Wellington de Melo é escritor e editor, autor de Estrangeiro no labirinto (Confraria do Vento, semifinalista do Prêmio Portugal Telecom) e de Felicidade (Patuá).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Depende de qual dos clones responde. Normalmente sou eu, Wellington 4, quem cuida das entrevistas, redes sociais, essas coisas. Wellington 1 acorda cedo, se força a comer uma fruta ou qualquer coisa razoavelmente saudável, prepara o café da manhã e leva o filho mais novo à escola; à noite brinca ou desenha com ele, para que não fique mais que uma hora na TV; aos sábados, pega o mais velho na casa da mãe e faz algo com os dois irmãos; sai com a esposa ao cinema ou para jantar – às vezes fica em casa e prepara ele mesmo algo especial. Wellington 2 vai ao trabalho – na universidade ou na editora – e leva o dia nisso, entre preparar aulas, corrigir provas, revisar e editar livros, prospectar autores e autoras etc. Wellington 3 tenta manter a burocracia em dia – pagar contas, ir ao banco, essas coisas; sempre temos que dar uma bronca nele, mas nunca adianta. Wellington 5 vai ao ateliê ao menos uma vez na semana, produz livros artesanais e desenha. Wellington 6 é quem se dedica realmente à literatura, e faz isso nas brechas de tempo que encontra entre a procrastinação e tentativa de lidar com gêmeos ascendente em gêmeos, roubando o tempo de todos os demais. Wellington 7 não tem uma função específica, então se ocupa de tudo o que não foi mencionado. É tipo um faz tudo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Rituais são para pessoas que creem no sagrado. Deve haver escritores que acendem incenso, têm uma cadeira específica, rezam um terço, compram cadernos e canetas de uma única marca ou besuntam o corpo de óleo essencial para poder escrever. Não sou um deles. A literatura precisa estar no chão, ombro a ombro com qualquer outro trabalho, como um pedreiro ou o estoquista de uma loja – profissão que, aliás, tive na adolescência. Então, tento não cultivar qualquer ritual.
Atualmente, escrevo pela manhã por uma questão fisiológica: é quando minha mente está mais vazia, quando não estou tomado pelas outras tarefas. Escrevo naquele intervalo entre eu comer qualquer-coisa-razoavelmente-saudável e meu filho acordar. Claro que também produzo em outros momentos, mas tende a ser mais disperso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Invejo escritores e escritoras que têm metas diárias, sentam-se diante do computador e mandam ver duas, três, quatro páginas por dia. Alguns amigos escritores, inclusive, consideram que esse meu comportamento põe em risco minha denominação como escritor – o que faria dessa entrevista algo próximo a uma heresia.
Sou procrastinador e perfeccionista – uma combinação quase suicida para um escritor –, então acabo remoendo uma cena na cabeça por dias até a colocar na tela ou no papel. Às vezes anoto as ideias para depois desenvolver, por isso levo sempre um caderninho para notas rápidas, umas raras vezes gravo no celular; mas sempre esqueço de checar as notas e acabo escrevendo tudo de novo. Quando estou na fase final de escrita de algum projeto, tendo a concentrar mais, ainda assim isso varia muito.
Mas nós escritores somos também uns farsantes, de modo que seria melhor dizer a você que me sento todos os dias e escrevo ao menos uma página, mesmo que depois a jogue fora. Pronto, essa seria a resposta de um escritor profissional. Fica melhor assim?
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Lembro da escrita dos meus três últimos livros (os romances Estrangeiro no labirinto, Confraria do Vento, 2013 [semifinalista do Prêmio Portugal Telecom], Felicidade (Patuá, 2017), e o livro de poemas O caçador de mariposas (Mariposa Cartonera, 2013, produzido artesanalmente e traduzido para o francês). Os três formam minha Trilogia do pai, e foram processos muito distintos, mas há algo em comum: começo a partir de uma pequena ideia, que vai crescendo e se desenvolvendo até alcançar certo sentido de unidade.
Não lembro qual foi a ideia inicial que me levou a escrever o Estrangeiro no labirinto (a física quântica e a teoria das cordas, tarô, cabala, a confluência de universos paralelos?), mas foram sete anos entre as notas e pesquisas iniciais e a versão final. Já Felicidade demandou muito menos pesquisa, porque eu fui me desvencilhando da jaula que havia criado, a estrutura, com a ajuda de bons leitores. O caçador de mariposas partiu de uma vivência pessoal, e embora também tenha uma relação intersemiótica com o tarô e a cabala, foi muito mais orgânico o processo de escrita.
Normalmente, a ideia inicial tem pouco ou nada a ver com o projeto final. O que faço é anotar essa ideia e depois vou escrevendo as cenas para ir preenchendo esse esqueleto, só que às vezes a carne cresce para partes não previstas, um braço só de carne nasce, vem outra cabeça, então preciso ir reconfigurando esse corpo, amputando antigos braços com ossos e deixando os novos braços-só-carne. Quando esse monstrinho tem uma forma que me agrada, vou apenas aparando-lhe as unhas, cortando-lhe o cabelo etc.
A primeira imagem de Felicidade foi a de 40 ativistas saltando dos prédios mais altos da cidade em protesto, mas o livro foi para um lugar totalmente diferente, com o personagem, que tomou seu próprio rumo – sim, isso não é conversa mole de escritor – e ganhou força. Ademir no centro de seu próprio inferno, arrastando os demais para ele. O livro já não era sobre a queda dos ativistas, mas sobre a queda do protagonista rumo à loucura.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Passei umas duas semanas indo e voltando para essas perguntas, daí você tira a resposta. Faz parte do processo esse ir e vir, parar e retomar a escrita. Se trava, vou ler, pesquisar ou fazer outra coisa.
Não tenho muita preocupação em “corresponder às expectativas”, a não ser às minhas. Isso não significa ignorar que a escrita em algum momento se transformará em um diálogo com o leitor, mas tenho muito claro que o primeiro diálogo é comigo mesmo, com meus monstros. No final, há pessoas com as quais podemos conversar e outras com as quais não temos muito assunto. Há escritores que têm uma conversa fácil, e terão mais leitores – ou interlocutores – outros terão menos, faz parte.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não sou capaz de quantificar. Eu não escrevo de um só fôlego, para ter um primeiro rascunho e logo ir trabalhando. Refaço um parágrafo, uma frase mil vezes. Quando julgo que o livro está perto da versão final, costumo lê-lo em voz alta para mim mesmo, para ir encontrando falhas, cacofonias etc. – soube dia desses que Balzac fazia isso. Meu Felicidade eu comecei a ler às 9h e terminei às 18h, um dia antes de enviar ao editor; eu estava afônico ao final do processo, mas feliz com o resultado.
Gosto de entregar o livro a bons leitores, mas não necessariamente escritores. Acho que todos temos esses leitores de confiança, mas é sempre perigoso ouvir a opinião de outros escritores, porque cada escritor tem sua poética, sua forma de encarar a literatura. Isso é bom e ruim, porque, no final, as decisões sobre o que permanece ou não são do autor, não importam as leituras prévias.
Minha mulher é uma excelente leitora e minha primeira interlocutora, para quem conto os projetos antes mesmo de escrever. Levo sempre em consideração as opiniões dela sobre o texto – embora, assim como acontece quando peço leitura de amigos escritores, nem sempre sigo as recomendações.
Tenho também o hábito nada seguro de contar o enredo aos amigos enquanto ainda estou escrevendo. É uma forma de me ajudar a dar unidade ao projeto, inclusive ver se aquilo funciona enquanto história. Sempre acho que corro o risco de o inconsciente coletivo captar com sua antena o que digo e de repente ver aquilo materializado, sei lá, no livro de alguém ou no noticiário das oito. Mas gosto de correr riscos.
Um exemplo: uma cena de Felicidade aconteceu no mundo real duas semanas depois de eu tê-la escrito. Ao invés de pensar “pronto, a realidade acabou com minha ficção”, fui procurar na internet a repercussão daquele evento e achei interessantes os comentários das pessoas, que iam do desejo de pêsames a manifestações de ódio. Há um trecho do livro que é praticamente todo copiado desses comentários em redes sociais, que transformei em um fluxo de consciência dentro da mesma cena. Não se tratava de dar um toque realista, mas justo o contrário. Na verdade, não me considero um escritor realista, mas um expressionista.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu gosto de usar as ferramentas que estão disponíveis, mas não me sinto escravo de nenhuma. Se estou em lugar em que só tenho um caderninho e uma caneta, escrevo com eles; se estou com um celular, posso gravar uma nota para escrever depois – já falei que às vezes esqueço que gravei e só descubro anos depois que escrevi aquilo, mesmo sem ter consultado de novo a gravação?
De uma forma ou de outra, ao final, a escrita será transposta para o computador, hoje não há como fazer de outra forma sem enlouquecer. Claro que me envergonho quando penso em Cervantes com sua pena, papel e vela, mas aí eu teria que dispensar a penicilina, o internet banking e os sebos eletrônicos. Quem pode viver hoje sem essas coisas?
Atualmente uso três programas, em fases diferentes do projeto. O Scrivener funciona para tudo, mas seu forte é a capacidade de organizar o livro e a pesquisa num lugar só. Ele também tem uma ferramenta de preparação de texto que te ajuda a ter uma versão diagramada para impressão. Descobri o OmmWriter, que tem uma interface que favorece o foco: quando quero escrever um trecho longo de um só fôlego, é o que uso. Quando o projeto está no final, exporto para o Word, onde consigo editar o conjunto com mais facilidade e fazer os últimos ajustes do texto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
A arte é aquilo que aprofunda nossa existência sobre a terra, então não há outra maneira de alimentar a arte que existir. A criatividade não se desenvolve pelo hábito, mas pela forma como cada um enxerga o mundo. Há pessoas que usam a sua criatividade para fazer o mal – conheço algumas que são extremamente boas nisso – outras que a usam para criar beleza. As que são desprovidas de qualquer criatividade ruminam o que os outros fazem e seguem apenas existindo na superfície, nunca chegarão ao nervo da humanidade – que é onde reside a grande arte.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Nunca pensei sobre isso, sobre essa mudança. As coisas acontecem por motivos totalmente banais e um dia qualquer você ganha um hábito sem perceber. Há um cara que desprezo e que me ensinou a dar dois laços no cadarço para não soltar. Faço isso quando o cadarço é de nylon até hoje. No dia em que fui demitido de uma escola por ter me oposto à censura de um filme que faria parte de um cineclube que organizávamos, aprendi, com o coordenador disciplinar, a dar um nó de marinheiro, que sigo usando para costurar os livros artesanais que produzo. Todo dia se aprende algo.
No dia em que voltei para conversar comigo mesmo, ainda criança, foi estranho. O eu-criança tinha vários cadernos onde fazia histórias em quadrinhos, todas incompletas. Em outro caderninho, escrevia uns poemas, também em umas folhas soltas. Nesse dia, o senhor barbudo e de olhar triste não disse nada a seu duplo e desapareceu. Mais tarde, encontrei com o eu-adolescente, com um computador comprado com os primeiros salários da loja do centro onde trabalhava como auxiliar de limpeza. Acho que o vi levando aquele 486 de tela cinza para casa com brilho nos olhos. Foi nele que escreveu as primeiras narrativas, todas abandonadas em algum HD perdido. Quando voltei pela última vez a ver esse meu eu-passado, quis dizer algo, como você sugeriu na sua pergunta, mas só me ocorreram os versos de José Agustín Goytisolo:
Perdóname no sé decirte
nada más pero tú comprende
que yo aún estoy en el camino.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Lembro do que aconteceu nos últimos dez anos de minha vida e me assusto como foi rápido e como, ao mesmo tempo foram tantas coisas. Quantos anos ainda tenho pela frente? Vinte, trinta? Um ano? Deixarei um livro incompleto? Há tanto a fazer e tão pouco tempo. Se vamos pensar nisso, enlouquecemos. Há um poema de meu terceiro livro, o peso do medo (Paés, 2010), que talvez ajude. Se chama “Wellington de Melo”. Te respondo com ele:
não não não não serás grande poeta porque letra não se faz com afago não se faz com pena do amigo ou de seus alfarrábios não se faz culpando fúria de crítico frustrado engolindo medo de ser culpado serás funcionário cinza de iniciativa privada terás alguns belos fins de semana na praia e um um ponto zero meio usado uma vidinha classe média e uns poucos amigos sinceros não importa quanto sangre cada livro que letras mortas e pupilas empoeiradas em tuas costas sempre pesarão beberás como um cão sorrisos de canto de boca de burocratas do mecenato sobreviverás a lançamentos solitários em tardes ociosas de shoppings lotados farás rimas fáceis em troca de um trocado bajularás os papas da literatura provinciana do recife por um prefácio velado lerás talvez um dia um comentário insosso num blog pouco visitado darás em tua vida uma entrevista de três minutos um dia morto numa rádio muitos anos depois que te fores depois de os prêmios de todos os grandes poetas de tua geração terem se transformado em notebooks carreiras de coca viagens a cancun programas com boyzinhos descolados teu filho encaixotará teus livros não vendidos num sábado funerário e te esquecerão não serás grande poeta não não não