Vivian Pizzinga é escritora e psicanalista, autora de A primavera entra pelos pés (2015) e Dias roucos e vontades absurdas (2013).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Trabalho diariamente, logo, minha rotina é rotina de trabalhadora com muita preguiça matinal, que demora pra pegar no tranco e se esforça para enfrentar a violência de ser obrigada a sair de casa de manhã. Tenho muita dificuldade em acordar, preciso de uma caneca grande de café e de ir tomando no meu tempo para poder ir trabalhar. Quando acordo um pouco mais cedo e estou empolgada (raras ocasiões), procuro ler alguma coisa, mas não é sempre que dá. Procuro também fazer (retomei este ano o que estava afastado de mim por cerca de dois anos) uma tentativa de meditação diária, e agora tenho feito de manhã, o que é bem rapidinho, cinco, dez, quinze minutos, tudo depende do meu grau de atraso. Meditar (ou me aproximar disso) me inspira também! E ajuda na tomada de atitudes que às vezes protelo desnecessariamente (como a própria escrita) e na inspiração, em ter ideias. É impressionante, sem contar que me torno mais atenta e concentrada. Responder a essa pergunta me faz pensar em algo que não tinha pensado em antes: uma das poucas coisas que não protelo na vida é a leitura (e o trabalho, mas isso por obrigação, ainda que eu o ame). Só não leio quando não dá. Mas, apesar de me realizar com a escrita, também a protelo desnecessariamente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu não tenho rotina de escrita diária e nem de preparação para ela, porque trabalho não apenas com escrita, mas também sou psicóloga numa instituição e no consultório. Logo, não tem como eu acordar e escrever ou me dedicar à escrita da forma (e no tempo) que eu gostaria. Mas acho que, no Brasil, parece ser mesmo assim, né? Somos trabalhadores, ainda que não tenhamos a consciência de classe trabalhadora que deveríamos ter (ou a perdemos, em alguma curva do caminho), somos escritores com outras profissões ou empregos, e precisamos, então conciliar os intervalos, aproveitá-los, escarafunchá-los ao nosso favor. Quando estou com tempo ou de férias ou nos finais de semana, e estou envolvida em algum projeto, muitas vezes gosto de começar o dia lendo, tomando café, que, para mim, é mistura essencial para escrita, e aí sim tentar escrever (aliás, estou fazendo isto agora com a entrevista, porque é sábado). Não há escrita sem leitura, no meu caso. É o que me inspira. Tremendamente. No entanto, sou mais produtiva e ativa à noite, sempre fui notívaga. Se eu estiver de férias, será à noite que escreverei mais. Como preciso conciliar os tempos e isso tem anos, escrevo sempre que dá. Mas não é todo dia. Atualmente, estou envolvida com uma tese de doutorado, além do trabalho, e vejo grande dificuldade em conciliar escrita acadêmica e escrita ficcional. São outros modos e outras leituras. Preciso ler ficção e poesia para me inspirar a escrever ficcionalmente, mas fazendo tese, tenho que ler outros tipos de textos, e aí só me inspiro para a tese mesmo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho a menor disciplina em relação à escrita, o que acho péssimo. Disciplina não é, obrigatoriamente, a meu ver, aquela coisa engessada de ter que escrever todo dia tal hora por tanto tempo. Mas sim (e sinto falta disso) a tal da meta de escrita diária (nem que a meta seja: vou escrever um pouco, o quanto for). Ou então: vou ler um pouco de literatura, porque sei que me inspira, e isso me fará querer escrever. Uma coisa que eu acho é que o notebook ligado e aberto é ótimo, porque facilita. Ele está ali na sua frente, de bobeira e solitário, você não vai precisar abrir, pegar, ligar etc. Digo isso porque, quando morei no bairro da Glória, no Rio, era um apartamento pequeno, e não tinha espaço para o meu notebook ficar direto ligado ou num mesmo lugar. Ele tinha que ficar desligado e guardado naquela sua bolsinha. Isso me atrapalhava bastante, porque eu até sentaria para escrever uma coisinha ou outra se ele estivesse ali disponível, mas a preguiça muitas vezes impera, você vai adiando o gesto, o ato, vai fazendo uma coisa, outra, vai dizendo a si mesma que daqui a pouco, logo mais, primeiro uma deitadinha aqui, depois um cafezinho acolá, uma conversinha na rede social e pronto, não sentou em frente ao notebook para escrever e o dia passou. No entanto, acho que se ele estivesse ali aberto e pronto, com a tela cheia de dentes esperando a escrita chegar (parafraseando Raul Seixas), alguma produção escrita sairia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não compilo notas. Até já fiz isso, e não deu certo, não gostei do que saiu depois, e olha que era minha primeira tentativa de romance, de uma narrativa longa, que reescrevi duas vezes após a primeira (total de três). Comigo não funciona. Ou então anoto uma coisa ou outra, bem pouco, mas, se bobear, nem revejo. Eu vou pensando em algo e tendo ideias. Compilar notas, para mim, só serve para escrita acadêmica. Acontecia muito (faz tempo que não) de eu escrever mentalmente por um tempo. Se achasse que estava bom, tentava não adiar a escrita concreta. Talvez eu compilasse notas mentalmente, mas nem sei se eram notas ou se era o próprio texto se formando como texto em si. Isso sim funcionava, e muito. E também não faço pesquisa. Pelo menos, para o que tenho escrito, não tem se mostrado necessário. Meu processo de escrita tem a ver com leitura. Tem a ver com ler coisas literárias, ficcionais, bons contos, romances e poesia. Então vai me dando muita vontade de escrever, de fazer aquilo ali também. Quando tenho uma ideia, aí vou e escrevo, ou, se estiver sem tempo, vou pensando naquilo ali, ou escrevendo mentalmente, como falei acima. E as ideias surgem das maneiras mais diferentes: vendo uma cena na rua, ouvindo a fala de um personagem num filme ou numa peça de teatro, pensando em coisas da minha vida, lendo contos e querendo escrever também. É variado.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Isso é bem difícil. Quando tenho tempo, evito procrastinar e sento para escrever, mesmo que não esteja tão bom como parece estar no pensamento aquilo que almejo colocar no papel. Não tenho medo de não corresponder às expectativas alheias. O que acontece muito é, depois de escrever, eu ver que não correspondi às minhas expectativas. E aí sim fico mal, bem mal, ainda mais quando passou um tempo e eu retomo o texto achando que escrevi algo melhor: esse mal se traduz em irritação, desânimo e até mesmo tristeza. Mas passa e pode ser que eu volte àquilo ali e tente melhorar, pode ser que abandone de vez. Não dá pra se apegar a ideias que pareciam incríveis na cabeça e que não materializamos bem no papel, não tem jeito. Sempre fica o pensamento de que no futuro poderei voltar e trabalhar de novo aquele texto, mas às vezes pode ser contraproducente insistir, e nada como um tempo para amadurecer nossa percepção da coisa. Com narrativa longa, recentemente reli algo que escrevi há alguns anos e não gostei, continuei na mesma. Com contos, já tive bons frutos voltando a textos que estavam parados e esquecidos por meses e até anos. Agora, sendo trabalhadora formal em outra coisa que não a escrita, é bem difícil a dedicação aos projetos longos. Isso gera muita frustração. Tinha uma época que eu tentava me dedicar a um projeto longo (no qual eu estava imersa) pelo menos aos finais de semana, geralmente domingos, e aí passava horas, às vezes 7h ou 8h, desligava inclusive o celular. Mas não dá pra manter isso sempre, porque você também quer folga. As coisas comigo costumam acontecer em tacadas, depois passo um tempo distante. Ou, então, tento reformular um pouco a vida para que ela deixe caber os tais projetos longos, e fiz isso de vez em quando: evitar saídas de fim de semana, evitar noitadas para não perder o dia seguinte com cansaço ou seja o que for, diminuir uma rotina de atividades, não mexer no celular, deixando-o longe de mim, para que eu não fique curiosa (e o mantenho quase sempre no silencioso), por aí vai.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso, reescrevo e edito milhões de vezes. Milhares. Centenas. Não tem um número certo, mas são muitas e muitas vezes. Leio em voz alta, o que é fundamental. E, se for coisa longa, procuro imprimir. É como se fosse o último crivo, e não faço a menor ideia do porquê faz grande diferença (eu disse “grande”) ler o texto impresso. Algumas vezes mostro para outras pessoas e as narrativas longas mostro, pelo menos, partes, já mostrei narrativas inteiras. Tem um romance em vias de ser publicado ano que vem, 2019, pela editora Tinta Negra, e algumas pessoas leram partes longas dele e a editora gostou muito. Outra narrativa longa que escrevi (essa que teve três versões) foi lida por algumas pessoas em partes e uma amiga leu o texto inteiro e deu feedback, sem contar o ex-marido. O ex-marido foi o que mais leu, o que mais exaltou, o que mais me estimulou, mas também o que mais foi sincero e duro quando precisou.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Para nada tem regra, nem para isso, mas ultimamente tenho escrito direto no computador mesmo, porque digito muito rápido, sou do tempo dos cursos TED de datilografia. Mas, se eu estiver em um local que não dê, escrevo à mão sim. Sempre tenho um caderninho comigo para todo tipo de anotação, todo, seja uma aula, seja uma dica de livro que alguém deu, seja um pensamento, seja o início de um texto maior em prosa. Também já gravei no celular, mas não é muito a minha praia, já notei que não escuto depois. Se vou escrever coisas maiores, se a ideia tem fôlego (mesmo que depois não se sustente), prefiro o computador para não ficar com a mão doendo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias podem vir de qualquer lugar: alguém que falou alguma coisa qualquer que me fez pensar e desencadeou uma imagem ou o que parece ser, à primeira vista, um pequeníssimo enredo; uma cena na rua, fortuita, mas que suscita novas ideias; filmes. É sempre imprevisível de onde as ideias vêm para que eu escreva ou queira escrever. A leitura é, porém, o lugar máximo da minha inspiração. Seja por fomentar a vontade de escrever, seja por me dar ideias também. Ah, sim, e mais recentemente o teatro tem entrado nesse conjunto, uma vez que comecei a frequentar com intensidade há cerca de três anos e, às vezes, me dá inspiração. O teatro é muito novo e mais recente nesse processo, há menos de três anos (mesmo já tendo começado a frequentá-lo mais) eu não diria isso, não diria que está entre as fontes de ideias porque nunca tinha ocorrido, ao passo que os exemplos que dei acima sim. E tem me dado vontade, pela primeira vez na vida, desde o ano passado (2017) de escrever dramaturgia. Não sei como se escreve, nunca me interessei, mas de lá para cá tenho pensado e algumas peças que assisti (e um texto recente que li da dramaturga Annie Baker) me suscitaram vontade maior e comecei dois textos dramatúrgicos, porém com pouquíssimas páginas. Não sei se irão vingar. Mas o teatro tem se juntado ao conjunto de fatores que têm me inspirado e sugiro a todo mundo, a todo escritor, frequentar o teatro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que me tornei mais obsessiva, no bom sentido do termo, que é, sobretudo, cortar os excessos. Fui aprendendo a editar. E a entender que faz parte, ainda, desse meu processo, começar prolixa, ser longa, e depois não ter medo de cortar. Não tenho medo de cortar coisas enormes que escrevi porque, se fui capaz de escrevê-las, serei capaz de escrever novamente, mas de modo melhor, se precisar. Acho que escritor que se apega muito ao próprio texto (ou a extratos dele) perde bastante. Faço parte de um coletivo literário de prosa, carioca, chamado Clube da Leitura, que acaba de fazer onze anos de existência regular, sem pausas (só para recessos, natais e coisas afins) e que se reúne quinzenalmente. O Clube da Leitura, que começou sua existência no Sebo Baratos da Ribeiro e hoje está se reunindo na Casa Rio, com filhotes interessantíssimos em outros bairros (agora tem o Clube da Leitura Zona Oeste e o Clube da Leitura do Méier) me ajudou muito nesse processo de edição. Eu escrevo muito antes da existência do clube da leitura, e quando o descobri estava na fase de buscar lugares onde encontrasse pessoas com os mesmos interesses literários que eu e que eu pudesse exercitar minha desvergonha. Queria ter coragem, cada vez mais, de compartilhar com outras pessoas o que escrevo. Era muito tímida e receosa quanto a isso. Ali encontrei amigos, mas, no que tange ao processo de escrita, me ajudou muitíssimo: como os contos que escrevemos durante os quinze dias de intervalo entre um clube da leitura e outro têm um limite de duas laudas de espaço um e meio em fonte 12 Times New Roman, para não ser enorme e cansativo para os ouvintes, fui me adequando a essa norma, porque eu sempre escrevo mais, e escrever mais não é sinônimo de qualidade. Então eu começava a escrever e, em geral, passava das duas páginas (até hoje acontece). Quando temos uma ideia maior, é difícil fazê-la caber em duas páginas. Mas quase sempre é possível. E fui me reorientando no sentido de fazer caber. Comecei a aprender o que era excessivo (e chato!). Quando acontecia de eu achar que o texto que produzi perdia um pouco, em termos do que eu considerava qualidade literária, eu fazia dois arquivos: o do texto original, maior, que poderia ser aproveitado em outra ocasião (meus livros de contos têm contos – não todos – originados no clube da leitura e alguns deles têm versões maiores, que fiz questão de guardar ou aumentar quando da publicação), e do que iria para o clube da leitura, dentro do limite estipulado, muito pertinente para a natureza dos encontros do clube da leitura, onde vários contos são lidos em voz alta e podem ser cansativos. Por outro lado, como os contos escritos nesses encontros são baseados em motes lidos uma quinzena antes, também foi interessante para eu poder me forçar a me inspirar na temática trazida, o que também me mostrou que sou capaz de “escrever por encomenda”, embora não se trate, no caso do clube da leitura, de algo de natureza financeira e sim de lazer, prazer e felicidade, mas é exatamente o que falei, temos um mote e é importante segui-lo, então isso me ajudou muito. Acho que me tornei, ao longo dos anos, mais cuidadosa, mais enxuta, menos emocional na escrita, o que não significa que minha escrita não tenha emoções, mas, a depender da natureza do texto, é preciso lapidar o que vem como um jorro meio catártico, por assim dizer. Não em todos. Não lapido todos. Mas reescrever e editar é fundamental, inclusive jogar fora aquilo que, num primeiro momento, pareceu a nós que o escrevemos, maravilhoso demais por ser pura carga de emoção e força. Pode ter força, mas nem sempre é interessante no texto.