Walter Guandalini Junior é professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu não costumava ter uma rotina matinal, mas desde o nascimento do meu primeiro filho, em 2014, fui forçado a desenvolvê-la. Ela está muito mais ligada às responsabilidades familiares que às responsabilidades profissionais e acadêmicas, que só começam mesmo depois de arrumar as crianças, deixá-las na escola e, eventualmente, comer algo no caminho até o escritório.
Chegando ao escritório, a primeira coisa que faço é checar e responder os e-mails recebidos. Faço como no vestibular, e deixo os “mais difíceis” para o final. Limpa a caixa de e-mails, passo ao escaninho de documentos físicos, para verificar o trabalho do dia – hoje, principalmente pareceres. Tenho o hábito de priorizar as tarefas da advocacia, que geralmente têm prazos mais urgentes e apertados, e deixar para o final do dia o trabalho acadêmico. Com os prazos do dia cumpridos, e relativamente livre das pressões da advocacia, posso realizar com mais calma as atividades acadêmicas, que tendem a exigir mais concentração e reflexão.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Esse é outro aspecto da rotina modificado pelo nascimento dos filhos. Eu sempre trabalhei melhor à noite e de madrugada: com a casa em silêncio e longe das distrações do dia conseguia me concentrar melhor na pesquisa e na escrita. Trabalhava até o horário em que a mente estivesse funcionando bem. Durante a redação da dissertação de mestrado, em 2005, como eu ainda não exercia a advocacia, tinha o hábito de virar a noite escrevendo, das 22h da noite até as 5h, 6h da manhã. Mesmo depois disso eu preferia escrever à noite, quando todos já estivessem dormindo – embora não mais até tão tarde.
Mas desde 2014 já não faço mais isso, por dois motivos: primeiro, porque sei que serei obrigado a acordar cedo no dia seguinte, mesmo contra a minha vontade. Mas principalmente porque optei por dedicar o tempo que estou em casa integralmente à família – e também por essa razão deixei de escrever aos finais de semana, como costumava fazer.
Tomada a resolução de dedicar o tempo livre à família, não me resta alternativa a não ser escrever “em horário comercial”. Sempre no escritório, pela manhã ou à tarde, conforme os compromissos e possibilidades do dia. E é também disso que dependem os “rituais de preparação”: antes de tudo, concluir os trabalhos mais urgentes, para conseguir a tranquilidade necessária à reflexão; esforço-me sempre para manter a mesa de trabalho organizada, livre de papéis desnecessários ou atividades que não poderão ser concluídas naquele momento; não começo a escrever se não puder contar com ao menos algumas horas de trabalho ininterruptas (nesse caso prefiro me dedicar a uma atividade que exija menos concentração e possa ser interrompida sem prejuízo, como a leitura, pesquisa de fontes ou tarefas acadêmicas burocráticas); apesar de geralmente conseguir me concentrar mesmo com barulho, já tive que fechar a porta para não ser incomodado.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias. Na minha experiência a escrita é uma atividade de ciclos: muito tempo de preparação dedicado à pesquisa, leitura e reflexão, com calma e tranquilidade, e pouco tempo intensamente dedicado à redação.
É claro que “pouco” e “muito” no parágrafo acima são expressões relativas, e proporcionais ao tamanho do texto que pretendo redigir. Durante a redação da tese de doutorado, por exemplo, foram três anos de preparação para um ano de redação, o que significa, na prática, que eu escrevia todos os dias durante esse ano. O que quero dizer é que a atividade de escrita não é um aspecto rotineiro da minha vida, nem trabalho com metas diárias de redação. A escrita, para mim, é sempre uma exceção; é como um mergulho: após tomar um bom fôlego na superfície, submerjo e me dedico o máximo possível àquela atividade, para só emergir novamente quando estiver concluída.
Assim, a meta diária, quando existe, não é concluir um determinado número de páginas, mas concluir o argumento – às vezes isso significa um capítulo, às vezes significa um parágrafo. Sinto que levo sempre algum tempo até conseguir atingir o grau ótimo de concentração, e quando o atinjo me esforço para concluir o argumento sem interrupções. É sempre difícil retomar um raciocínio interrompido no dia seguinte.
Na prática levo pouco tempo para redigir um texto – de alguns dias a algumas semanas de trabalho intenso. Concluído, passo alguns meses preparando com calma o próximo trabalho.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A relação entre pesquisa e escrita é diferente conforme o tipo de texto a ser produzido, e a minha experiência é bastante variada nesse sentido.
Às vezes o texto nasce da pesquisa. Leio sem objetivos concretos, coleto dados sem interesse específico, e aos poucos um artigo vai se delineando a partir da relação de todas aquelas informações. Nesses casos, após algum tempo de preparação o texto já está pronto na cabeça – só falta escrever.
Outras vezes é a pesquisa que nasce do texto. Uma questão a ser resolvida dá origem a uma hipótese de pesquisa, que por sua vez organiza uma estrutura de raciocínio para a resposta, e a pesquisa se desenvolve como busca de informações para preencher o esqueleto proposto pela hipótese de pesquisa.
Na pesquisa empírica a movimentação da pesquisa para a escrita é mais simples. Afinal, nesses casos, embora a etapa de pesquisa seja mais trabalhosa, a redação se limita a transpor para o texto os resultados empíricos já obtidos.
Na pesquisa teórica ou dogmática o trabalho de coleta de dados é substituído pela pesquisa bibliográfica, menos cansativa; mas nesses casos sinto que o texto depende bem mais de uma ideia inovadora ou de um insight original, para ser um pouco mais que mero resumo das opiniões de outras pessoas.
Em suma, quanto mais dedicamos transpiração, menos dependemos da inspiração. Quando a pesquisa preliminar é bem feita, a escrita tende a fluir com mais facilidade. E especialmente na História do Direito o movimento da pesquisa para a escrita é mais natural: quando escrevemos sobre a realidade empírica não ficamos tão sujeitos a bloqueios criativos – problemas mais graves para quem escreve ficção, como literatura ou dogmática jurídica (com o perdão da piada).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho importante desenvolver uma disciplina rigorosa de trabalho, especialmente para quem está no início da sua vida acadêmica. Um professor ou pesquisador profissional pode se entregar à preguiça momentânea sem tanto risco de prejuízo, pois ele geralmente já incluiu o hábito da escrita em sua rotina, e terá mais facilidade de recuperar o tempo perdido quando se dedicar ao trabalho no futuro. Um iniciante, no entanto, além de ainda estar desenvolvendo as habilidades necessárias à escrita acadêmica, é geralmente obrigado a cumprir prazos peremptórios para a entrega de trabalhos cujo atraso pode prejudicar gravemente a sua carreira.
Como orientador de trabalhos acadêmicos percebo dois grandes fatores de procrastinação que atrapalham o trabalho de pesquisadores iniciantes: a ansiedade de “não saber por onde começar” e a angústia de “não corresponder às expectativas”.
Quanto a não saber por onde começar, eu costumo dar dois conselhos aos estudantes:
O primeiro é começar pela pesquisa. Não adianta querer sentar para escrever sobre um determinado assunto sem um conhecimento sólido sobre o assunto acerca do qual se pretende escrever. O risco maior não é só o de escrever bobagens, mas o de perder muito tempo rodeando em torno do tema principal e acabar escrevendo muito sobre aspectos já superados, ou até irrelevantes para o tema da pesquisa. Uma leitura atenta da bibliografia, das fontes primárias, dos referenciais teóricos, de outras pesquisas sobre o tema, ajuda não só a construir o repositório de informações necessário para a redação, mas também a fornecer, até inconscientemente, sugestões de estilo, de estrutura, de temas e questões relevantes.
O segundo é não se importar com a ordem lógica da redação. O que precisa seguir uma ordem lógica é o texto final, para que o leitor possa compreendê-lo com facilidade; a redação não precisa. A redação deve seguir os caminhos do pensamento, e eles são confusos e dispersos. Não há necessidade de começar a redação pelo capítulo 1 e terminar o trabalho com a conclusão. O mais eficiente é escrever sobre o que se está lendo, sobre o que interessa, sobre o que passou pela cabeça naquele instante, até para não perder o raciocínio quando o trabalho for interrompido. É só numa fase posterior do trabalho que o pesquisador deve se preocupar com a coerência e sistematicidade do texto. Nem os grandes mestres da literatura escrevem as suas obras na forma final em que são publicadas. Primeiro vem a ideia em estado bruto; somente depois de muito trabalho é que o raciocínio passa a fazer sentido e ser estruturado de forma coerente e sistemática.
Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, também tem dois aspectos:
Ele pode ser resultado de uma expectativa muito alta. A carreira acadêmica é longa, e ninguém espera que você apresente a obra da sua vida no trabalho de conclusão de curso. É sempre importante, então, modular as expectativas à realidade do que se espera do trabalho que será apresentado. De modo geral, o que se espera de um texto acadêmico profissional é um bom conhecimento do estado da arte no assunto, uma redação clara e compreensível, e uma ideia ou tese original. Um bom texto científico não precisa ser uma pérola literária; um bom texto científico não precisa revolucionar o seu campo de estudos. Basta que apresente, com clareza e conhecimento da produção preexistente, uma boa ideia. Se o seu texto contribuir em alguma medida para o trabalho de outro pesquisador, já é relevante o suficiente para que seja publicado. A pesquisa científica é trabalho de formiguinhas.
Por outro lado, muitas vezes o medo de não corresponder às expectativas é resultado de uma real impossibilidade de corresponder ao que se espera daquele trabalho específico. O nervosismo pode ser resultado apenas de insegurança, mas também pode ser resultado de despreparo. Para esses casos, não há outra sugestão a não ser trabalhar mais. Ler mais, estudar mais, pesquisar mais, consultar novas fontes e se esforçar para deixar o texto mais claro.
Aliás, essa é uma vantagem do texto científico sobre o texto literário. Ninguém precisa de criatividade literária ou sensibilidade poética para escrever um bom texto científico. Basta trabalhar bastante e registrar com clareza os resultados da pesquisa realizada.
Por fim, quanto à ansiedade de trabalhar com projetos longos, costumo definir metas intermediárias – por exemplo, o compromisso de concluir um capítulo por ano. Assim evito a ansiedade de concluir tudo de uma vez só, ao mesmo tempo em que mantenho um ritmo de trabalho constante, sem o qual o projeto nunca seria concluído.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sou mais ansioso do que deveria com textos prontos. Assim que concluo a redação, faço uma ou duas leituras e já encaminho à publicação. Esse mau hábito faz com que às vezes eu me arrependa de ideias publicadas, ou perceba erros quando eles já não podem mais ser corrigidos.
Sinto que o ideal seria deixar o texto “descansar” por um ou dois meses antes de fazer a revisão. O tempo permite que nos distanciemos dele o suficiente para o revisarmos com um olhar crítico, e perceber defeitos que no calor da redação (ou logo após dela) somos incapazes de observar. Mas também não sei até que ponto essa precaução é compatível com as metas de produtividade do ambiente acadêmico contemporâneo.
Não tenho o hábito de mostrar meus textos para outras pessoas antes de os publicar. É sempre raro que os meus colegas tenham a disponibilidade de tempo para os avaliar, e com certa frequência o assunto é específico demais para que o possam fazer com propriedade fora de suas áreas de especialidade. Quando isso acontece, e eles têm tanto a disponibilidade de tempo para participar da pesquisa quanto o conhecimento necessário para a avaliar, acabo preferindo produzir em coautoria, incorporando integralmente as suas contribuições à pesquisa e ao resultado final do trabalho.
Quando possível, procuro apresentar as hipóteses da pesquisa em desenvolvimento em eventos acadêmicos, antes da redação do texto. Embora isso não seja exatamente uma revisão, é uma forma de submeter ao debate científico ao menos as ideias principais da pesquisa antes da redação – e geralmente contribui muito para a lapidação do texto final. Mas nem sempre os temas que pesquisamos são compatíveis com os eventos acadêmicos de que participamos, e nesses casos sou obrigado a confiar mesmo no peer-review dos periódicos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre escrevo diretamente no computador. É mais rápido, menos cansativo, mais fácil de organizar as informações e de editar o texto.
Eventualmente abro dois arquivos: um para o rascunho das ideias principais, e outro para o texto final. Dependendo da importância e do tamanho da pesquisa, crio arquivos de fichamento das referências mais importantes, que utilizo bastante na edição do texto final.
Mas como regra geral, e especialmente em textos mais curtos, como artigos para periódicos científicos, não preparo um rascunho prévio. Começo a redação organizando a estrutura geral dos capítulos e uma síntese dos principais argumentos de cada um deles; preencho com citações dos autores que serão empregados como referência; e completo redigindo um texto que reúna coerentemente todas essas partes.
Também uso muito a internet. Para dúvidas de redação (estilo, ortografia, sinônimos, expressões em língua estrangeira, etc.), para pesquisa bibliográfica, para acesso a fontes primárias, para pesquisa de legislação, etc. Na pesquisa em História do Direito ela é especialmente importante, tanto pelos projetos de digitalização de fontes realizados por todo o mundo, quanto pela facilidade de acesso a obras em domínio público. O Internet Archive (https://archive.org/) é uma preciosidade nesse sentido, embora exija algum conhecimento da língua original em que as obras foram redigidas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Sou um curioso quanto ao processo criativo de artistas, de modo geral, e gosto de ler o que se escreve sobre o assunto. É praticamente consensual, entre escritores, músicos, pintores, que a criatividade nasce do trabalho. Em dois sentidos: o trabalho de familiarização com as obras de arte já produzidas e existentes, e o trabalho de produção da sua própria obra de arte. Nenhuma obra de arte jamais nasceu da mente de um artista sem contato com a realidade ou com seus materiais de produção.
Se isso é verdadeiro para a arte, que é uma expressão da subjetividade do artista, é duplamente verdadeiro para a ciência, que se apresenta como descrição da realidade empírica. A ideia de pesquisa jurídica só pode surgir do contato com a realidade do mundo jurídico, e a pesquisa só pode se desenvolver com o trabalho concreto do pesquisador sobre a sua ideia. Por isso, o importante é trabalhar, e manter-se atento ao seu trabalho. Do próprio trabalho nascerão questões não respondidas que a sua pesquisa poderá contribuir para resolver.
Na minha experiência as melhores ideias costumam vir de três fontes: da prática da advocacia, do magistério e da leitura descompromissada.
Às vezes a questão de pesquisa nasce de um problema prático a ser resolvido na advocacia. A peculiaridade do problema, a falta de reflexão doutrinária sobre o assunto ou um entendimento jurisprudencial divergente do que considero adequado podem ser gatilhos motivadores de uma nova ideia de pesquisa.
Um inesgotável poço de criatividade é a sala de aula. Excelentes ideias de pesquisa nascem da preparação da aula, de dúvidas de alunos, de erros cometidos em avaliações, da análise crítica de temas do currículo, de exemplos construídos de improviso, etc. Talvez a obrigação de apresentar novos conteúdos com clareza a alunos iniciantes nos ajude a perceber com mais facilidade os pontos obscuros (e, consequentemente, as questões que devem ser pesquisadas) do nosso campo de saber.
Mas há, sim, um “truque” não diretamente relacionado ao trabalho que gosto de praticar para manter a criatividade nas pesquisas: o hábito de manter contato com produções artísticas e científicas não diretamente relacionadas ao meu campo de pesquisa específico. É importante ter um conhecimento amplo do seu próprio campo de pesquisa, o que exige tempo e dedicação; mas é importante também reservar um pouco desse tempo para olhar para fora da sua especialidade e observar o que as outras pessoas estão produzindo em outros campos de saber. Dedicar alguma atenção a assuntos diversos como a literatura, a física, as artes plásticas, a medicina, a culinária, a fotografia, a astronomia, contribui para manter a sua mente suficientemente aberta a novas conexões criativas entre o seu campo de pesquisa e o resto do mundo. É uma forma de escapar da repetição de temas e perspectivas sempre tão comum na pesquisa paradigmática, e abrir pontes e caminhos para pesquisas transdisciplinares e inovadoras. Mas para isso é importante manter a dispersão do olhar, entrando em contato com esses novos campos sem nenhum objetivo imediato, de modo a permitir que eles se manifestem em toda a sua “estranheza”. A experiência de estranhamento não será suficiente, por si só, para gerar imediatamente novas ideias de pesquisa; mas o acúmulo dessas novas conexões, no futuro, poderá vir a ser importante para a percepção de uma questão de pesquisa que ninguém mais conseguiu enxergar, ou a proposição de uma hipótese não imaginada por ninguém.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Acho que com o passar do tempo a escrita vai se tornando mais natural, mais automática. Nos primeiros anos de faculdade é sempre muito difícil produzir um texto acadêmico; mas com a prática e a repetição tendemos a incorporar até meio inconscientemente a lógica da estrutura, do desenvolvimento dos argumentos, do raciocínio, da conclusão. A concentração chega mais rápido, o texto sai com mais facilidade, o processo de redação é mais ágil e o resultado final tem mais qualidade.
É claro que com o passar dos anos também acumulamos conhecimento e erudição, que facilitam muito o processo de escrita. O acúmulo de referências teóricas, estruturas de argumentação, teses interpretativas, aos poucos passa a funcionar como um mapa, que ajuda a localizar a nossa própria pesquisa no interior do campo em que ela se situa, e a enriquece como por inércia.
Quanto à minha tese de doutoramento, como qualquer pesquisador, também não fiquei completamente satisfeito com o resultado final da pesquisa. Apesar disso, acredito que ela cumpriu adequadamente os seus objetivos científicos e a sua função acadêmica, e acabou sendo o melhor trabalho que eu poderia ter escrito com as condições de tempo e conhecimento de que eu dispunha ao redigi-la.
Uma dúvida que me angustiou muito durante a redação da tese, e que na verdade até hoje ainda não tenho completamente resolvida, é a questão do equilíbrio adequado entre o tempo dedicado à pesquisa bibliográfica e à análise das fontes na pesquisa histórico-jurídica. Durante a redação da tese eu tinha a sensação de que antes de analisar as fontes primárias eu precisava ter um conhecimento completo sobre a bibliografia produzida acerca do meu tema de pesquisa, e a verdade é que quatro anos não foram suficientes para a construção dessa visão panorâmica. O resultado dessa dificuldade de distribuição do tempo foi que a análise das fontes, que é justamente a parte mais importante da pesquisa em História do Direito, acabou sendo deixada para a etapa final da redação e realizada com mais pressa do que eu gostaria de ter feito.
Há alguns meses tenho participado de um grupo de pesquisa coordenado por um grande e experiente historiador do direito, e me surpreendi com o fato de ele permitir que os estudantes, ainda iniciantes na pesquisa jus-historiográfica, se dediquem diretamente à análise das fontes mesmo sem familiarização prévia com a bibliografia sobre o tema. Ainda não sei qual sistema funciona melhor. O fato é que é impossível ler tudo sobre tudo antes de dar início à pesquisa.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho alguns projetos de longo prazo na prateleira. Um deles já até foi iniciado: é uma Introdução Crítica ao Direito Romano, que nasceu de uma necessidade pedagógica. Tornei-me professor de direito romano em 2013, mas, por várias razões teóricas e metodológicas que não cabe discutir neste espaço, divirjo da abordagem padrão para o estudo da disciplina – mais dogmática, funcionando quase como uma “introdução ao estudo do direito civil”. Ocorre que é justamente essa a orientação predominante na maioria absoluta dos manuais didáticos da disciplina, o que dificulta muito o acompanhamento das aulas que eu ministro pelos estudantes.
Por outro lado, os bons livros que privilegiam uma abordagem histórica do direito romano, além de não terem sido traduzidos para a língua portuguesa (o que dificulta o seu acesso para os estudantes), não explicitam os fundamentos teóricos e metodológicos que orientam a sua investigação.
Por essas razões tenho trabalhado na redação desse livro que pretende funcionar, por assim dizer, como uma “teoria do direito romano”, apresentando os pressupostos teóricos e metodológicos da reflexão crítica que tem sido desenvolvida nas últimas décadas sobre a disciplina a partir da perspectiva da história do direito. É um projeto de longo prazo, pensado para ser redigido nos próximos dez anos, até para permitir que as questões teóricas nele levantadas sejam amadurecidas pelo tempo de reflexão e pelos problemas reais enfrentados em salas de aula, mas tenho publicado alguns de seus futuros capítulos como artigos em periódicos científicos, conforme vou concluindo a redação de sua versão preliminar. É também uma forma de submeter a proposta teórica ao debate da comunidade científica antes da sua consolidação na forma de um livro.
Outro projeto de longo prazo que eu gostaria de realizar, mas esse ainda não comecei, é uma continuação à minha História do Direito Administrativo Brasileiro. A tese de doutoramento, que foi publicada como livro no ano passado, se concentra somente sobre o período de formação da ciência brasileira do direito administrativo, entre os anos de 1821 e 1895. Eu gostaria muito de dar continuidade a essa História, talvez escrevendo os seus volumes 2 (1895-1930), 3 (1930-1964), 4 (1964-1988) e 5 (1988-2017). Mas esse é um desafio, se um dia eu tomar coragem de o enfrentar, para a vida toda.
Por fim, gostaria muito de ler um livro que fosse bom, sistemático e completo sobre a História do Pensamento Jurídico Brasileiro. Os livros atualmente disponíveis sobre o tema não têm todas essas qualidades, e a maioria das obras realmente boas de história do direito brasileiro são trabalhos monográficos, sem a pretensão de sistematicidade e completude que se poderia esperar de um bom Curso ou Manual. A publicação de uma obra de qualidade com essas características poderá ser considerada, talvez, o sinal de que a disciplina finalmente alcançou a sua maturidade acadêmica no Brasil. Acredito que o trabalho coletivo dos pesquisadores do Instituto Brasileiro de História do Direito seria capaz de produzir uma obra com todas essas qualidades no médio prazo.