais já haviam aderido ao questionável progresso. O XTusava aqueles disquetões quadrados, molengos, imensos. Eu ligava para o meu amigo Márcio, quase todos os dias, do único posto telefônico que havia em Trancoso, para pedir orientação e esclarecimento sobre as muitas dúvidas que me afligiam. A tradução se arrastava. Aos poucos, fui aprendendo a lidar com o Xisto… Nos primeiros livros, gastei infinitamente mais tempo do que gastava, datilografando. Depois, comecei a trabalhar com mais agilidade… E então aconteceu o que, hoje, me parece tão plausível, mas na época me pareceu uma tragédia: a energia elétrica falhou quando eu estava gravando o capítulo final de um livro e foi um caos.Só no dia seguinte, quando a energia voltou, compreendi o prejuízo: o disquete estava em movimento no momento da pane elétrica… Pane que obviamente se estendeu aos arquivos ali “salvos”. Quando abri o disquete na tela (vamos lembrar que o XTnão tinha memória, não tinha o sistema Windows, e assim só era possível conservar o que se gravava no disquete), os capítulos estavam literalmente picados, misturados, anarquicamente mesclados… Fui então a Porto Seguro, imprimi as duzentas e tantas páginas do livro, a partir do disquete. E o caos se confirmou: era como se você pegasse um livro, picasse as páginas e depois misturasse tudo, numa miscelânea, para mim, desesperadora: meia página do primeiro capítulo desaguava no final do sétimo, que por sua vez se seguia ao nono… um absurdo sem fim. Levei o livro impresso, mutilado, para casa e recompus o texto inteiro, recortando os trechos aproveitáveis, tentando recuperar o irrecuperável. Esse foi o trecho pior da minha relação com o XT… Eu pensava que se tivesse gravado meu trabalho um minuto antes, nada disso teria acontecido. Mas tudo é por um triz… E assim foi. Quanto a escrever meus rascunhos, às vezes escrevo à mão, às vezes no computador. Não faz diferença, no processo de criação.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que as ideias me vêm da vivência, da observação, tão característica do artista. Há uma época em que mais queremos falar do que ouvir. Depois, dá-se o contrário… talvez o equilíbrio. Dos hábitos, o contato com a Arte, em suas expressões várias, é essencial para mim. Com o Afeto se dá o mesmo. São esses os meus guias, junto com a intuição, o território sensorial. Em meio a esse mar, tento estar à altura das ondas que se apresentam, muitas vezes sem sucesso, claro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Cheguei a uma simplicidade, que era algo que eu queria muito. No início, talvez como tantos escritores jovens, a forma me seduzia, eu me preocupava demais com ela, com a moldura, talvez por ser ainda tão “verde”, no quadro… algo assim.
Quanto ao que eu diria a mim mesma, se pudesse voltar… Não haveria o que dizer. Sou consequência da menina que escrevia a ponto de se embebedar com as próprias palavras. Não posso dizer que sinto orgulho daqueles textos que cometia. Mas sinto que se eu tirasse um elo dessa corrente, a estrutura se perderia, ou ficaria faltando um pedaço. Então, eu nem mesmo gostaria de voltar ao tempo dos meus primeiros escritos… Como não gostaria, de modo algum, de voltar ao passado, ainda que fosse para viver de novo umas passagens muito felizes… Pois teria, depois, de passar pelas infelizes também. Melhor não reviver, exceto nas lembranças caras à memória. Uma personagem de um conto que faz parte do meu mais recente livro, “Por assim dizer” (Patuá, 2018), diz que o tempo faz passar o que nos é caro, mas também faz passar o que dói. É isso. Cada hora é única. Já tive vontade de copidescar algumas passagens da minha vida, de corrigir atos que causaram sofrimento, não tanto a mim, mas a pessoas queridas. Hoje não vejo sentido nisso. Sou esse resultado. Eu queria e continuo querendo o melhor, não pelo viés equivocado do “winner”… Quero o melhor de mim, em mim. Não o melhor sobre os outros, sobre o outro. Creio que o único poder aceitável é o de nós sobre nós mesmos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que já comecei, mas não consegui, ainda, realizar: trazer a obra do escritor Adolfo Castañón para o Brasil. Procuro uma editora para ele e até agora não encontrei. Mas tampouco desisti.
E quanto a essa última pergunta, ainda quero ler tantos livros que existem, que não pensei em um que não exista. Mas se eu disser o seu nome, ele não passará a existir?