Walner Danziger é escritor e dramaturgo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia tem que começar cedo. Sempre foi assim. Sempre fui boêmio, mas sempre acordei cedo. Estraga meu dia acordar tarde. Não é culpa cristã de homem trabalhador. Só chateação, empobrecimento do espírito. Passo o resto do dia torto, deslocado. Até quando chego de manhã da rua, durmo pouco pra acordar logo e depois no meio da tarde voltar a dormir sem problemas, mas acordar depois das onze da manhã pra mim é estrago, então começo meu dia por volta das nove horas. Rotina matinal é abrir a porta pros meus cachorros Noel Rosa e Araci de Almeida irem pro quintal, por comida pra eles e fazer um café solúvel extra forte, pouco açúcar. Não consigo pensar em nada antes desse primeiro café. Ligo o computador e aqueço os neurônios: passeio pelas redes, espio notícias, confiro e-mails e mensagens sem responder, tomo pé do mundo e parto pras minhas tarefas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor pela manhã e à tarde entre 14 e 19 horas. Raramente escrevo depois desse horário. Uso as noites pra ensaiar meus espetáculos, namorar, ver filmes, séries, entrevistas no computador ou futebol e outras bobagens na TV. Nunca escrevo nas madrugadas. As madrugadas do meu bairro são frenéticas e barulhentas. Ritual pra escrever é me desconectar das coisas que me tiram ou possam vir a tirar meu foco: celular, internet. Tentar entrar em outra frequência. Uso protetor auricular quando escrevo. Ajuda a ficar fechado em uma dimensão mais particular. Também não levanto pra ir ao banheiro ou beber água até terminar o que me propus escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias. Escrevo o tempo todo. E não devo ser o único. O olhar as sensações estão sempre voltadas a tudo que me cerca, tudo o que acontece, os ruídos da cidade e das pessoas, imagens. Tudo isso fica o tempo todo conectado com a inspiração, com o exercício da escrita, transformar experiências em palavras. Agora, escrever no sentido de deslizar a esferográfica no papel ou digitar palavras na tela branca do computador: sim, faço todos os dias. Jeito e quantidade variam conforme o que estiver escrevendo, se aquilo tem um prazo, se é uma crônica que será publicada e eu escrevo inteira no ato, se é poesia que estou passando do caderno pro computador, a reta final de uma novela ou romance, uma peça de teatro que estou angustiado pra terminar e escrevo com intensidade e volume, o esboço de algo novo, a lapidação de algo que já está quase no prelo, a elaboração mais compassada de uma sinopse pra algo que nem sei o que poderá vir a ser.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tudo parte de uma ideia, uma inspiração que me pegue de jeito, de assalto. Quando acontece, não tomo nota, não raciocino. Guardo aquela energia, aquela vibração e deixo de lado. Se ela desaparecer, provavelmente eu nem irei perceber, mas se no dia, semanas e até meses seguintes ela continuar em mim, bolinando, é porque aí tem coisa, tem literatura. Sempre digo que é o texto que vai pedindo pra ser escrito, vai pedindo pra existir. A partir daí aquela primeira inspiração vai se desenvolvendo, dou corda pra esses pensamentos, vou linkando com outros. Imagens, nomes, lugares, personagens e situações e então, finalmente sento e começo a compor uma sinopse. Um guia apenas. Uma sinopse simples. Sem rebuscar demais pra não ficar engaiolado, cristalizado, prisioneiro dela. Tenho amigos e conheço outros escritores que não precisam e nem gostam de saber onde irão chegar, não precisam de um final. Eu preciso. Preciso saber onde minha história começa, o meio dela e o final mesmo que no processo de desenvolvimento da escrita tudo mude, que o final da história seja outro ou o que no meu caso sempre acontece: eu mesmo mude os acontecimentos de lugar dentro da história. Paralelo a isso tem o que eu não gosto de chamar de pesquisa, mas de erotizar, levar minha inspiração às últimas consequências, sair pra rua atrás desses personagens e cenários que quero pra minha história. Observar o outro, fala, gestos, modo de vestir, peculiaridades. Sobretudo peculiaridades. Ouvir músicas que tenham a energia do que quero escrever, recorrer à memória, estar atento a tudo que possa pular pra dentro da minha história, cores, sabores, odores. Ouço as pessoas conversando na rua, nos bares e vou nessa até sentir aquele desespero e começar a despejar tudo no papel. Sem freio. A história já está em mim então dou a largada com a primeira frase que me venha à cabeça, seja ela qual for e me atiro nesse precipício, nesse jorro, nesse vômito. Nessa fase jamais volto pra ver o que escrevi. Só caminho em frente, leio no máximo as três últimas linhas do trabalho do dia anterior pra me situar e sigo em frente. Outra coisa é que nessa fase tento não ficar um dia sequer sem escrever. Nem que seja um diálogo, uma linha que seja. Pra não perder o ritmo. E vou nessa loucura até chegar ao final, até colocar essa história pra fora. Feito isso, ainda sem ler, engaveto. Boto o texto pra dormir. Esqueço dele. Abandono. Vou beber, namorar, viver outras energias. Quando pego pra ler aí começa o tratamento, a lapidação. Hora em que tudo que é bom e horrível salta aos olhos e de fato você toma consciência do que escreveu e começa o trabalho de reescrever cenas, cortar gorduras, brincar com a ordem dos fatos, substituir palavras, nomes, desenvolver o que está rasteiro. Sempre que termino o primeiro tratamento, dou essa primeira versão pra alguém ler. Geralmente quem estiver namorando comigo ou minhas amigas de confiança, algumas delas até ex-namoradas. Pra escritores amigos passo só a versão final. Dela até a impressão do livro vou nesse processo. Imprimo e carrego comigo pra todo canto, levo o livro pra passear. Trabalho nele em bibliotecas e bares. Vou mexendo, lapidando, pondo o texto pra dormir quantas vezes forem necessárias.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não existem travas e muito menos ansiedade por não corresponder a expectativas ou pelo projeto ser longo. No meu caso tudo isso ficou na juventude, no emaranhado dos primeiros textos. As travas não veem hoje em dia porque aposto muito ou tudo na lapidação, no tratamento dos textos. Então seja uma ideia primária ou argumento pouco elaborado, meu começo é sempre involuntário. Vou escrevendo sem olhar pra trás. Depois. Com muita calma e trabalho duro vou acertando. Quanto às expectativas, não penso na freguesia quando estou escrevendo. Escrever é mexer fundo, muito fundo no que é íntimo e delicado. É cutucar seus infernos, seu lixo, suas impotências, mexer no que dói. O que escrevo geralmente tem ritmo, humor, mas pra chegar a tudo isso é preciso ir fundo e pra ir fundo não dá pra ficar pensando muito em expectativas durante a viagem. Seja em relação ao outro ou a mim mesmo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sobre os textos mais longos, meu romance Ainda Cometo um Samba teve dez versões até a final. A novela curta Não Acorde o Cão Durante o Pesadelo, sete. Na dramaturgia são os ensaios que revisam ou modificam o texto por vários motivos: o texto escrito pode ser bom, mas não caber ou ficar estranho na boca do ator. Pode ficar bom pra ser lido, mas não para ser ouvido. Podem aparecer durante o processo novas cenas, diálogos. Por isso dizem que não é bom publicar peças de teatro inéditas. O texto costuma se transformar muito durante os ensaios. Isso também é revisão. Sempre outras pessoas leem meus textos. Ex-mulheres, namoradas, amigas. Meus textos novos quem estiver muito próximo de mim no momento. No caso da dramaturgia tem o elenco e às vezes organizo leituras dramáticas pra grupos de amigos ou abertas ao público.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação é cordial, mas desajeitada. Não domino a máquina muito menos sei aproveitá-la. Hoje escrevo mais no computador, direto, mas ainda escrevo muito a mão. Quando comecei a escrever não era todo mundo que tinha um computador. Eu mesmo não tinha. Escrevia a mão e depois datilografava. Revisar os textos nessa época era um suplício. Minhas primeiras peças, contos e poesias foram escritos a mão nas longas viagens de metrô e trens da CPTM. Meu caderno está sempre na mochila e de vez em quando ponho ele pra funcionar. Agora mesmo em dezembro terminei uma peça nova (ainda sem título) que comecei no caderno, numa viagem do Jabaquara ao Anhangabaú. A ideia estava em mim e os diálogos pularam pro papel. De modo geral essa relação papel X computador, pra mim é um vai e vem: Às vezes o trabalho está todo no computador, mas você se ilumina pra um novo trecho, cena, imagem e descarrega no papel e depois joga de novo na máquina. Isso também acontece porque depois de pronto, seja romance, peça de teatro ou apanhado de contos ou crônicas, costumo imprimir o texto e escrever nas costas em branco das páginas, cortar, grifar e depois passar pro computador. Faço isso com todos meus livros. Preciso do papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Tudo é inspiração pra quem cria. Tudo. Quem trabalha com criação está sempre conectado com tudo que está ao seu redor. O tempo todo. Isso às vezes é um inferno pra mim. O não desligar. Posso estar num churrasco de um quintal qualquer bebendo minha cerveja e dar de cara com um personagem desconhecido e muito rico e do nada mergulhar no universo dele e adeus churrasco. Fora isso são livros, quadrinhos, críticas literárias, cinema, teatro, Escola de Samba, botecos, futebol, ouvir pessoas conversando, a vista da minha janela aqui na Vila Campestre, a cidade de São Paulo bárbara, selvagem, suas ruas, seu jeito, seus ruídos, suas histórias me inspiram demais, também.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sou um escritor autodidata, intuitivo e consequência disso é que apanhei pra cacete. Eu amava, como amo demais tudo isso, mas não sabia direito como fazer e ao mesmo tempo, fazia. Tudo torto, esquisito e achava péssimo, piegas, ruim, mesmo. Por outro lado tinha a coragem de fazer. Tinha o salto no precipício de quem não foi modelado por nenhuma escola que me orientou em como fazer. Era ruim. Mas tinha muita verdade. Minha peça Vênus de Aluguel é um exemplo. Escrevi muito cedo e nunca estava satisfeito com ela, mas escrevi e já botei logo pra montar. Mexi muito, muito mesmo nela, enlouqueci as atrizes que, a todo momento, tinham que descartar o que tinham decorado ou estudar novas falas. Muita gente gosta bastante dessa peça, mas pelo que ela representa de sofrimento pra mim eu a evito, subestimo até. Então o que mudou é que com a experiência agora conheço os caminhos. Os sofrimentos são outros, mas esse de como fazer, como trabalhar, esse eu não tenho mais. Aprendi lendo muito, experimentando, observando o outro, trocando ideias sobre processos e agora sei fazer direitinho sem enlouquecer. O que eu diria a mim mesmo? – Garoto, você ainda não sabe, mas vai se ferrar pra cacete nessa vida aí que escolheu. Não vai adiantar nada te pedir calma. Então continue enchendo a cara, enlouquecendo suas namoradas e amigos. Continue insatisfeito e furioso. Está tudo certo. Nada pra mudar. No futuro você vai confirmar que se ferrou mesmo e muito, mas fez o que tinha que fazer e bem feito, meu filho.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tem um tema que anda me rodando que é escrever um livro sobre a ala de tamborins da Escola de Samba Vai-Vai, da qual faço parte há mais de 20 anos. Contar como é que funciona uma ala dentro de uma bateria de Escola de Samba. A história dos caras, as peculiaridades e o nosso cotidiano, o nosso trabalho desde o primeiro ensaio até o desfile na avenida. Também tenho uma ideia muito abstrata sobre um livro/diário não linear, fragmentado. Com ilustrações, desenhos, fotografias e textos curtos. Livro que não existe? Já existe uma biografia impressa da Elke Maravilha? Não sei, mas se não existe, esse é o livro que gostaria de ler.