Waleska Barbosa é escritora e jornalista, autora de “Que o nosso olhar não se acostume às ausências” (2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu acordo bem cedo. Meus pais costumavam acordar os filhos ainda na madrugada, dizendo: “Passarinho, que não deve nada a ninguém, já está cantando”. Era aquela herança do povo trabalhador do Nordeste, da lida da roça, que começa a labuta antes do sol raiar. Então, esse virou um hábito da vida. A partir de 4h30 é possível que eu esteja acordada. Nesse horário, gosto de olhar para o céu. Fico na janela. Faço um café. Fumo (mas isso é segredo por que sempre me traz culpa). É um horário de comunhão com a vida. De refletir. Agradecer. Rezar. É também quando surgem ideias. Sinto-me muito plena nesse amanhecer. Sei que já já, a rotina me pega e boa parte dos planos fica naquela janela, enquanto sou engolida pelas demandas. Tenho uma filha pequena e divido a convivência com ela com o pai. Quando ela está comigo cuido para encaminhá-la à escola. Acordar, fazer café da manhã, preparar lanche, conferir itens da mochila. Quando não, leio, vejo um filme. Não vejo televisão. Mas ouço rádio e escuto música demais. Também costumo falar ao telefone com uma irmã que mora na Europa e, por causa do fuso, é um bom horário para encontrá-la disponível. Também costumo falar diariamente, cedinho, com uma amiga paraibana. Fazemos uma espécie de terapia de mão dupla e cobramos um ‘relatoro’ (como chamamos relatório no nordestinês) diário, uma da outra. Assim, compartilhamos anseios, medos, vitórias, damos força uma à outra e vamos crescendo juntas, embora fisicamente separadas. Depois, tomo café da manhã, uma fatia de mamão com aveia, cuscuz ou tapioca. Adoro as padarias de pães artesanais ou franceses. É uma tentação sempre a ser vencida. Mas muitas vezes me deixo vencer e ganho o dia com esse pequeno prazer matinal. Depois disso, vou fazendo as coisas de casa ou não vou fazendo. Sou, infelizmente, procrastinadora. E muitas vezes passo tempo demais pensando e tempo de menos agindo. Minha irmã costuma perguntar se todo mundo é como nós – meio atormentadas – cheias de questionamentos e vontades de autoconhecimento. E pouco práticas. Eu acredito (e torço) que não.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Ainda não consegui estabelecer um horário ou rotina em que a escrita entre e saia sem me deixar em dívida com ela. Faço muitas anotações em pedaços de papel, na última folha de caderninhos, de ideias para crônicas. Muitas vezes, essas ideias não saem dali. Noutras, servem de repositório de inspiração. Os textos vêm com muita força, às vezes. Saem de uma vez só. Tomam conta de mim. Emocionam-me. Choro muito. Um exemplo é o texto ‘Hoje é dia da consciência, negra’. Eu passei um bom tempo sem relê-lo, enquanto foi sendo compartilhado. E eu, recebendo retornos. Ele me cansou. Embora tenha sido escrito em pouco tempo, sem que eu parasse nem para pensar. Jorrou de mim. Mas era um cansaço que não sei bem como explicar. Voltando a falar no ritual, gosto de ouvir música enquanto escrevo. De acender incenso. Quando a ideia já está ali, é tudo muito rápido. Entre vinte e quarenta minutos eu tenho um texto de 2,7 mil caracteres pronto. Por vezes, é preciso forçar. Forjar. Ler cada palavra já escrita para ver se puxa outra. Contar quanto do tamanho necessário já consegui. Não gosto desses dias. Mas eles existem. E são enfrentados. É quando brinco com o conceito da crônica, de abarcar qualquer tema. É quando lembro que todos os cronistas já relataram, em crônicas, o padecimento da falta de inspiração e fizeram disso a matéria do seu texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Passei muitos anos sem escrever – não compreendia muito bem a força que a escrita tinha em mim. Eu ficava cheia de adrenalina. Empolgada. Feliz. Depois, vinha a calmaria. E um “e daí”? Em um processo contínuo e longo de autoconhecimento entendi que essa tal força era o meu propósito de vida. O que me instigava. O que fazia o olho brilhar. O sangue vibrar. Parei de ter medo da sensação e procurei lidar com ela com paciência e pouca ansiedade. Aí, comecei o blogcom o objetivo de tirar o atraso. De cutucar a ferida. De ir no meu limite. De me conhecer. De conhecer meu estilo. De aceitar o erro. De me expor. Esse processo acabou por me transformar, me ensinar muito. Agora, tenho um livro com textos do blog, sou oficialmente a escritora que sempre sonhei em ser. Apresentei a obra na Feira do Livro de Frankfurt, em outubro de 2019, quando tive duas oportunidades de palestra no International Stage, como participante do espaço brasileiro no evento, coordenado pela Câmara Brasileira de Livros. Comecei a ministrar oficinas e a participar de eventos literários. É um novo mundo, o meu mundo, se abrindo. Aí, lembro da célebre frase das conhecidas como ‘As ceguinhas de Campina Grande’, retratadas em filme do diretor Roberto Berliner, “a pessoa é para o que nasce”.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu sou jornalista. Para um texto jornalístico há o processo de apuração, entrevistas, a busca pela informação mais importante, pela gradação dos dados – não acho que seja um processo fácil. Mas estamos falando de literatura. Tenho uma curta, mas intensa experiência em redação. Na maior parte da minha vida profissional, atuei como assessora de comunicação, o que ainda dá outras peculiaridades a um texto. Também sinto dificuldade de desvincular o estilo de um jornalismo literário. Isso nem sempre é aceito. Muitas vezes tive que reescrever, editar, transformar, anular, meus textos. Mas quando encontro, como aconteceu algumas vezes, editores ou chefes que aceitam o meu estilo e veem nele um talento e potencial que podem fazer parte do meu trabalho, é um sonho bom e leve. No caso das crônicas ou prosas poéticas, muitas vezes pesquiso o conteúdo e vou intercalando informação com emoção, de forma que a primeira fique diluída. Noutras, é puro sentimento o que faço. Parte apenas das minhas próprias referências. Quanto estou bem inspirada, o texto vem de uma vez e não leva muito tempo para ficar pronto. As anotações e os caderninhos são ferramentas que me acompanham. Ainda não consigo fazer uso pleno de aplicativos e ferramentas web para estes fins. Já tentei. Mas ainda sou do lápis e do papel. Embora prefira escrever direto no computador. Quando escrevo um texto completo à mão, dificilmente faço a transposição para o computador. Ele vira outra coisa. Então, como já disse em uma aula de literatura, o que é do caderninho fica no caderninho.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Aqui, vou utilizar um trecho de um texto meu “Por que não escrevo”, para responder. “Percebi uma forte autocrítica – do tipo que leva à procrastinação. Percebi o perfeccionismo que paralisa. Percebi que a minha adrenalina era tão grande que, escrever um texto me exauria a ponto de evitar aquela sensação por tempo indeterminado.
Percebi que, depois de pronto, olhava para o texto e dizia: – E agora? Você não ganha vida própria? Vai ficar parado aí, me olhando? E um texto que não ganhava asas para se afastar para sempre, isso eu não podia suportar.
Passei anos sem produzir nada.
Foi pior. A cobrança não era menor do que nos tempos em que havia me dedicado a escrever crônicas e matérias jornalísticas ao estilo literário. Ia me mastigando por dentro. Criando uma maçaroca de procrastinação, paralisia, adrenalina, exaustão.
Eu pensava que se tanta gente boa escrevia, eu não precisava ser mais uma. Eu, criada no meio de dez irmãos, todos muito íntimos com a escrita, não teria motivos para tentar algo em que eles mesmos se bastavam.
Eu não queria emitir julgamentos. E nem sentenças. Dar pitacos peremptórios sobre algo, a supostos leitores. Dar uma de sabichona. Eu, após o advento da Internet, não aguentaria, se fosse o caso, ser apedrejada em praça pública por causa de pensamentos ou palavras. Meus.
Eis razões pelas quais não escrevia.
Felizmente, fui vencida. Afunilei o labirinto. Aliás, ele foi reduzido a rua sem saída. Pista de mão única. Próxima parada. Eu escrevo por que mesmo sem escrever, o faço. Minha mente trabalha com parágrafos. Minhas imagens são escritas.
Evitar as palavras não me dava garantia de que elas me largariam.
Então, batuco as letras no teclado, pintando sua invisibilidade. Tiro minhas histórias do pensamento e coloco todas no papel. Algumas viram texto. Outras, anotações à mão que vão morar para sempre, inacabadas, em caderninhos vários.
Foram embora todas as cobranças. Expectativas. Ansiedades. Escrever é, hoje, um gesto sereno e prazeroso. Um encontro delicado e carinhoso comigo.
Escrever é sopro de vida diário. Massagem cardíaca. Manobra de ressuscitação. Me ensina. Me (a)preEnde. E eu preciso estar viva.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como publico na Internet, toda vez que releio um texto, altero alguma coisa. Ou de forma ou de estilo. Há erro de concordância, etc. Por vezes, como já disse, o texto é de uma intensidade tal, que não consigo revisitá-lo logo. Então, se ele tem algum problema, esse problema vai perdurar até que eu tenha coragem de voltar lá. Tenho também leitores assíduos que me alertam quando há algo gritante. Elegi também dois censores (dois amigos) para me dar um aval – textos que me surpreendem pela ousadia desconhecida ou por conter alguma palavra que precisaria de classificação indicativa, eu mando pra eles –e pergunto: Publico? Nunca ouvi um não. Eles já sabem que o não seria a senha para que eu, tomada de revolta, fizesse o contrário. Mas meio que embarcam comigo na quebra de paradigmas. Na coragem para falar certas coisas ou palavras. Mas ainda estou em exercício inicial, considero, de me expor. Agora, com o livro, como foi edição independente, não pude arcar com os custos de uma revisão profissional. Toda hora que releio algum texto, acho incorreções. Fora aquelas que não são enxergadas por mim, mas que seriam por um especialista. Resolvi me perdoar de tudo. O que também é importante para a sobrevivência. Citando o samba de Vinicius de Oliveira, um querido músico de Brasília, “se todo mundo pode, eu posso também”. Ele fala de amor. Eu falo de erro gramatical ou falha de revisão (rsrsrs).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é pouca e parca. Eu escrevo no computador. E no word mesmo. Sei que existem ferramentas para escritores, mas por enquanto a que uso me serve. Como meus textos são curtos, facilita. Talvez para um projeto mais robusto como um romance, eu possa me utilizar melhor das tecnologias disponíveis. No entanto, até agora tenho me declarado inapta para o gênero romance. Como tenho me determinado também a não me dar limites ou limitações, como abordo no texto “Cansei de ser definitiva”, quem sabe eu não comece a tentar um romance, jogando por terra todas as verdades ou certezas que me afastem de um e, um belo dia, acorde romancista?
Também tenho a manha de escolher caminhos mais difíceis. As pessoas não esperam, e isso inclui editores, que você publique, como ficcionista, algo que não sejam romances ou contos. Meu estilo ou gênero ou texto muitas vezes fica em um não-lugar, que eu respeito por ser o único que eu sei ocupar até aqui ou que me arvorei a fazê-lo. Mas estou caminhando. E o caminhar surpreende. Espero ser surpreendida por mim nesse sentido. Quanto aos rascunhos, gosto de anotar ideias, insights, pedaços de música ou de conversa, em cadernetas, guardanapos. Qualquer coisa disponível. Ando com muitos papeis na bolsa. Livros, caderninhos, revistas. Costumo dizer que me sinto nua sem um livro na bolsa. Eles me acompanham em lugares inusitados como nas “baladas”.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Escrevo muitas histórias que me contam. Sou uma (re)contadora de histórias. Também preciso muito do meu olhar. Da minha capacidade de observação. Muitas vezes isso me basta. Como o texto que escrevi, “Talvez por identificação” ao ver um pássaro empoleirado no sinal de trânsito. Mas a arte – todos os seus canais são grandes fontes de inspiração. Só a arte salva. Também faço uso de uma conversa. Uma quebra na rotina. Um mimo que nos ofertamos – como encontrar pessoas queridas; tomar um café; comer um pão maravilhoso; ler jornal; ler literatura. Ir ao samba. Tudo pode virar texto. Ou pode abrir as torneiras para que um saia de dentro de nós. Quando tudo isso falha, eu leio desavisadamente as crônicas de Rubem Braga. Não lhes imponho que me inspirem. Mas quando termino a leitura, estou iluminada por dentro. Achando que tudo é possível. Até escrever uma crônica que há pouco estava impedida de vir ao mundo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O meu processo de escrita não sei mudou. Mas eu mudei a partir da escrita. Eu entendo melhor sobre tempo. Eu aprendi a lidar melhor com a ansiedade (isso está descrito no texto “Todos os dias sofro de ansiedades”). Se eu pudesse voltar, eu teria escrito desde sempre sem as pausas que fiz. Mas também entendo as pausas como necessárias. Gosto mais de mim agora, em uma segunda idade (tenho 43 anos) do que antes. Ou pelo menos sou capaz de refletir sobre o que me compõe agora melhor do que não fiz na adolescência ou juventude. Também como querer reflexões da juventude? A gente vive como se não houvesse amanhã. Mas o amanhã chega. A gente reflete sobre o ontem e faz dele uma cama macia para deitar e colher bons sonhos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que ainda não comecei não chegou a mim ou ao meu conhecimento. Quando chegar, eu começo. Brincadeira. Na verdade, eu sou um tanto lenta. Não consigo pensar muitas coisas ao mesmo tempo ou executá-las. Até hoje reverbera uma frase de um amigo nos tempos em que cheguei em Brasília, vindo recém-formada de Campina Grande/PB, onde nasci. “Você não é agressiva. Você não é agressiva”. Assim, ele dizia que eu “não me criava”, como se diz no Nordeste, por aqui. Mas quase vinte anos se passaram e eu estou aqui. Não fiz meu primeiro milhão e nem sonho mais com ele. Sequer posso afirmar que me criei. Sou apenas essa que tens diante dos olhos. Afunilo a vida. As coisas. Pessoas. Gostares. Para que caibam nas minhas possibilidades de estar no mundo sem me fazer muito sofrer, nessa não agressividade. Muitas vezes, sou derrubada por tudo isso. Noutras, consigo enxergar que valeu a pena. Que isso me basta. Que eu me perdoo e me aceito. Assim, desse jeito que mais não dá conta das coisas, do que o contrário. Quanto ao livro que gostaria de ler… Será que o meu romance? Acho que passaria muito tempo sem ter coragem de encarar suas páginas. Mas sobrevive-se assim. Duvidando dos próprios livros. E da própria escrita. Vivo esse processo hoje com “Que o nosso olhar não se acostume às ausências”.