Wander B. é artista da palavra, da música e do gesto.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meus horários sempre foram extremamente confusos — a insônia me acompanha desde a infância e assim seguimos, eu e ela, madrugadas adentro, nesse momento histórico tão turbulento, nesse quando em que os dias e as horas parecem fazer ainda menos sentido do que antes. Mas de toda forma, há um começo de dia, mesmo quando se dorme muito pouco ou quase nada, mas por aqui não há uma rotina pré-determinada: se eu tenho trabalhos marcados que envolvem outras pessoas e isso é pela manhã, assim será. E pontualmente. Vou acordar sem fome, tomar alguma coisa e ir ao encontro do que me espera. Se o dia é de dedicação às minhas atividades criativas mais individuais, aí eu me dou a liberdade de não pensar em relógio e me organizar de acordo com as demandas do meu corpo, respeitar isso ao máximo. Evidente que nem sempre isso é possível, uma vez que me envolvo em muitos projetos coletivos. Mas eu me sinto muito bem quando eu posso abandonar as horas e criar o meu instante particular pra fora da lógica do cartão de ponto. Acredito que, ao dizer tudo isso, preciso dizer outra coisa: apesar da ausência de regras fixas, há rigor com aquilo que faço. E aqui me remeto ao que Denise Stoklos nomeia como disciplina arregral: é rigor, é vontade fazer até o fim, é ficar o dia inteiro em cima de uma frase se for necessário, mas sem uma regra prévia, ou seja, um desejo intenso de liberdade trabalhando em parceria com a criatividade.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho muito interessante a ideia de se preparar para a escrita: quando falamos de atividades artísticas como atuar, cantar e dançar, naturalmente pensamos em rituais e atividades preparatórias que passam pelo aquecimento, pela concentração, passam inclusive por rituais muito pessoais em que inclusive a fé de cada artista conta. Mas como seria o aquecimento para a escrita? Como seria a concentração para a escrita? Haveria uma oração ou um grito dionisíaco para sentar ali com as palavras? Bom, pensando em escrita performativa, que é algo que me atrai muito, imagino que muitas portas podem fazer parte desse ritual antes de escrever: como eu escrevo depois de passar uma hora dançando?, como eu escrevo depois de fazer uma longa deriva em completo silêncio? São dispositivos possíveis e interessantes, mas outra vez aqui eu digo: não há um específico, cada trabalho me pede para criar um ritual diferente, um dispositivo outro. A minha dramaturgia mais recente, O inferno é um espelho da borda laranja (2020), foi escrita durante a madrugada: um grito, um urro que veio da rua com muita potência, um grito humano de dor indescritível me fez parar tudo e sentar para escrever, ou seja, nesse caso foi uma contingência, um elemento externo, fora do meu controle, que me mobilizou a perseguir o texto — e aí eu fui até o fim do primeiro tratamento, o fim da primeira versão do texto completo. Talvez a partir deste caso eu tenha uma característica importante do meu modo de trabalhar para compartilhar: eu gosto de chegar na primeira versão de um texto sem dar espaços de tempo. Se for possível, eu viro uma madrugada e sigo o dia seguinte pelo tempo que for necessário para ter essa primeira versão do início ao fim. Muitas vezes trabalhando em processos coletivos, isso não acontece, uma vez que a dramaturgia vai nascendo na sala de ensaio, no jogo de todas as pessoas, mas quando eu escrevo para mim, um conto ou uma dramaturgia, eu prefiro chegar até o fim de uma vez para depois re-trabalhar isso infinitas vezes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Pelo exercício da escrita e pelo prazer que sinto em escrever, o melhor dos mundos é quando, sim, eu consigo escrever todos os dias; mesmo que seja um texto curto, um aforismo, um micro-conto, uma micro-crônica… Esse jogo diário me estimula e me faz muito bem. Mas existem fases da vida repletas de vazio. Aquele dia em que você olha para uma pedra e, tenebrosamente, vê mesmo só uma pedra. Ainda assim, quando me encontro nesses momentos, crio jogos para que brote alguma palavrinha. Quando eu falo de criar jogos, falo de jogos mesmo, jogos que eu invento: por exemplo, abrir o Facebook e escrever uma narrativa a partir da primeira foto que eu ver na timeline. Eu faço esse tipo de exercício. Muitas vezes faço de maneira compartilhada, expondo o processo para as pessoas. Esse foi o caso do projeto “Uma história conta outra”, em que eu e Elenice Zerneri, que é também atriz e dramaturga, escrevemos cem textos ao longo de cem dias, já durante o isolamento. Esse processo, que agora é o livro O amanhã foi um dia sem precedentes (2021), lançado pela Mocho Edições, foi um processo de criação compartilhado com o público: nós escrevíamos e publicávamos os textos diariamente em vídeos em um perfil do Instagram. Toda a obra se deu assim. Eu escrevia e mandava para Elenice atuar, Elenice escrevia e me mandava para que eu fizesse o mesmo. Nesse revezamento fizemos os cem textos totalmente expostos, vulneráveis uma vez que não tínhamos o tempo para a reelaboração (nem dos textos e tampouco das atuações!). Em contrapartida, o que recebíamos era a devolutiva quase que instantânea de quem acompanhou o processo todo. A escrita sempre me pareceu a mais solitária das artes, eu tento romper com isso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O mais difícil para mim é começar o texto. O mais difícil para mim é a primeira palavra, a primeira frase: uma vez que eu consigo atravessar esse mistério que envolve a primeira frase, eu sigo com tudo. E como disse, tento ir até o fim da primeira versão do texto. Mas a primeira frase é realmente um grande enigma. Muitas vezes eu me sinto povoado de ideias, mas que não encontraram o seu disparador. Dias atrás relendo um conto do Guimarães dei de cara com a frase “Sua casa ficava para trás da serra do mim” — veja bem, eu estou falando de Guimarães Rosa! De uma frase que abre um conto do Guimarães Rosa. Acredito que quando se encontra uma frase como essa, se encontra um mundo inteiro junto com ela. É sobre isso que estou falando. É sobre esse tipo de frase que guarda em si uma história inteira. Eu fico muito feliz quando uma frase quente me visita — mesmo que ela não seja uma frase digna do Guimarães.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procrastinação e medo de não corresponder às expectativas são fantasmas que ainda não me visitaram. Travas, sim. Como já disse, muitas vezes parece que a minha alma saiu pra jantar fora e não me levou junto. E aí é lidar com isso. E aí é criar dispositivos, jogos, brincadeiras, motivações lúdicas para a escrita: colocar uma música no repeat e deixar aquilo te envolver até que surja uma frase, uma palavrinha. Às vezes não basta esperar que uma ideia nos visite, às vezes precisamos convidar as ideias, chamá-las, dizer de alguma forma “venham que eu estou aqui disposto e disponível”. No que diz respeito aos projetos longos, os meus são todos longos: todos os meus projetos estão em constante movimento, em constante transformação, então eles têm a duração de uma vida. Mas acredito que aqui podemos falar de processos que possuem uma data para serem entregues: eu entro em uma sala com um grupo de teatro e temos apenas um tema, ou um proto-tema, mas a peça precisa acontecer em um prazo de alguns meses. E aí, como faz? Em casos como esse o que acontece basicamente são duas coisas: ou você encontra um caminho prazeroso, de boas trocas, um ambiente legal para trabalhar, ou você vai levar esses meses de trabalho como se estivesse trabalhando em alguma coisa que você detesta. Eu prefiro batalhar pelo espaço prazeroso. O espaço prazeroso pode se alongar mais do que o previsto e tudo bem. O espaço prazeroso pode ter um tempo encurtado por uma contingência, se transformar em um tempo menor do que aquele que você julgava ser o ideal, mas se o ambiente estiver prazeroso, tudo acontece. Uma experiência é algo que transcende o tempo: por isso eu busco experiências coletivas interessantes, antes de textos interessantes quando o assunto é escrever para teatro.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eles não ficam prontos. E eu inevitavelmente dei uma gargalhada aqui. Neste ano eu completo vinte anos de carreira, e apesar de só agora eu ter publicado meu primeiro livro, a escrita sempre esteve no centro das minhas criações. E não fica pronto. Eu acabo de escrever um novo verso para uma canção que eu compus em 2006 e gravei em 2007. Não é a primeira vez que isso acontece e eu lido com isso com muita naturalidade. Um novo verso para uma música que já foi gravada? Uma música que as pessoas já conhecem? Sim! Por que não? O mesmo com uma dramaturgia. Em cartaz com O inferno é um espelho da borda laranja desde outubro do ano passado, eu sigo encontrando palavras. E um conto? Um conto que foi publicado em livro. Será que ele pode ser alterado e publicado em outro livro no futuro? A minha resposta é sim. Sou um escritor performer, eu não enxergo as obras como finalizadas, elas estão em processo junto comigo, em constante revisão. E, sim, esse processo é compartilhado. Algumas vezes apenas com amigas e amigos mais próximos, muitas outras vezes é processo compartilhado com o público — me interessa muito isso, aqui talvez outra característica forte do meu trabalho: fazer mostrando.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Adoro escrever à mão. Se for para escolher, escolho papel e caneta. Mas e quando a gente está no trânsito? Já escrevi trabalhos no celular, viajando, cruzando o Brasil de ônibus. Em uma situação assim o celular é mais confortável do que o papel e a caneta que sofrem com a trepidação do ônibus. Então é isso: a situação pede a resolução. Se estou em casa, tranquilo, posso me dar ao luxo do papel. Se estou no movimento da rua, melhor o celular. Se estou na casa de alguém, pode ser o computador. Se estou em uma sala de ensaio, o rascunho pode ser oral, gravar uma ideia… Ainda pensando em sala de ensaio, muitas vezes eu escrevi falando ali na orelha das atrizes e dos atores, jogando junto, no improviso: isso era o rascunho do texto que viria a posteriori.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acredito que ao longo da entrevista falei muito dos meus hábitos criativos, são sobretudo dispositivos que eu invento para escrever. No mais, acredito que um bom exercício para qualquer artista é se manter aberto ao estranhamento das coisas mais triviais. A verdade é que nada é trivial: se você olhar para um ovo, um simples ovo de galinha ali em cima da sua mesa, você pode encontrar o espanto de uma vida — aquele conto de Clarice diz muito sobre isso que estou tentando articular aqui: existe espanto em todas as coisas, nós podemos cultivar esse espanto, nos abrirmos para esse espanto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acredito que a mudança mais radical se deu no momento em que eu parei de esperar os momentos de inspiração. É evidente que um momento de inspiração é um deleite — um grande viva ao momento de inspiração em que tudo parece um sopro divino. Mas houve um momento em que eu senti que poderia criar independente desses momentos, ou melhor, que eu poderia eu mesmo inventar momentos propícios à inspiração. Essa foi a grande virada no meu modo de escrever: antes eu esperava a ideia me visitar, hoje eu ainda recebo as ideias que surgem do nada, mas quando elas não surgem do nada, eu dou um jeito de chamá-las pra um chá, um café, uma cerveja, cada ideia tem seu gosto. E o que eu diria a mim mesmo se pudesse voltar à escrita dos primeiros textos? Acredito que eu diria para seguir fazendo, acredito que o que mantém um artista vivo é seguir fazendo: que bom que eu segui fazendo e estou aqui depois de vinte anos dizendo isso.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Pergunta boa. Pergunta boa é aquela que eu ouço com a voz do saudoso Abujamra. Parei pra pensar. Estou ainda pensando. O que eu gostaria de fazer é um romance. Sigo pensando. Eu gostaria de escrever também o roteiro para um longa-metragem. Acredito que é isso. Mais isso. Um sonho é um roteiro de longa-metragem. Vou para a segunda parte da pergunta, que é mais difícil, sobre o livro que ainda não existe e eu gostaria de ler. Sigo pensando. É difícil. Mas eu não caio nessa de que todos os livros já foram escritos, que tudo já foi dito — porque acredito que há sempre um novo ponto de vista para darmos, um ponto de vista que é muito particular, que é de cada corpo, que é único. Sigo pensando. Quase desisto. Penso que talvez o livro que não existe e eu gostaria de ler nasceria agora se eu continuasse aqui escrevendo por horas e horas e horas…