Waldemar Falcão é músico, compositor, astrólogo e escritor, autor de Encontros com médiuns notáveis.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Geralmente as minhas manhãs são dedicadas a mim mesmo: primeiro pratico cinco minutos de respiração iogue (“pranayama”) e vinte minutos de meditação assim que acordo; depois me alimento e leio as principais notícias do dia nas versões digitais de O Globo e da Folha de S. Paulo. Isto feito, procuro manter a correspondência eletrônica em dia, respondendo a e-mails, mensagens instantâneas etc. Dou também uma conferida em algumas redes sociais (basicamente Facebook e Instagram), e se for o caso, publico alguma foto ou texto nestes locais.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu gosto particularmente da noite, porque me dá a impressão de que o mundo está um pouco mais calmo, mas na verdade não tenho um horário específico para escrever. Tanto pode ser de manhã, quanto de tarde ou de noite. Considero que meu rendimento é igual em qualquer hora do dia, mas já escrevi e já traduzi com crianças brincando ao redor e cachorros latindo no meu ouvido… Quando me lembro dos relatos que afirmam que o grande Heitor Villa-Lobos compunha suas músicas na cozinha de casa, com toda a balbúrdia típica de uma cozinha, vejo que estou em boa companhia…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
As duas coisas. Não tenho uma meta diária, e talvez por isso mesmo às vezes escrevo um pouco todos os dias e às vezes escrevo de forma concentrada. Tudo depende dos prazos de entrega do material. Para os períodos de “maratona”, consegui um programa de computador que regula meu tempo em frente à máquina, me alertando a respeito de quanto tempo estive ali concentrado, e me propondo momentos de repouso, de exercícios de alongamento e até mesmo de levantar e sair da frente da tela.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tudo começa na cabeça: antes mesmo de começar a escrever, vou elaborando a estrutura do livro mentalmente. Na medida em que só escrevo obras de não-ficção, meu processo é meio caótico. O primeiro livro, Encontros com médiuns notáveis, é quase um relato autobiográfico que me exigiu muito da memória, pois tinha que relembrar os fatos vividos com os paranormais cujas histórias estão contadas lá. Se não me engano, foram nove meses entre o começo e o final do trabalho.
Já o segundo livro, O Deus de cada um, foi uma encomenda da Editora Agir na qual eu deveria contar as histórias de praticantes de nove ou dez diferentes tradições religiosas (no final, foram nove), cada um descrevendo seu trajeto espiritual. Comecei entrevistando cada um dos retratados, mas o livro não é de entrevistas. A partir destes relatos, fui construindo a história de cada um como um conto mesmo, com todas as nuances e reviravoltas vividas pelos protagonistas de cada capítulo.
O terceiro, Conversa sobre a fé e a ciência, já foi uma experiência mais de edição do que de escrita. Frei Betto, Marcelo Gleiser e eu ficamos “confinados” em um hotel no bairro de Santa Teresa no Rio, conversando dias a fio sobre os temas do título, sendo tudo gravado em áudio e depois transcrito por um digitador. Por causa disso, o livro tem uma “pegada” mais oral do que textual. É realmente a transcrição de uma conversa. Após receber o material bruto, dei uma primeira “penteada” (o termo é do Frei Betto) no texto, adaptando e eliminando elementos coloquiais do tipo “tá”, “né” “pô”, e o enviei para os dois participantes, que fizeram as eventuais correções que acharam necessárias, principalmente na parte de datas, personagens, eventos etc. Depois disso, o livro ainda passou por mais duas releituras minhas, sempre submetidas aos outros autores. Eu cheguei para o “confinamento” com uma pauta de temas a serem propostos aos dois, e a partir daí a conversa correu de forma espontânea e fluente. Como são também dois experientes autores, isto facilitou muito o meu trabalho de edição.
Neste momento estou empenhado em atender a outra encomenda recente, a História da Astrologia para quem tem pressa, que está programado para ser publicado no segundo semestre de 2018. Neste caso, a parte inicial foi feita em regime de “concentração”, no sentido futebolístico do termo: subi a serra petropolitana em direção ao bairro de Araras, onde meus irmãos e eu temos um pequeno sítio herdado de nossos avós e pais, e passei quatro dias sozinho e isolado, em regime intenso de escrita. Neste período consegui realizar praticamente 80% do trabalho. Em seguida, me afastei um pouco do texto (costumo fazer isso sempre) por alguns dias e agora retomo o trabalho depois de submeter o rascunho inicial aos editores e acatar algumas das ótimas sugestões que me deram para enriquecer o livro.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Depois que li a confissão de Luís Fernando Veríssimo afirmando que tem os mesmos problemas que nós, pobres mortais, fiquei mais tranquilo: ele também recorre aos jogos de paciência do computador e à procrastinação quando o bloqueio se manifesta. O medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos são coisas que nunca me atormentaram, felizmente. De qualquer forma, prefiro ter prazos de entrega – sempre um pouco mais alongados do que o combinado – porque assim me forço a ter alguma disciplina para trabalhar. Carrego em mim uma contradição astrológica: o lado virginiano (meu signo solar) pretende ser sempre metódico e organizado, mas o lado sagitariano (meu signo ascendente) não é exatamente um modelo de rotina e disciplina. E entre as duas tendências, vou me virando como posso. No final, sempre com uma pequena esticada nos prazos, tudo acaba sendo feito quase como foi programado…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Algumas vezes, mas sem um número fixo ou certo de revisões. Tudo depende do tipo de livro que está sendo feito. Aprendi nos estúdios de gravação, outra paixão da minha vida, que é preciso deixar um pequeno espaço para a imperfeição, a espontaneidade. É claro que isso não pressupõe imperfeições gramaticais ou semânticas, mas sim uma pitada de espontaneidade no escrever. Costumo mostrar meus trabalhos para alguns amigos que também escrevem, e gosto muito de ouvir opiniões deles, ao mesmo tempo em que adoro fazer este papel de “revisor” dos trabalhos destes amigos que também curtem esse compartilhamento. Como trabalhei uns bons anos como editor, estou habituado a me colocar dos dois lados do balcão, seja como autor ou como editor.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Acho que estou desaprendendo a escrever à mão… Desde que os computadores surgiram, passei a utilizá-los permanentemente. Sou um adepto e “heavy user” de tecnologia em tudo que seja possível. Creio que só nos tempos de juventude, quando gostava de escrever poesia, é que os textos eram escritos à mão. É claro que antes do surgimento dos processadores de texto, tudo era escrito à mão, e muito do que escrevi nestes tempos foi depois transcrito para arquivos eletrônicos, onde estão guardados até hoje.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Aí está um fato engraçado: sempre escrevi, desde pequeno. Meu pai era poeta amador, um exímio sonetista e redator, a quem sempre dedico um agradecimento nos meus livros, nomeando-o como meu “primeiro professor de língua portuguesa”. O peculiar nisto tudo é que nunca tive o sonho ou projeto de me tornar escritor. Trabalhei anos como editor, recebendo originais que me eram entregues como se fossem filhos queridos, mas nunca tinha me passado pela cabeça a ideia de publicar meus próprios textos, que em sua maioria eram artigos, resenhas literárias, poemas, ensaios. Foi um autor francês, o físico Patrick Drouot, um pesquisador que busca aproximar a ciência da espiritualidade e que era publicado por uma das editoras onde trabalhei, que me estimulou a colocar em livro as histórias dos “médiuns notáveis”. Ele me incentivou a contar em prosa as histórias que lhe contava oralmente e se ofereceu para fazer a apresentação do livro, caso eu chegasse a fazê-lo. A esta altura eu já tinha saído do mercado editorial como editor, e depois de uma experiência no mundo da internet (fui editor de religiões e espiritualidade do portal Globo.com), resolvi assumir o lado autor definitivamente. Propus o projeto dos médiuns à pessoa que me “fez” editor, minha querida prima Luciana Villas Boas, informando somente o título do livro e a ideia geral do que seria o conteúdo. No mesmo dia recebi de volta um e-mail que dizia: “pode começar a escrever. Já mandei confeccionar o seu contrato”. O escritor Waldemar Falcão nasceu, portanto, no ano de 2003, quando comecei a escrever Encontros com médiuns notáveis, que foi lançado em 2005 e continua a repercutir até os dias de hoje: já está na 6ª edição e já tem uma versão de formato de bolso e outra em ebook.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Minha experiência como editor durante seis anos (quatro anos à frente da Editora Nova Era, do Grupo Record e um ano à frente da Editora Elevação em São Paulo, além de mais um ano como editor da Globo.com) foi fundamental para que eu incorporasse este lado voltado para a qualidade da escrita no seu sentido mais técnico, mas o meu processo pessoal criativo não mudou muito ao longo dos anos. Como afirmei anteriormente, tudo depende de que tipo de projeto estou desenvolvendo no momento. Se eu pudesse voltar aos meus primeiros escritos, diria a mim mesmo: “continue!” Um bom texto começa na cabeça de alguém que sabe articular bem suas ideias, mas tem também um lado “braçal” que só se aperfeiçoa com a prática. No fim das contas, não deixa de ser uma atividade física, além de intelectual. É preciso exercitá-la, pois embora ninguém “desaprenda” a escrever, o exercício ajuda muito.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho dois projetos rodando em minha cabeça: o primeiro seria um segundo volume de Encontros com médiuns notáveis; os médiuns retratados no primeiro livro já faleceram todos, mas nos últimos anos conheci paranormais de uma geração mais jovem que me impressionaram profundamente, e fiquei particularmente feliz, porque pensava que jamais encontraria pessoas que me impactassem como as que tinha conhecido anteriormente.
O segundo é algo meio diferente e, talvez, ousado: tive que me submeter a uma cirurgia eletiva muito complexa no início deste ano de 2018, chamada “Tromboendarterectomia pulmonar”, que consiste na retirada de coágulos alojados nas artérias pulmonares em consequência de uma embolia sofrida em janeiro de 2009. Só o Incor (Instituto do Coração) em São Paulo realiza este procedimento em toda a América Latina; a cirurgia tem a duração de dez horas e meia, e ao longo dela, durante dois períodos de vinte minutos, o paciente fica tecnicamente morto, num procedimento conhecido como “PCT” (Parada Circulatória Total): o corpo é resfriado até atingir a temperatura de 14 graus centígrados e a circulação sanguínea é interrompida por vinte minutos para que o cirurgião possa retirar os coágulos das artérias. Embora não tenha tido a lembrança do que se passou enquanto estava “morto” – a famosa EQM (“Experiência de Quase Morte”) –, tudo que testemunhei e vivi ao longo de dezoito dias de internação se constituiu numa vivência humanística incomparável e inédita. Minha ideia é relatar todas as etapas de preparação, operação e convalescência. É interessante ressaltar que meu pós-operatório quebrou todos os padrões habituais deste tipo de procedimento, já que todos os prazos foram encurtados: não precisei passar pelos dois dias de sedação total com ventilação mecânica, não precisei passar por uma semana de UTI (foram só quatro dias e meio) e não precisei passar trinta dias internado depois da operação, já que fui “despachado” para casa passados dezoito dias da cirurgia. O título deste livro seria algo bem inusitado: “O dia em que morri duas vezes” … Vamos ver se alguém se interessa em publicá-lo.
Quanto aos livros que gostaria de ler, são tantos perfilados na minha mesa de cabeceira que não ouso pensar que existe um livro que ainda não foi escrito. Existem muitos que ainda não li e que talvez não consiga ler ao longo de apenas uma existência. Depois de ter conhecido o texto de gênios como Hermann Hesse, Fernando Pessoa, Antonio Callado, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, Albert Camus e tantos outros, seria pretensão minha imaginar que existe um livro que ainda não foi escrito. Só se forem os meus projetos futuros…