Wânia Pasinato é doutora em sociologia pela USP, assessora técnica da ONU Mulheres e da USP Mulheres.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não sou das manhãs. Pela manhã sou lenta, mal-humorada e tenho dificuldade de concentração. Sou da noite. Gosto de ficar acordada de madrugada, seja para trabalhar ou descansar. Infelizmente a vida não permite que eu viva no ritmo que gosto. Então o dia começa com um banho e café. Muito café. Faz pouco tempo que me dei conta de um hábito que tenho: sentar no sofá por alguns minutos enquanto tomo uma xícara de café olhando pela janela. É um momento de organização do dia. Uma pausa antes de sair de casa. Lendo uma dessas postagens do tipo “dez coisas que as pessoas fazem para…” me dei conta que essa era uma das coisas que eu faço para me sentir bem e começar bem o meu dia. Percebi que era algo bom, que me ajuda a conectar comigo e com as coisas que faço. Não sei dizer quando comecei a fazer isso, mas procuro manter como um hábito, e não como uma imposição. Se não der para tomar o café sentada no sofá por cinco minutos, não tem problema. As coisas acontecerão igual.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A escrita flui melhor à noite, mas também gosto dos sábados e domingos quando começam bem tarde. Na verdade, são momentos de silêncio que me ajudam a escrever melhor. Pela manhã tento reservar para fazer coisas mais simples, mas nem sempre é possível e acabo tendo que lidar com a frustração de produzir muito pouco durante o dia. Para isso tento o máximo que posso deixar as manhãs e início da tarde para ler e responder e-mails, ler artigos para dar parecer, ler ou elaborar pequenos textos, preparar ofícios, participar de reuniões etc. No final da tarde a concentração melhora, fico mais alerta e começo a ter mais disposição para escrever. Depois das 22h tenho condições de sentar e escrever com mais tranquilidade e tudo flui bem até 3h da manhã. Demorei muito para entender que eu era assim e que esse era meu ritmo de trabalho e que eu deveria me respeitar. Nem sempre dá, mas saber que sou assim me ajuda a lidar com a frustração e ansiedade e me cobrar menos.
Dos rituais de escrita tenho três (que eu identifico como rituais): a mesa de trabalho precisa estar em ordem, com textos empilhados e sem bagunça em volta. Se vou iniciar um texto novo então preciso começar do começo, literalmente: faço a capa (se for relatório), título, resumos, esboço do sumário, créditos… Preciso ter o texto formatado e ‘bonitinho’ para então iniciar a redação. Para os textos já iniciados, o ritual é a releitura. Repasso o texto cada vez que retomo a escrita. Não é uma revisão detalhada, mas vou fazendo correções, acréscimos, ajustes. É uma forma de ir retomando o “fio da meada” até chegar no ponto onde havia parado a escrita. No dia a dia há muita atividade simultânea. Fazer essa releitura me ajuda a voltar para o texto, concentrar, dar sentido e harmonia ao que estou escrevendo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nossa, quem me dera conseguisse ter uma meta. O ritmo da escrita varia com o que estou escrevendo e com os prazos que tenho. Além de trabalhar na universidade eu trabalho com consultorias, em geral mais de um projeto ao mesmo tempo e por isso a maior parte do que escrevo são relatórios. Tenho dificuldade com prazos e raramente consigo me planejar para começar com antecedência. Em geral vou organizando as leituras, organizando o material que vou usar enquanto vou mentalmente esboçando a estrutura do texto. Quando sento para escrever preciso ter essa estrutura desenhada, mesmo que modifique na hora de colocar no papel ou no decorrer da escrita. Por conta das atividades que faço, acabo escrevendo um pouco todos os dias (ou noites), mas o faço em períodos concentrados (em geral quando os prazos estão chegando ao final!) Escrevo poucos artigos acadêmicos e sinto cada vez mais dificuldades para me organizar com esse estilo de texto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como eu disse, a maior parte dos textos que escrevo são relatórios para consultorias. Ou seja, são produtos técnicos como avaliação de serviços ou programas que trabalham com violência contra as mulheres – meu tema de trabalho. Também desenvolvo materiais didáticos e tenho me dedicado a pesquisas sobre produção de dados sobre violência contra as mulheres e indicadores de monitoramento e avaliação de políticas e programas. Na maior parte das vezes faço essas consultorias sozinha. Às vezes demoro para ter um texto fluindo porque tenho dificuldade em encontrar a primeira frase e me sentir confortável com a estrutura do documento e, em geral, são os prazos que dizem que chegou a hora de sentar e começar a escrever. Então reúno a maior parte do material que recolhi (bibliográfico, documental, material empírico) e sigo os rituais que descrevi antes.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido muito mal com tudo isso. Sou muito ansiosa, perco o sono e aumento o consumo de café. Se estou trabalhando em casa, interrompo o trabalho várias vezes. Se for durante o dia vou cuidar de afazeres domésticos e assim tentar relaxar e voltar para o texto. Se for à noite, ando pela casa, olho a cidade adormecida pela janela… depois volto mais um pouco. Se estou no escritório na universidade e não posso incomodar as pessoas com quem divido espaço, então deixo várias janelas abertas no computador (redes sociais, e-mail, WhatsApp, outros textos) e vou passando entre eles sempre que travo numa frase, numa ideia. Às vezes escrevo dois textos simultaneamente. Quando um para eu vou para o outro. É uma forma para lidar com a ansiedade de que sempre há mais de uma coisa a ser feita e não dá para ficar olhando para o papel em branco esperando as ideias surgirem.
Para mim o processo de escrita envolve muito sofrimento. Tenho uma autocrítica muito severa e em geral não gosto do que produzo. Daí a dificuldade em começar a escrever e também para concluir qualquer coisa. Em tempos recentes deixei de entregar artigos com os quais havia me comprometido porque não consegui lidar com essa ansiedade. Foram dois artigos na sequência. Me senti muito mal e com um sentimento de frustração enorme, mas estava muito cansada, viajando muito a trabalho e não consegui me concentrar para escrever. Foi horrível.
Esses dois episódios ocorreram num momento muito ruim e que tem afetado bastante minha relação com a produção escrita. Em 2016 tive um artigo que foi plagiado. Um trauma que ainda não superei e que tem me desestimulado bastante a escrever e publicar. Não foi a primeira vez que passei por essa situação e sei que não sou a única pessoa a sofrer com isso. Ao contrário, infelizmente notícias sobre plágio tem se tornado muito frequente nas nossas universidades. Mas essa situação em especial me deixou baqueada. Senti um desrespeito muito grande pelo meu trabalho e por mim porque conheço a pessoa e pedi a ela que não fizesse. Senti isso como uma desvalorização da minha escrita, da minha fala, do meu conhecimento. O plágio é uma afronta ao conhecimento. Quem age dessa forma está agindo sem ética nem respeito. Na verdade, está agindo de forma criminosa, já que o plágio está tipificado na Lei de Direitos Autorais.
Essa é uma mensagem importante que devemos passar para quem quer escrever, especialmente para quem quer produzir na vida acadêmica. Não existe escrita fácil. As pessoas que escrevem bem estudaram para isso, têm gosto pela leitura, têm dedicação. Não se pode copiar o trabalho alheio indiscriminadamente, nem mesmo quando os textos estão disponíveis na internet, pois também existem regras para essas citações serem feitas. Plágio é desrespeito pelo trabalho do outro, mas é também um desrespeito com o campo de conhecimento com o qual se pretende contribuir, ou no qual se espera ter algum reconhecimento. A Débora Diniz juntamente com Ana Terra Mejia Munhoz escreveram um artigo muito bacaninha sobre isso e que eu acho que deveria ser distribuído para o(a)s aluno(a)s que ingressam na universidade e discutido em sala de aula. Chama-se “Cópia e pastiche: plágio na comunicação científica”.
Eu acredito que nenhum(a) de nós está livre de copiar algo de um texto sem dar os créditos corretos. Pode acontecer como um descuido, ainda mais porque na maior parte das vezes escrevemos com prazos, sob pressão e cansaço. Penso que eu mesma já posso ter feito isso, mas posso garantir que não fiz de forma intencional e me cerco de muitos cuidados para que não aconteça (por exemplo, quando copio um trecho de texto, ou uso a referência a um conceito ou argumento, já coloco as devidas aspas e anoto a referência completa. Depois formato de acordo com a ABNT).
Infelizmente ainda lidamos mal com essas situações no Brasil e nas universidades não ensinamos para os estudantes o que deve ser essa escrita com responsabilidade e ética. E quando surge a situação, não raro somos desestimulada(o)s a não denunciar para não causar transtornos a quem cometeu o erro. Nesse caso, o plágio se associa com outra violação: uma forma de revitimização em que você tem que sofrer e arcar sozinha com as consequências de um dano que foi provocado contra você e para o qual você não contribuiu. Também recebi essa mensagem de desestimulo, mas também encontrei apoio e pessoas que compartilharam comigo suas experiências de ter seus trabalhos copiados e o penoso caminho da busca de reparação de um direito violado. Ainda estou nesse caminho e essa história sem desfecho tem me desmotivado bastante.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Várias. Não tem uma quantidade estabelecida. Reviso até achar que está minimamente razoável, mas nunca considero que estão prontos. É sempre um sofrimento o desapego. Pela natureza dos textos que produzo (relatórios) nem sempre dá para apresentar para alguém antes. As revisões acontecem depois da entrega e fico bem feliz quando surge essa possibilidade, porque é sinal que alguém leu e dedicou algum tempo ao que foi escrito. Coisa mais triste é entregar produtos técnicos e não receber nenhum comentário!
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu me relaciono bem com a tecnologia, mas nem sempre foi assim. No início dos anos 2000, quando estava escrevendo a tese de doutorado, eu ainda fazia os rascunhos à mão e depois ia para o computador digitar. Era frequente que na passagem do texto rascunhado para o digitado fosse se transformando, mas essa era parte importante do processo criativo. Depois aprendi a escrever direto no computador e hoje faço isso tranquilamente – tenho até o ritual de formatação quando inicio novos textos, lembra? Mas há momentos em que ter o texto impresso pode ser fundamental. Por exemplo quando enrosco em algum argumento, ou na transição de um item para outro, ou quando vai chegando a hora de escrever as conclusões. Então é momento de parar e ver o texto “concretizado” no papel. Aí é o momento de ter o texto impresso, estar longe do computador, lápis na mão e muita concentração… sempre surgem coisas novas nesse processo e o fechamento flui melhor. Também uso o computador para organizar notas para os textos, sistematizar material de pesquisa, preparar material para análise. Ainda que depois eu imprima tudo para ter mais facilidade de manuseio, está tudo lá arquivado e posso usar o recorte e cole sempre que necessário. Também tenho gostado de usar o gravador do celular para registrar ideias que surgem ao longo do dia (confesso que também já usei durante a noite naqueles momentos em que a gente desperta com aquela frase linda formulada na cabeça!). Confesso que a única coisa que ainda não me adaptei bem é com a leitura de textos em formato digital. Ainda prefiro ter os artigos e livros impressos para poder anotar, riscar, marcar com post-it.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm dos projetos, das demandas de quem contrata, das leituras que faço, da participação em eventos e seminários, das aulas, da observação e contato com a vida das mulheres que sofrem violência. Leio muito sobre os temas com os quais trabalho – violência contra as mulheres, legislação, políticas públicas, mecanismos de avaliação e monitoramento, sistemas de dados e produção de indicadores, gênero, transversalidade e interseccionalidade de gênero. Mas leio também sobre temas relacionados à violência, criminalidade e direitos humanos – campos de pesquisa nos quais fiz minha formação inicial como pesquisadora. Gosto de me manter informada sobre os debates na segurança pública, sistema de justiça etc. Busco transitar entre os estudos mais amplos e aqueles que adotam uma perspectiva de gênero. Minha dupla inserção nesses campos de estudos me permitiu desenvolver uma sensibilidade para analisar o que é necessário para garantir especificidade nas respostas à violência contra as mulheres. Também leio muitos romances e gosto especialmente daqueles que falam do universo feminino.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Apesar de ainda ter muitos receios e travas, hoje escrevo com mais desenvoltura. Com o passar dos anos acho que tenho conseguido seguir o conselho que meu orientador na pós-graduação sempre me dava: “é preciso liberar a imaginação sociológica”. As atividades como consultora me ajudaram muito nesse percurso porque descobri na pesquisa aplicada um espaço de produção em que a criatividade é fundamental. Explorar os achados das pesquisas à luz da bibliografia, colocar em diálogo os dados, os conceitos, categorias de análise, tudo isso sem perder de vista a finalidade prática dos resultados e o contexto social e político sobre o qual se pretende incidir. É um trabalho que exige conhecimento e coragem porque o instrumental conceitual que dispomos não é suficiente para tratar a complexidade dessa realidade e as vezes é preciso problematizar o óbvio para chegar a algumas respostas mais razoáveis para os problemas que estão sendo colocados.
O que eu diria a mim mesma se eu pudesse voltar à escrita da minha tese? Eu diria, vai com coragem. Outras pessoas escreveram coisas muito interessantes e certamente você se sente frustrada com isso. Mas tudo bem. Faça o seu melhor. Escreva com dedicação e respeito pelas pessoas que vão ler seu trabalho. Mostre tudo o que sabe, mesmo que pareça pouco. Mais à frente alguém conhecerá seu trabalho e se disporá a dialogar com você, fazendo com que esse conhecimento esteja em movimento e se transforme em algo melhor.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu adoraria escrever um livro sobre feminicídios a partir da experiência que tive com o projeto de elaboração das Diretrizes nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. Esse documento resultou de um projeto que coordenei na ONU Mulheres durante dois anos e meio. Além de coordenar um grupo de trabalho que elaborou o texto, trabalhei arduamente na finalização do documento fazendo o arremate final para incluir a perspectiva de gênero do início ao fim do documento, colocando que em cada capítulo o diferencial de investigar, processar e julgar as mortes violentas de mulheres possa ser feito à luz das diferenças de gênero. Nesse trabalho pude colocar em prática muito do conhecimento que tinha como pesquisadora sobre o sistema de justiça criminal, pude estudar mais sobre temas que fazia tempo não me dedicava, mas também me deparei com lacunas importantes nos trabalhos sobre violência contra as mulheres. Gostaria de ter tempo para escrever sobre essa experiência. Esse é também um livro que eu gostaria de ler e que não existe ainda.