Wélcio de Toledo é poeta, contista e doutorando em literatura na Universidade de Brasília, autor de Rosa como o bico do meu peito.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa com o basicão do trabalhador classe média brasileiro. Acordo, arrumo as crianças para a escola junto com minha esposa, tomo café correndo e vou para o trabalho “oficial”, pois a literatura não me sustenta financeiramente. Sempre dou uma lida no jornal (é, eu sou um cara das antigas que lê jornal…) e também dá para folhear alguma revista ou periódico literário, já que eles ficam espalhados no quarto para desespero da minha companheira. Tenho dois dias de home office na semana e aí consigo acordar um pouco mais tarde e aproveito a manhã para correr uns 6 km. Por incrível que pareça, é nesse momento que consigo dar uma organizada nas ideias. Enquanto corro penso no que tenho para fazer durante o dia e geralmente me surge alguma coisa interessante, seja para deslanchar em algum texto ou para botar em algum projeto ou para esquecer e voltar a lembrar na próxima corrida.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto de escrever no período da noite, de preferência tarde da noite. Adoro a sensação de estar sozinho na madrugada, mesmo com uma casa cheia como a minha. Chego a varar a madrugada escrevendo ou mesmo procurando “aquela palavra” que poderá fechar com chave de ouro o meu poema. Meu ritual consiste em sentar de frente para o computador e aí começo o duelo com o texto onde nem sempre ganho.
Sou bem caótico na escrita, tanto nas acadêmicas (sou professor e faço doutorado em Literatura) como em meus textos literários, mas tenho plena noção de uma organização interna nesse caos. Gosto de escrever com a televisão ligada ou mesmo com um som alto (blues, mpb ou rockenroll caem bem). E é assim que as coisas fluem na tela do meu computador: sofrendo com o meu fluminense na TV, ouvindo uma música boa e ao mesmo tempo navegando em páginas na internet. Claro que hoje já consigo me preparar antes de sentar de frente para o computador, ter uma ideia prévia do que vou escrever, e essa seria minha bússola no caos da escrita. Só que na poesia estou sempre aberto ao que virá, então pode ser que eu sente pensando para escrever um poema sobre um tema e, influenciado pelo que estou ouvindo, vendo ou mesmo bebendo, saia um texto sobre algo que ainda não havia imaginado.
Também gosto de escrever em cafés. Aqui em Brasília tem alguns lugares que me deixam muito à vontade para produzir. Um café aberto, com música ambiente e gente passando. Eu diria que esse é um ambiente propício para a minha escrita. Mas tem uma coisa muito importante no meio de tudo isso, a escrita para mim é um trabalho sério. Esse “ritual” às vezes se dá durante vários dias, semanas, meses para que eu consiga criar um poema. Não tem essa história de sentar e pronto, saiu um poema. Como todo trabalho há expectativa, há suor, há desânimo de não ver o resultado de acordo com a expectativa criada, mas também há muito prazer. Só não há dinheiro porque poeta deve viver de luz, né?
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A vida da gente já é cheia de metas e prazos por isso procuro com a escrita não entrar nessa neura de prazos. A não ser que apareça algum trabalho encomendado nesse sentido. Procuro estar focado no mundo da literatura todos os dias, mas isso não quer dizer que eu tenha que estar escrevendo. Passo dias sem escrever e acho isso bom porque não quero entrar nessa piração de competitividade, ainda mais competitividade comigo mesmo. Eu, hein!
De vez em quando me coloco umas metas pessoais só para brigar um pouco com minha procrastinação, principalmente na prosa. O meu livro mais recente é um de contos (Rosa como o bico do meu peito) e me deparei com um processo bem diferente na prosa, então me obrigava a estar de frente para o texto o máximo de tempo possível. Mas isso não era uma regra, foi uma necessidade que tomou conta de mim. Geralmente acontece quando percebo que estou finalizando um livro. Vira uma obsessão, um vício que me provoca sensações intensas e extremas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como eu já disse, meu processo é bem caótico e deixo fluir esse caos na criação de poemas. Já na prosa a briga é mais pesada, pois me pego numa situação de maior racionalidade, com mais pesquisas e leituras prévias e com uma organização maior no que diz respeito à estrutura. Na poesia também acontece isso, mas em menor grau.
Vez por outra surge um poema “do nada”, mas eu gosto de pensar no que vou escrever, de imaginar o texto pronto, a dicção, a forma, se é mais pesado ou mais fluido, essas coisas. Pode ser que no final não saia nada disso, mas essa preparação ajuda a me mover no caos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com muitas drogas, embriaguez, comas alcoólicos, tentativas de suicídio e assassinatos. Essa seria a resposta padrão para uma pergunta desse tipo. Mas, como preciso pagar contas, não dá para perder muito tempo com isso.
A procrastinação já faz parte do meu cotidiano na mesma proporção da minha ansiedade. Essa coisa de expectativa é o que mais me chateia, pois eu escrevo para alguém além de mim. E aí, claro que vou me preocupar com o resultado do meu trabalho. Com o tempo estou ficando mais tranquilo em relação aos prazos que me colocava. Antes ficava numa agonia para terminar logo o livro, agora estou mais preocupado com a fruição do trabalho, isso me faz mais exigente comigo. Um exemplo é o meu próximo livro, que está praticamente finalizado, mas coloquei na cabeça que só vou mandar para editora quando colocar uns cinco poemas que ainda pretendo fazer. Eu gosto de pensar na cara do livro, em como eu acredito que ele deva mexer com o leitor. E com esse agora eu quero esmerilhar bem para que o livro fique muito próximo do que estou sentindo nessa época. E isso não tem a ver com a quantidade de páginas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes. O mais difícil de um texto é colocar o ponto final. Eu escrevo muito e vou colocando tudo que penso no texto. Depois é a tarefa interessante de cortar, passar a faca, reescrever, ler, reler. Acho que leio um poema umas cinquenta vezes antes de me dar por satisfeito. Gosto muito de gravar os poemas e escutá-los, pois a sonoridade do poema, a sua dicção, conta muito pra mim. Nessa revisão, o poema pode parar na lixeira, ou se transformar em dois ou três poemas distintos. O importante, além de ler, reler e ouvir o poema, é o tempo de maturação. Depois do processo de revisão, gosto de deixar o poema descansando por um tempo (dias ou semanas) e só depois desse período considero finalizado o trabalho.
Geralmente mostro meus poemas para um grupo restrito de amigos e para minha esposa, que é a minha maior crítica. Com ela não tem essa de babação, não. Se alguma coisa estiver ruim ela fala na lata. Em alguns casos eu acato, em outros bato o pé e sigo na minha intransigência.
Já com os textos de prosa eu sou mais reservado. Até porque não gosto de ficar forçando a barra, pedindo para os amigos gastarem seu tempo com minhas inutilidades.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Levo meu notebook para todos os lugares. É minha ferramenta de trabalho. Mas também sempre carrego meu caderninho no bolso. É ótimo para anotar ideias e consigo escrever poemas inteiros nele e depois só passo para o computador. O gravador também ajuda para guardar algumas ideias ou frases. Porém, a maior utilidade do gravador está em poder ouvir meus poemas logo após de pronto para sentir o clima, a densidade.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As minhas ideias surgem do cotidiano, da rua, do barulho. O silêncio pode até ajudar para escrever, mas a inspiração surge no meio do burburinho barulhento da vida.
Sou uma pessoa muito imagética e os meus dois primeiros livros tiveram muito de poemas criados a partir de imagens. O de contos também é muito marcado por isso. Gosto de fotografar e uso esse hábito como ponto de partida para elaborar alguns poemas. Sou muito da rua e, como um voyeur declarado, me pego sempre observando e ouvindo gente. Também sou muito ligado no mundo das artes. Música, cinema e artes visuais são um grande mote para minha escrita. Tenho vários poemas que conversam com quadros e músicas que me marcaram. Frequento muitas exposições, shows, e acho esse diálogo entre as artes fundamental para a produção literária. Questões políticas estão sempre presente em meus textos, contudo procuro me policiar para não escrever panfletos. O estético deve estar sempre a frente. A palavra é a essência da literatura, assim como os silêncios.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Espero que tenha mudado algo na minha escrita da mesma forma que algo deva ter mudado na minha existência. Escrevo desde os 12 anos e os primeiros textos são aqueles cheios de energia, de ideias interessantes, porém pode haver algum escorregão na forma, na estrutura. Fico feliz em ler meus primeiros textos e não sentir aquela vergonha alheia…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ainda quero fazer um romance sobre os candangos (trabalhadores que vieram para construir Brasília a partir do final da década de 1950), seu cotidiano, suas lutas, sua relação com o cerrado. Tenho um livro sendo gestado lentamente que tem o cerrado, o céu e a solidão como ponto central nas relações em Brasília. Um dia sai.
São muitos livros que gostaria de ler a ainda não existem. Se depender dos amigos que tenho no mundo da literatura logo estarei lendo esses livros, pois temos um pessoal muito bom na literatura contemporânea. Aliás, acho que até já escreveram muitos desses que disse não existirem ainda. Mas como o acesso e a distribuição de livros no mercado é muito difícil, temos essa sensação de invisibilidade.