Wálber Araujo Carneiro é doutor em direito pela Unisinos e professor adjunto da Universidade Federal da Bahia.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho. Na verdade, a rotina matinal gira em torno das aulas. Ainda não consegui reduzi-las a ponto de cederem espaço para uma rotina de pesquisa e escrita. Nas poucas manhãs que não tenho aulas a ministrar, acabo envolvido em rotinas acadêmicas relacionadas à docência, como elaboração de quesitos, correção de provas, formulação de programas, etc.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Hoje em dia, não. Já tive quando estava exclusivamente dedicado às pesquisas de doutorado. Mas a demanda sazonal das tarefas acadêmicas acaba quebrando qualquer romantismo relativo à escrita. (risos) De qualquer forma, creio que produzo melhor quando tenho o dia todo ou, pelo menos, o turno da tarde reservado à escrita. Para que isso ocorra, as demais atividades precisam estar em dia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta diária. Nem conseguiria, pois não consigo sentar para escrever pouco, uma página ou duas. Demoro para pegar “no tranco”. Preciso reler parte do que escrevi, rever o meu esquema ou, a depender do tempo em que estive “fora do texto”, quase tudo que já havia escrito. Com o tempo, além de me preocupar mais com o planejamento, desenvolvi um mecanismo que facilita essa retomada: deixo um recado para mim mesmo em vermelho e caixa alta, diferenciando-o do texto. No “recadinho” digo para mim mesmo coisas como “retomar a partir daqui, estabelecendo a diferença entre ‘isso’ e ‘aquilo’”, coisas do gênero. Isso tem facilitado a retomada da escrita, mas ainda não permitiu uma rotina diária de escrita. E, sinceramente, não sei se isso seria uma boa. Já há tão pouco romantismo na escrita que essa rotina de “rapidinhas” tornaria a tarefa ainda mais mecânica.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ultimamente, tenho sido movido pelos prazos que os editores impõem. Na verdade, aqueles que integram programas de pós-graduação no Brasil têm sido intensamente cobrados por quantidade, e não apenas por qualidade. Esse problema daria uma outra entrevista, até mesmo para podermos separar o que há de positivo e de negativo nesse modelo produtivista. Mas o fato é que isso tem causado distorções que acabam atentando contra a qualidade da produção e, em alguns casos, em práticas questionáveis como a da falsa produção em parcerias. No meio dessa ciranda, o processo criativo fica “a reboque”. Mas ele existe, claro. A primeira questão é definir a temática, que muitas vezes vem previamente dirigida pelo editor de uma obra coletiva. No caso de revistas, é o contrário. Eu escolho o que escrever e, em seguida, avalio para onde encaminhar. Tirando os prazos exíguos, confesso que gosto do desafio de produzir algo em uma temática previamente definida. Pois terei de “atravessar” as conclusões sobre pesquisas atuais – que desenvolvo junto ao meu grupo na Pós-Graduação da UFBA – e a temática proposta pelo editor. Isso tem produzido abordagens que considero interessantes e sobre as quais dificilmente escreveria. Recentemente, convidado por amigos para escrever em uma obra que homenageou o Professor Adroaldo Leão, o principal responsável pelo meu ingresso na academia, fui levado a escrever sobre boa-fé objetiva. Sob livre demanda, jamais escreveria sobre esse tema. E, no entanto, adorei o resultado, embora o texto não sirva para a CAPES. (risos) Mas, voltando ao assunto, uma vez definido o tema – por mim ou pelo editor – eu passo a pensar a estrutura do texto. Como vou abordar o tema, quais as diferenças que irão me orientar, qual a amarração analítica e, principalmente, qual a minha tese para o texto. Um artigo ou capítulo de livro não é uma tese de doutorado, mas precisa ter uma tese, mesmo que seja aquela em torno da qual nossas pesquisas atuais giram. Escrever para não inovar não faz sentido. Só começo a escrever depois que possuo um sumário, um caminho e uma tese. A introdução e a conclusão “das conclusões” ficam para depois, lugares para os quais guardo uma estética mais libertária. Algum romantismo em meio a tantas notas de rodapé!
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho medo de travas da escrita. O que trava é a construção da tese. Ou, muitas vezes, a sustentação da tese diante do que já desenvolvi. Devo mudar? Abandonar a tese? Às vezes, é o caso. É isso que trava: saber o “que” dizer. O “como” dizer, acaba sendo secundário. Talvez o fato de eu só iniciar a escrita após definir um sumário ajude ou, pelo menos, produza a impressão de que a trava nunca está na escrita, mas sim na tese que está sendo desenvolvida. Mas na hora que trava, tem que levantar, andar pela casa, conversar sozinho, tomar um café com um colega para discutir o tema, olhar o WhatsApp. (risos) E, às vezes, se voltar para leituras mais verticais sobre um determinado tema até que a “parte” problemática faça sentido com o “todo”. Se não fizer, mudar o “todo” ou, até mesmo, abandonar o texto. Já tive casos em que abandonei. Já os projetos longos são mais complicados, pois todos aqueles em que me envolvi acabei defendendo coisas muito diferentes daquelas que projetei. Foi assim no mestrado, no doutorado e em dois outros pós-doutorados. Mas, embora isso pareça um desvio metodológico não facilmente justificável para um bolsista, projetos longos exigem essas revisões e um certo “desapego” quanto aos objetivos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende do prazo. Mas costumo mostrar a alguns amigos mais próximos ao tema. Na maioria das vezes, acabo não mostrando o trabalho todo, mas as partes em que defendo algo mais controverso. Quando termino o trabalho, envio o texto para que eles leiam em primeira mão, mas isso quase nunca acontece. (risos) Eu os reviso, pelo menos, duas vezes. A primeira é uma revisão mais “grosseira”, na qual corto muita coisa, acrescento outras. E que também serve de inspiração para redigir a introdução e a conclusão. Depois que o texto está completo, faço uma revisão mais “fina”. Mas tenho consciência de que o autor será sempre o seu pior revisor, razão pela qual envio o texto sempre que posso para uma revisão profissional.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre no computador. Tenho uma boa relação com a tecnologia. Às vezes gravo algumas coisas no celular para ouvir depois. Quando estou caminhando, por exemplo, penso muito sobre o que estou pesquisando, e às vezes gravo para não perder o insight. Mas também uso muito o papel para elaborar esquemas mentais, desenhos da estrutura do texto. Isso eu ainda não consegui trazer para o computador. Outra coisa que eu ainda não consegui melhorar é o modo de introduzir as referências. Sei que há editores melhores para isso. Acho que o próprio Word já permite o cruzamento de referência e bibliografia, mas eu ainda faço ambas na “mão grande”. Para não atrapalhar a fluência da escrita, normalmente incluo a nota e coloco um “recado” do tipo: “citar fulano”. Depois volto e incluo a referência.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Pergunta difícil para quem vem da fenomenologia. Mas, creio que venha da reflexão constante. Eu vivo pensando. Processando o mundo nos meus paradigmas para produzir explicações e modelos que possam intervir nesse mesmo mundo. Mas há alguns momentos privilegiados, de fato. Como disse, caminhar, beber algo, conversar com amigos e alunos mais próximos e, inclusive, dar aulas. A aula exige que você processe, articule e ajuste aquilo que está pensando. Muitas das estruturas que servirão aos textos nascem nas aulas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Organização. Digo isso a meus alunos quando estamos próximos da semana de provas. Pensar sobre o que vai escrever. Elaborar os esquemas. Sumarizar o texto. Antecipá-lo, mentalmente, em suas encruzilhadas. Testar sua hipótese. Depois escrever. Todas as vezes que comecei a escrever como se fosse um medium recebendo uma mensagem do além, me dei mal. O medium não tem alternativa, mas nós precisamos projetar a escrita. Pelo menos eu fui percebendo que precisava. A criatividade está no pensamento e não na escrita em si. O pensamento criativo se desenvolve de modo contingente, caótico, arriscado. A escrita precisa ser organizada. Eu não me recinto do modo como sempre pensei, mas mudaria o modo como escrevi. E acho que ainda tenho muito a evoluir em organização, tanto do texto em si, quanto da gestão do tempo entre as tarefas de docência e pesquisa.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria ser mais eficiente na produção em parceria. Na verdade, é mais necessidade do que desejo. As experiências de intervenção como revisor em textos já produzidos não foram produtivas. Criar um mecanismo eficiente e honesto para a produção em grupo é uma das metas para este ano. Já tenho algumas ideias que tentarei colocar em prática no grupo de pesquisa. Já quanto ao livro que gostaria de ler, são muitos. Tantos que fica difícil dizer um. Mas devo iniciar um sobre as interfaces entre fenomenologia e teoria dos sistemas: Luhmann, intérprete de Husserl: el observador observado, de Lionel Lewkow. Esse deve ser o próximo da lista.