Waldemar Ferreira Netto é professor Titular no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu não tenho exatamente uma organização por intervalos temporais. Geralmente minha organização se vincula à necessidade de terminar uma proposta de trabalho iniciada. Como sempre há vários projetos ocorrendo simultaneamente, uns ganham e outros perdem prioridade conforme os prazos. Não ter projetos, seja por ter finalizado todos a um só tempo, seja por estar sem indagações a respeito de temas específicos não é uma sensação que me causa conforto. A satisfação está em encontrar as respostas e não em não ter perguntas para fazer. Daí, prefiro ter vários projetos para que sempre algum esteja por terminar.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Como projetos eclodem de projetos, o seu planejamento vem em conjunto com a ideia geradora. Ao ler um texto ou ao escrever sobre ele muitas dúvidas aparecem. Nem precisa ser o melhor autor, nem o melhor texto, porque as dúvidas vêm do próprio discurso. O planejamento inicial, quase espontâneo, para a busca da resposta nem sempre dá os resultados esperados, então eu refaço tudo, muitas vezes, até encontrar o caminho que me leva a alguma resposta. É preciso ser paciente. A dificuldade não é escrever a primeira frase, porque ela vai ser reescrita; a dificuldade que eu sinto está em manter a coerência entre a primeira e a última frase. Daí o texto ter de ser relido, na íntegra, repetidamente. É sempre bom quando eu deixo um intervalo entre essas leituras.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Eu não consigo seguir rotinas muito rigorosas. Sempre me proponho a fazer isso, mas não dá certo. Normalmente escolho os momentos de silêncio, de isolamento para fazer isso. Preciso, entretanto, ter por perto todo o material que vai ser usado: referências, dicionários, planilhas… Muitas vezes escrevo à mão e depois passo para o computador. Porque ambientes silenciosos e isolados nem sempre permitem o acesso às máquinas mas lidam muito bem com livros e cadernos. Eu uso muito isso tudo.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Eu sempre evito deixar que trabalhos de acumulem, sobretudo os que têm prazo de entrega. O ideal, nesse caso, é estabelecer prioridades de acordo com os prazos. Mas, quando isso não dá certo, por me sentir “travado” ou por não ter mais informações disponíveis para continuar, prefiro deixar o texto incompleto durante um tempo, até que novidades apareçam. Se fico pensando incessantemente sobre o mesmo tema, a circularidade do pensamento é inevitável. As novidades vêm de lugares incertos. Vêm de leituras, de reflexões que se fazem sobre o mundo. Se não estão nos lugares óbvios e comuns, devem estar em lugares que não são óbvios nem comuns.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Acredito que o meu livro Introdução a fonologia da língua portuguesa tenha sido o mais trabalhoso. Tive de buscar muitos exemplos, porque estabeleci que todos tinham de ter sido usados e devidamente documentados. Foi muita documentação consultada, com horas de transcrição e de audição de fitas cassete, com digitalização de áudios. Tudo, às vezes, para uns dois ou três exemplos. Mas deu certo. Como foi um trabalho mais mecânico, apesar de intenso, não foi o que envolveu grandes discussões teóricas. Recentemente escrevi Tradição Oral, narrativa e sociedade. Nesse livro, tentei extrair o senso comum das narrativas não estilizadas. Eu acho que consegui e gosto muito de reler o texto que escrevi. Mas, a cada releitura, sinto que ainda falta muito para falar.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Os temas são definidos externamente. Ideias decorrem de ideias. Trata-se de um diálogo constante que se faz com múltiplo interlocutores, na sua grande maioria, desconhecidos. A vantagem da leitura é que podemos dialogar com Aristóteles, Hume, Geertz, Mbembe, Hampaté Bâ, dentre outros tantos, e ainda com infinitos autores anônimos cujas narrativas foram transcritas por outros. Todos eles fizeram reflexões sobre o mundo que merecem ser observadas, interpretadas, testadas, discutidas… Falar sobre o que todos falam é muito difícil, porque acaba repetitivo e desapontador.
Eu sou professor, escrevo sempre para alunos. Mesmo quando não escrevo para os alunos, penso neles. São sempre os alvos. Procuro imaginar o que sabem e o que não sabem. Nem sempre acerto, mas é uma direção. Quando o texto se volta para a comunidade científica, tento fugir desse alvo. Mas nunca me saio muito bem. A comunidade científica é muito mais atualizada e, principalmente, voltada para temas específicos e circulares. Apesar de ser uma redação mais fácil, porque mais técnica, tem um leitor muito mais crítico e muito mais vaidoso. Contar ao interlocutor algo que ele já conhece gera desconforto, porque parece que se pressupõe que o interlocutor seja ingênuo quanto ao assunto. Isso fere vaidades e provoca descontentamento quanto ao próprio texto. Por isso é difícil escrever textos científicos.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Geralmente mostro meus rascunhos aos que me estão mais próximos, ora afetivamente, ora profissionalmente, conforme o texto. Nem sempre os primeiros leitores esmiúçam o texto como eu gostaria que fizessem. Ou se prendem a particularidades gramaticais, ou a algum ponto temático específico. Dificilmente os primeiros leitores discutem o raciocínio, o plano geral da obra ou as conclusões, por exemplo. Se o texto é muito ruim, eles são benevolentes, se é muito bom, o benevolente sou eu. Pareceristas anônimos, em geral, quando são bem educados, são bons leitores.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Não lembro desse momento específico. Mas lembro de ter recebido algum elogio aqui e ali. Nada que fosse muito estimulante, mas sempre agradável de se ouvir. Profissionalmente, já na faculdade, ao contrário, o desestímulo foi imenso e isso foi muito negativo. O pressuposto recorrente no ambiente acadêmico das letras de que só os grandes escritores sabem escrever é demasiado castrador. Superar isso não é algo que se faça com destreza naquele ambiente. Como em qualquer atividade é preciso receber elogios e reprimendas.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Não sei se desenvolvi um estilo próprio. Acho que isso só ocorre com a constância na escrita e com a diversidade de leituras. Sempre evitei ter um autor preferido, bem como pensar que um é melhor do que o outro. Algumas vezes tento usar um recurso estilístico que esse ou aquele autor usou, tento retomar algumas fórmulas discursivas, reproduzir uma sintaxe ou algum vocabulário. Quando a origem fica muito evidente, apago. Mas é uma experiência que às vezes dá certo. Quanto mais a gente faz, mas aprende a fazer.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
São muitos os livros que tenho recomendado. Acho que alguns, dentre muitos, são imprescindíveis:
Semiótica e filosofia, de Charles Sanders Peirce; Da divisão do trabalho social, de Emile Durkheim; Folklore in the Old Testament: Studies in Comparative Religion, Legend, and Law (El folklore en el Antiguo Testamento), de James George Frazer; Mind, self and society (Espíritu, persona y sociedad), de George H. Mead; A interpretação das culturas, de Clifford Geertz; Atos de Significação e Realidade mental, mundos possíveis, ambos de Jerome Bruner; A economia das trocas linguísticas, de Pierre Bourdieu; Contingência, ironia e solidariedade, de Richard Rorty.