Wlange Keindé é escritora, socióloga, mestranda em Letras na UERJ e criadora do Ficçomos.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina matinal. Gosto de acordar cedo, mas não consigo fazer isso todos os dias e, quando consigo, não é sempre no mesmo horário. De qualquer jeito, o que faço pelas manhãs é ler um pouco e depois escrever até a hora do almoço. Às vezes, começo meu dia respondendo e-mails e comentários no YouTube.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou mais produtiva de manhã do que no resto do dia, tanto para literatura quanto para roteiros de vídeos. Também gosto de escrever à noite, até umas onze e meia. Para gravar ou editar vídeos, prefiro as tardes.
Algumas vezes, antes de começar a escrever, ouço músicas que tenham a ver com o livro, para entrar no clima. Outras vezes, só sento e escrevo. Também sempre leio os últimos parágrafos escritos, antes de seguir para os próximos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Meu sonho era conseguir escrever todos os dias, mas já entendi que não funciono assim. Sou do tipo de pessoa que mais reserva um dia para cada tarefa do que divide o tempo diário entre várias tarefas. Por exemplo, tem dias em que gravo três ou quatro vídeos, edito e posto um deles, e acabo não escrevendo nada. Tem dias em que me concentro apenas em estudar e não escrevo ficção. E por aí vai.
Não gosto de colocar metas diárias de escrita. Já fiz isso duas vezes: uma no NaNoWriMo de 2016 e a outra no processo de escrita de Sob as penas do corvo e as mágoas do corpo, minha novela publicada no livro Elas – na outra face da fantasia.
No NaNoWriMo, não consegui bater a meta: cheguei ao fim de novembro com menos de 19 mil palavras (quando deveria ter 50 mil) e uma sensação de frustração. No Sob as penas… eu consegui alcançar a meta final dentro do prazo, mas a tabela em que registrei minha produtividade diária ficou tipo: zero, zero, zero, zero, 5 mil, zero, zero. Então não posso nem dizer que consegui escrever todo dia.
Às vezes, passo uma semana sem escrever. Não tem problema, desde que eu ainda esteja com a história fresca na cabeça. Pensar sempre no meu projeto e estar sempre empolgada com ele é mais importante do que escrever absolutamente todos os dias.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu desenvolvimento enquanto escritora me põe cada vez mais no caminho de planejar o máximo possível antes de começar a escrever. Nunca começo a escrever sem saber qual é a história que vou contar e quem são meus personagens principais.
Para o livro que estou escrevendo agora, passei meses fazendo um planejamento super detalhado, com fichas de personagens, resumo dos arcos deles, resumo geral do enredo, resumos mais detalhados de cada cena, várias referências anotadas, várias informações pesquisadas, etc. Fiz isso em 2017. Por ter passado 2018 realizando meu TCC e 2019 escrevendo dois livros encomendados, só agora em 2020 consegui pegar aquele planejamento todo e começar a transformar em texto, e está sendo muito mais fácil do que seria se eu não tivesse me organizado tanto. Sei tudo sobre a história, mesmo depois de dois anos, porque está tudo anotado.
Acho que o planejamento é muito importante, mesmo que não seja tão metódico assim. As únicas coisas que consigo escrever sem planejar antes são contos curtos e poemas.
Sobre não-ficção, o processo é basicamente o mesmo: planejo tudo que vou abordar em cada tópico de um artigo ou de uma monografia e faço todas as pesquisas, leituras e fichamentos possíveis antes de sentar para escrever.
Fazer fichamentos é perfeito, porque já escrevo com minhas palavras e anoto minhas impressões sobre cada tópico do texto lido, então, além de não ter que voltar ao texto depois, posso usar trechos do próprio fichamento no meu trabalho. Por exemplo, em A criação do escritor, copiei e colei frases que tinha escrito no meu fichamento de As regras da arte, do Bourdieu. Agora estou começando o mestrado (que por enquanto está suspenso por causa da quarentena) e, ainda no processo seletivo, já comecei a fazer fichamentos que certamente vão virar material para a minha dissertação.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando começo a ficar ansiosa, me obrigo a lembrar que é tudo é processo. O resultado de um projeto nunca vem de uma hora para outra. Quanto mais experiência ganho nesse ofício, mais entendo que para termos algo grande precisamos fazer várias coisas pequenininhas uma de cada vez.
Leitura também é uma atividade inspiradora. Amo e acho necessário ler enquanto escrevo. Não precisa ser um livro que se relacione diretamente com o que estou escrevendo, basta ser bom. Ler bons livros me ajuda a destravar.
O medo de não agradar provavelmente existe para todo criador, mas acredito que o público em geral está mais disposto a achar pontos positivos do que negativos nas obras. Tudo que já publiquei (livros, vídeos) teve mais comentários bons do que ruins. Isso faz meu ânimo ser maior do que meu medo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muito se eu tiver tempo para isso. No caso de Sob as penas… e Você por aqui?, não tive tanto tempo, mas ambos os processos aconteceram em conjunto com as editoras, então tive outras mãos para trabalhar comigo na revisão, o que facilitou tudo.
Eu costumava mostrar meus textos para meus irmãos quando nossas rotinas permitiam. Agora só falo com eles sobre as ideias gerais. Nos projetos recentes, compartilhei os textos e as ideias com minha namorada, além dos editores que acompanharam os trabalhos desde a ideia inicial.
O que não costumo mostrar para ninguém antes de publicar são os poemas que posto no Wattpad de vez em quando.
Agora, pela primeira vez estou trabalhando com uma agente literária, então vejo que meu processo vai passar a ser menos solitário, com alguém me ajudando a trabalhar os textos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Hoje em dia, planejo e escrevo tudo no computador. Se eu fizer alguma anotação no papel, passo para o celular ou para o computador depois. E deixo tudo na nuvem, para poder acessar em qualquer dispositivo e por causa do trauma de já ter quase perdido um livro inteiro no pendrive.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Ler é o principal hábito. Não sou do tipo que lê cinco, sete, dez livros por mês: sou mais lenta, mas estou sempre lendo ficção e acho isso essencial.
Estudar literatura e escrita criativa também me motiva e muitas ideias vêm de leituras em outras áreas, como sociologia, filosofia e antropologia.
Outra fonte inesgotável de ideias: as pessoas. Andar na rua, ouvir uma conversa na fila do banco ou no ponto de ônibus ou num banheiro público, conversar com desconhecidos, tudo isso me dá ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sinto como errado responder a essa pergunta sendo tão nova. Quando comecei a escrever “sério”, eu era adolescente, mas ainda não estou muito distante dessa fase. Com certeza aprendi bastante e me reorientei muitas vezes nesses anos, mas sei que ainda vou mudar mais, e a questão é que essas mudanças me parecem muito rápidas. Por isso, acho estranho dizer algo como “hoje em dia” e “antigamente”. Mas é o que vou ter que fazer.
Hoje em dia, planejo mais do que antigamente. Além disso, não penso mais em agradar todo tipo de leitor, pois entendo que isso é impossível e que precisamos fazer escolhas que excluem outras possibilidades.
Outra coisa é que escrevo cada vez com mais facilidade, porque tenho cada vez mais consciência do que estou fazendo e vou aperfeiçoando meus processos.
O que eu gostaria de dizer para mim mesma na época dos meus primeiros textos é tudo o que eu já disse, digo e ainda vou dizer nos vídeos do Ficçomos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de criar um curso de escrita super completo para quem quer começar a escrever ficção, mas antes quero ter mais bagagem como escritora e ter credenciais como uma pesquisadora de literatura. Estou estudando literatura e roteiro em boas instituições. É uma pena que a crise de saúde pela qual estamos passando vá adiar algumas coisas.
Um livro que eu gostaria de ler e ainda não existe… Provavelmente ele existe, mas ainda não li. Seria um livro nacional com um enredo super empolgante, com um relacionamento entre mulheres bem construído e que tenha uma preocupação estética grande, que priorize um texto opaco, daqueles que chamam atenção por si mesmos.