Wander Shirukaya é escritor, autor de “Balelas” (2011) e “Ascensão e queda” (2015), um dos organizadores da antologia “100 anos de amor, loucura e morte” (2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma rotina, mas não exatamente com relação à literatura, pois o ganha-pão chama primeiro. Trabalho em uma biblioteca, o que me permite ler um pouco às vezes, mas a prioridade é cuidar dos afazeres técnicos da função.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Geralmente à noite ou madrugada. Não tenho rituais porque o processo é mais ou menos irregular no que diz respeito a horários.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Por causa do pouco tempo não tenho como escrever todos os dias, procuro então concentrar o processo em temporadas específicas. Sobre a meta, embora eu não a siga, penso que é faca de dois gumes: por um lado ela te traz certa disciplina e responsabilidade com seus projetos; por outro, pode perturbar o autor por uma cobrança excessiva por produção. Cabe uma ponderação de como ter um meio termo aí. Nas minhas temporadas de escritas tento ter uma meta, mas não muito concreta. Não foco em escrever tantos caracteres, mas em conseguir certa quantidade de horas trabalhadas no projeto – e não necessariamente escrevendo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Penso que se as notas são suficientes, não haverá problema em começar a escrever. Como me julgo um estruturalista de carteirinha nesse sentido, tento traçar um projeto de como o texto inteiro vai fluir, demarcando detalhes importantes para que eu não me perca. Se necessário faço escaletas, fluxogramas, tudo que possa me proporcionar uma visão “macro” da obra e que seja de fácil acesso durante o processo, já que quando o autor está imerso em um trecho muito específico do que escreve, ele tem apenas uma visão “micro”, o que pode causar uma perda da noção do todo, erros ou ainda bloqueios conforme o andamento da narrativa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que conhecer um pouco sobre como funcionam outras expressões artísticas (tocava guitarra, mas desenho até hoje) ajudou. Há uma coisa pregada por ilustradores que acredito ser verdade: nossos bloqueios estão ligados à falta de referências. Se durante o seu processo você organiza um leque considerável de referências que te ajudarão no objetivo final, basta que se recorra a eles para evitar um entrave. Transpondo isso para a literatura, se por exemplo o autor deseja um romance sobre violência nas grandes capitais, provavelmente estará lá no seu mural de referências tudo que possa lhe inspirar, do básico do assunto a artistas mais inusitados que são parte de sua vivência – e esses artistas não precisam ser outros da literatura, podem ser artistas plásticos, diretores de arte, game designers, filósofos. Há na cabeça de muitos escritores a ingenuidade de que suas influências devam ser sempre de outros escritores; só aí você já tolheu noventa por cento da sua inspiração, o que pode criar bloqueios mais à frente. Ressalto aqui que é muito importante buscar as referências para seu projeto, pois o autor tende a achar que inspiração é criar algo “do nada”, quando na verdade isso não existe. A criação está intrinsecamente ligada ao diálogo que você abre com suas referências.
Sinceramente, não sinto problemas quanto a não corresponder à expectativa do leitor, justamente porque, para mim, essa necessidade de atender ao leitor não existe. Bernardo Carvalho diria algo como “o leitor que se foda”. Sei que pode soar arrogante à primeira vista, mas interpreto isso como uma maneira de evitar qualquer ansiedade ou frustração posterior. Há muitos escritores que querem o resultado, a consequência da sua escrita e associam isso a questões socioeconômicas. Embora não haja mal algum “escrever para vender”, creio que seja um problema quando isso te torna um escravo. Ao longo do tempo a necessidade de agradar o máximo de leitores possível por dinheiro, fama, mulheres e etc. acaba criando uma limitação contraproducente. Se você cria expectativas demais, cedo ou tarde a carga nas costas será tão grande que te presenteará com ansiedade, talvez até depressão. Curiosamente, muitos amigos autores são depressivos. É justamente isso que “matar o leitor” me evita. Agora não me entendam mal. Isso tem a ver com a parte processual, não implica xingar meus leitores em eventos ou coisa assim [risos].
Já quanto à procrastinação, ela não é muito comum comigo, acontece mais por motivações externas, problemas pessoais e coisas do tipo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como as edições são constantes, me concentro na revisão apenas no final. Se necessário, mais de uma vez. Já nessa parte de edição, alguns amigos próximos leem o texto e depois marcamos uma sabatina para debater pontos importantes, colher sugestões, referências novas, etc. Isso é muito importante porque, como já disse, à medida que o tempo passa o autor tende e reduzir sua visão “macro” da obra, o que pode facilitar a criação de vícios e cacoetes indesejados. A leitura de outras pessoas ajuda a evitar isso.
Apesar de a maior parte dos meus leitores beta serem também escritores, busco vez ou outra leitores não ligados à literatura, enfermeiro, contador, pois isso me proporciona também opiniões mais frescas, não tão atreladas a aspectos formais do nosso ofício.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Noventa e nove por cento do que escrevo, seja rascunho ou não, é feito no computador. Passo muito tempo debruçado nele por várias razões, então acabo unindo o útil ao agradável.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como dito antes, colher referências é essencial para a criatividade. Minhas ideias são fruto dessa busca por referências distintas. Talvez algumas fiquem mais evidentes aos leitores (Faulkner, Virginia Woolf, por exemplo), mas me inspiro muito em autores diversos, China Mieville, Thomas Pynchon, Rubem Fonseca, Machado de Assis, Cortázar. Também gosto de leituras técnicas, filosofia, Barthes, Adorno; cultura japonesa, animes, diretores de cinema como Takashi Miike, Sion Sono; também teoria musical, ilustrações da Loish ou games como os da Squarenix. Quanto mais heterogêneo melhor.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que diria o que falei aqui sobre não criar tanta expectativa. O Autor iniciante tende a ser ansioso por natureza, então convém não alimentar ainda mais isso. Não há necessidade de correr para publicar, por exemplo. Ter tempo para editar e esquadrinhar sua obra é muito importante, e a pressa tende a te prejudicar – e num mundo de cobranças tão grandes, isso pode potencializar repercussões negativas que só aumentarão suas frustrações. Até que não aconteceu de forma tão grave comigo (publiquei meu primeiro em 2011, escrevendo-o desde 2007, mas queria ter publicado mais para frente) por contar com conselhos de pessoas que pensavam assim, mas vejo muitos preocupados com essa pressa. Por outro lado, entendo que o ato de publicar é bem mais complexo que isso, que sentimos imensa necessidade de publicar porque é algo socialmente interpretado como um “diploma de escritor”. É importante, mas não precisa vir às pressas, tampouco obedecendo às convenções tradicionais. É possível publicação digital, artesanal; decidir e estudar a melhor forma de publicar leva um tempo. Acho bom considerar essa questão.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho intenção de fazer um livro de contos sobre racismo. Sou um autor negro, escrevo sobre muita coisa, mas ainda não tematizei diretamente o assunto e, visto a quantidade de acontecimentos importantes e abobrinhas faladas em nossos dias, cabe dar uma contribuição que seja interessante. Quanto à segunda pergunta não sei responder, talvez meus próximos livros [risos].