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Como escreve Wilson Alves-Bezerra

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Wilson Alves-Bezerra é escritor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Sou uma pessoa para quem a escrita é uma prática visceral, mas também uma obrigação profissional. Escrevo literatura, mas também resenhas literárias, artigos de intervenção e textos acadêmicos. Posso escrever a qualquer hora, mas nunca optaria por escrever pela manhã. Pela manhã prefiro fazer atividades não sociais, não intelectuais. Pela manhã, preferia não ser um ser de linguagem. Como o ideal não existe, apenas coloco a correspondência em ordem e leio.

Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Ler não é necessariamente sinônimo de trabalhar. O trabalho pode ser leitura, tradução, faxina, transporte escolar, compras no mercado etc. O ritual da leitura é ir para a frente da tela branca do computador e fazer o que precisa ser feito. Pode ser em qualquer lugar da casa ou fora da casa. Na escrita, o computador é a casa, o olhar é dele, a prioridade é dele. Prefiro escrever à noite, quando não chegam e-mails, quando não há barulho na rua, quando o telefone não toca, quando não há notícias, nem reuniões, nem demandas. Há então condições para a melhor das concentrações. Então é possível escrever, mais e melhor.

Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

A meta da escrita profissional é poder chegar à encomenda – o prefácio, a resenha, o artigo, a orelha, a tradução. A meta da escrita literária não existe para mim: literatura para mim é mais sinônimo de compulsão à escrita do que necessariamente um certo número de laudas. Como escritor, sou mais dado às formas breves: o poema, o conto. E mesmo quando escrevo romances, escrevo pensando na forma breve: o capítulo. Assim, não me considero alguém que tem que produzir um certo número de laudas diárias. Isso só acontece no caso das traduções – literárias ou não – pois aí se não houver uma meta de produtividade, o trabalho se prolonga indefinidamente.

Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Não tem processo, nestes termos. Não tem necessariamente anotações. É abrir o computador e escrever quando surge a ideia, o projeto, a inspiração, quando baixa o santo, quando aperta o prazo. Enfim, é escrever. Quando há alguma pesquisa – de uma notícia, de uma língua, de uma linguagem, de um personagem, de um acontecimento – ela se dá em paralelo ao processo da escrita. Para mim, a chave é passar da leitura à escrita e vice-e-versa, em qualquer que seja o gênero.

Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

Com as forças que se opõem aos obstáculos: a necessidade, o desejo ou a teimosia de avançar. Além de escritor, corro meias maratonas: para correr uma meia-maratona, para treinar, não é preciso estar inspirado, é preciso começar a correr. A disciplina ajuda a dar vazão ao desejo. Então é preciso insistir, para correr, para escrever.

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

A leitura do próprio texto é uma etapa importante. A depender do gênero, leio meu próprio texto em voz alta: isso ajuda a ver a eficácia do verso ou da frase. Releio e reviso até sentir que ficou correto, coeso e fluente. Se for possível alguma alma caridosa ler o texto antes da publicação, tanto melhor. Mas o ideal nem sempre é o que a vida oferece. Por vezes, o fim da revisão, da releitura é pautado pelo Império do Prazo.

Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Eu sou do tempo da datilografia. Aprendi a datilografar com treze anos de idade. Embora já tenha escrito à mão e faça anotações à margem – a lápis – dos livros que leio, em geral escrevo no computador. Acho linda a ideia do editor de texto, desde que descobri o Wordstar. Migrar da máquina de escrever ao editor de texto foi divertido. Achava lindas as palavras aparecendo no monitor de fósforo verde, a possibilidade de subverter a frase já escrita. Devemos criar o Museu da Frase: expor frases escritas a lápis, à caneta, a frase escrita na máquina de escrever, a frase taquigrafada, a frase feita no Wordstar, a frase pixada no muro, a frase tatuada na pele, a frase estiletada na casca da árvore. Certamente não será a mesma frase. Pensemos sobre o gesto da escrita, o único registro que se pode fazer ao longo de uma vida humana.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?

O hábito da leitura. Se não houvesse leitura, eu seria uma lagarta ao sol.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?

O advento da escrita profissional na minha vida – sobretudo as traduções literárias e as resenhas literárias – me trouxe um espírito mais prático à série ideia-escrita-leitura-reescrita-publicação. Antes, era possível burilar indefinidamente um texto e depois manda-lo à gaveta. Agora já entendi que o texto é para os olhos dos outros, e que ele deve chegar lá o melhor possível, mas sobretudo que ele tem que chegar! Eu não diria nada a mim mesmo lá na escrita dos meus primeiros textos: eu me deixaria quieto, escrevendo. Se não, eu seria apenas um chato dando palpites.

Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

O grande projeto é um projeto revolucionário: o livro que, já escrito, é tratado com muito carinho pela editora, distribuído para todas as muitas livrarias – que repassariam as vendas aos editores. O livro, também, seria divulgado na imprensa, acolhido por uma significativa comunidade de leitores que o discutiriam entre si, em instigantes controvérsias. O nome desta utopia é Sistema Literário. Ela se torna real nos países em que há educação, direitos humanos e em que a cultura e a educação são patrimônios fundamentais. Num país assim, haveria cadernos literários inclusive nos jornais locais e nenhum museu seria incendiado até as cinzas.

* Entrevista publicada originalmente em 17 de setembro de 2018, no comoeuescrevo.com (@comoeuescrevo).

Arquivado em: Entrevistas

Sobre o editor

José Nunes é editor da Colenda.

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