Willian Delarte é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho dois tipos de manhãs durante a semana, basicamente. Quando trabalho de casa, geralmente fico responsável pelos cuidados da minha filha que tem quase dois anos. Acordo antes dela e tomo meu café, preparando em seguida, e antecipadamente, seu rotineiro mingau de aveia com banana amassada + pitada de canela em pó pra dá o gosto especial que ela aprova. Geralmente come tudo. Quando acorda, troco-a, brincamos um pouco, observamos o pé de algarobeira que temos à frente de casa, acenamos aos pássaros que por ventura passeiam por ali, dou o mingau com suco de laranja e, por volta das 9 horas, caminhamos a pé até a casa da minha sogra. Passo a bola dos seus cuidados e volto pra casa. Aí começo a trabalhar. Não, não saio escrevendo literatura quando digo “trabalhar”, sou controller de uma empresa japonesa de cosméticos e essa é minha profissão, carreira que comecei a construir há mais de vinte anos em escritórios contábeis. Nos dias em que vou ao escritório, de dois a três na semana, pulo antes das seis da cama e atravesso a cidade de São Paulo com transporte público, da periferia da Brasilândia, onde moro, até o Morumbi. Gosto de me locomover assim, ainda que demore mais de duas horas no percurso, estar na rua rodeado de pessoas reais, faz-me sentir real também. Explicar aqui o que seria esse “real” requereria muito esforço e muitas palavras. Vamos pular isso por enquanto, apenas sei que observar pessoas reais, coabitar seus espaços, sejam eles quais forem, sempre foi o combustível segundo da minha escrita. O primeiro é viver. Viver da maneira mais real possível, viver sinceramente, jogado na maravilha e na solidão que é viver assim.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Minha escrita pode acontecer a qualquer momento. Nos últimos anos tenho escrito mais em trânsito, no celular mesmo. Se estou no trabalho e o texto se impõe (porque é isso mesmo que ele faz), planejo-me e dou vazão, ainda que algumas planilhas fiquem pra depois. Planejamento é uma simples questão de organizar a urgência no caos das horas. Literatura é sempre urgente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas. Também não me cobro. Se estou imerso em algum projeto, tendo a me esgotar nele até finalizá-lo, como foi o término do meu primeiro romance (inédito) recentemente. Poemas surgem do nada, e pra ele voltam. Contos curtos também. Quando surgem, geralmente estou atento para tomar nota. Tomado nota, posso continuar depois. Às vezes o texto vem inteiro, às vezes vem em pedaços. Tem momentos que apenas escrevo a ideia, o sentimento, sabendo que o poema está pronto, basta apenas escrevê-lo. Hoje em dia, depois de alguns anos desse hábito, consigo resgatá-lo praticamente integral da maneira em que o pressenti apenas a partir dessas notas. Sempre escrevi muitos poemas, tenho dois livros publicados de Poesia e praticamente uns quatro na gaveta desse gênero. De um ano pra cá tenho escrito menos, só aquilo que considero pra mim essencial, e isso tem me tornado uma pessoa mais leve e mais focada na realidade, que ainda não a defini e provavelmente não o farei por aqui.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Com notas compiladas, é muito fácil pra mim dar o passo inicial. Em verdade, só existe um processo criativo: uma palavra depois da outra. Desde que descobri isso, nunca mais tive medo de nenhum texto, é como uma certeza de que a partir de uma palavra, as outras virão, mas para isso o texto já deve estar lá dentro, querendo brotar, materializar-se, apenas. Nunca começo um texto sem ideia alguma ou sem sentimentos prévios, com uma página em branco e a angústia de procurar algo. Isso nunca me serviu, acho que não conseguiria escrever assim.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido, em regra, muito bem. Escrever é um ato prazeroso pra mim, ainda que, muitas vezes, doloroso. Quanto mais doloroso, mais prazeroso também. É um masoquismo essencial pra mim. Textos sobre a felicidade-de-se-estar-vivo geralmente não se suportam depois de duas palavras e, se me sinto muito assim, apenas procuro viver. Viver é, antes de tudo, não escrever.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Um texto, prestes a ser publicado em livro, costuma receber inúmeras revisões e alterações por minha parte. Saber da publicação é saber também de sua morte, e antes dela vem aquela sensação e vontade de que seja a melhor morte possível. Costumo passar para um ou dois amigos lerem, três no máximo, caso seja um projeto extenso. Percepções prévias assim, de outros leitores, são ótimas para enxergar coisas que o vício da autorrevisão não me deixa perceber. Mas não gosto de amolar muito a boa vontade e o saco dos amigos com isso. Não mais.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Celular e computador, sempre. Todos meus manuscritos (lá no mundo pré 2008) acabaram virando lixo, literalmente. E que bom.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não sei se elas vêm de algum lugar, tão pouco se são minhas. Penso que vem da vida mesmo, e viver, precede tudo. Estar vivo é crucial. O melhor ou único hábito que cultivo. Os mortos não saem de suas lápides para alterar seus epitáfios.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Demorei um tempo pra conseguir me desapegar de um texto ruim. Hoje tenho a lixeira como um dos melhores amigos, talvez o maior. Escrever bastante no começo me deu a prática necessária pra hoje em dia só me debruçar sobre aquilo que, conforme disse, parece-me essencial. Com o tempo, a busca pela síntese e pelo enxugamento do texto tornou-se uma prática constante, no começo você tende a ser mais verborrágico, carregar nos adjetivos. Hoje me enamoro mais dos substantivos, daí a ideia de uma escrita mais substancial. Acho que esse é, ou deveria ser, o caminho natural de todo escritor.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho a ideia de ainda escrever um romance em forma de documentário sobre o estranho paradeiro de alguém que desapareceu e deixou inúmeras possíveis histórias, uma biografia torta dessa personagem a partir dos relatos estranhos de seus conhecidos nesse documentário que está sendo gravado por duas personagens e que, por um acaso, também caíram de paraquedas nessa história e lugar, uma vez que o objetivo inicial do documentário seria outro. Tenho nota de muita coisa sobre esse possível romance, mas não o comecei. Gostaria de lê-lo. Tudo o que escrevo é o que, ao final, eu gostaria de ler.