Vítor Oliva é escritor e sobrevivente.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nunca fui muito um bicho das manhãs. Raramente acordo cedo, pois meu sono é meio complexo, a não ser que tenha algo programado. Também sempre tive um certo estranhamento com comportamentos ritualísticos, mas, curiosamente, conservo alguns. Em dias comuns, pratico esses rituais no período de tempo em que ainda estou acordando, onde os movimentos automáticos se abstraem da minha vontade, e eu sinto que é o que tenho de fazer para ligar a máquina. Tomo um café, faço tarefas corriqueiras de casa, alimentos os animais, fumo um cigarro na rede, qualquer coisa que o modo automático dê conta e vá esquentando o motor. Só então começo a absorver melhor as informações. Quase nunca escrevo nesse período, a não ser que tenha sonhado muito e acorde precisando escrever rápido algo antes que se perca junto ao sonho. Aí me levanto direto para a página. Geralmente é um poema.
Sinto que meus rituais se dão de uma forma um tanto quanto inconsciente. Como se estivesse sendo carregado ou preparado pelo duplo, ou do que quiserem chamar. Até o momento em que sei que, enfim, estou ali.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto muito da noite. Costuma ser quando o fluxo de ideias se harmoniza melhor. Talvez porque é quando o tumulto da grande bolha se assenta um pouco e o da mata se intensifica. Não tenho propriamente um horário ou parte do dia destinados a isso, digo apenas por uma questão empírica. Acho que escrita é vivência. Sinto que até mesmo a fantasia e a ficção necessitam previamente de uma absorção de realismo para que surjam suas matrizes. Puxar a matéria do não-ser, entendendo que tudo é, não sendo.
Quanto a rituais de preparação, não classificaria exatamente dessa forma, mas sempre fui um observador inveterado, compulsivo. Muito do que escrevo resulta de inúmeras nano-observações cotidianas. Por vezes isso até me incomoda, quando preciso desanuviar a cabeça e não consigo, mas acaba me servindo, invariavelmente, para conectar pontos e destilar as palavras no papel. Concordo com Rubem Fonseca, a observação é a maior ferramenta que um escritor tem pra si. Também tenho uma dificuldade tremenda em escrever com alguém perto, a não ser que seja uma ideia que venha muito forte e necessite de imediatismo. Mas aí só anoto a ideia pra digerir ela depois sozinho. De preferência, no quarto fechado. Quase sempre em pé, pois, geralmente, no momento que antecede a escrita de fato e durante ela, fico muito agitado.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Acabo não escrevendo todos os dias justamente por não ter meta diária. Acho que isso acaba por mecanizar algo que é muito denso e vem muito de dentro. Pelo menos para as formas que costumo escrever. Em outros tempos eu me forçava. Já passei madrugadas inteiras frente um papel em branco por sentir a necessidade de escrever algo, pra depois ficar rangendo os dentes de frustração. Então passei a entender que, quando no desespero de apanhar qualquer mínima frase que viesse e não deixar escapar coisa alguma, eu nunca perdi nada literariamente nesses momentos, pois não era o momento para isso. O que perdi, na verdade, foram outras coisas que poderia estar fazendo e que seriam mais proveitosas. Mas tudo é processo. Hoje não me apunhalo tanto por isso, tento trabalhar junto com a coisa ao invés de lutar contra ela. Há períodos em que estamos mais sedentos e vêm enxurradas criativas. Há outros em que a porta se fecha. Ainda sinto esses períodos de bloqueio, quando ocorrem, pois tenho a literatura também como uma espécie de válvula de escape. Mais que isso, como uma perna. Uma necessidade intrínseca dessa forma de expressão. Mas, acima do ato de escrever em si, desde sempre tenho em mim uma necessidade de criar. Quando não consigo o manifesto através da escrita, pego um instrumento, desenho, vou pintar ou me exprimir de outra forma. Mas confesso que quando um bloqueio literário passa a durar certo tempo, parece que estou até andando torto, falando embolado, como se minhas ações externas se atrapalhassem.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Isso é algo que varia bastante. Quando em poesia, vem muito num jato de consciência, vou despejando os versos e muitas vezes só entendo o poema completamente depois de terminá-lo, achando sentidos que primariamente estavam subconscientes. Não costumo revisar ou ficar relendo várias vezes. A poesia me vem como um pulo de paraquedas. Quando em prosa, tendo a fazer anotações para interligar as ideias e as intenções por trás do que quero escrever. Se necessário, costumo colar as anotações na parede pra ter uma visão geral de tudo que pensei até então, e, a partir dali, tentar enxergar novos pontos ou realocar outros antigos. É como montar um esqueleto. Um laboratório prévio que me ajuda a sintetizar as ideias em algo que tenha maior volume. Mas acho que isso varia também conforme o que pretendo escrever. Os textos sempre me pedem alguma coisa antes ou durante o processo. Já passei algumas semanas isolado numa casa no mato, por exemplo, sem banheiro e qualquer sinal de telefone ou internet, para escrever uma peça teatral. Tomava banho de mangueira e defecava num bambuzal. Aboli o calendário e o relógio. Não restava mais nada a não ser escrever. Me fez mergulhar mais fundo e me trouxe uma experiência primordial pra entender meu processo. Penso que cada um há de encontrar o seu próprio, ou pelo menos adquirir um mínimo de autoconhecimento quando se trata disso. A prosa me vem como um vôo de parapente. Aprendi a ter paciência. Nunca se sabe, de fato, qual será o instante em que nos será apontado o mote que nos abrirá a porta, mas aprende-se a reconhecer o momento oportuno para isso ou quando se está chegando. É nesse momento que eu pairo na ideia e me desfoco do mundo, que, ironicamente, foi o que me ajudou a tê-la. Acho que o que me mantém vivo é esse transe criacional. Ao passo que consigo assimilar o pensamento e sei que ele não vai mais escapar, começo a escrever. Raramente escrevo sóbrio.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Hoje lido melhor, pois ando tendo outros projetos paralelos acontecendo, não só na literatura. Acho que esse movimento favorece, desde que se consiga conciliar tudo. Meu manancial é a poesia, que desde muito cedo tenho muito presente comigo, mas há ideias e inspirações que vêm e pedem para ser traduzidas em outros formatos. Já permutei por alguns contos, tenho um apreço imenso pela dramaturgia e a essência do teatro, assim como pelo cinema; além de dois romances ainda inacabados e que serão finalizados no momento propício. Já tive crises emocionais por cair em ciclos de procrastinação e não conseguir deslanchar alguns projetos da forma como esperava, mas atualmente procuro encontrar meios de manter a fluidez de cada um deles, conforme suas respectivas circunstâncias, que nem sempre estão sob meu controle. Tenho tentado ser mais pragmático. Os últimos anos foram puxados em diversos sentidos e a vida me trouxe muito material. Há muita coisa para ainda ser executada. Portanto, na trava da criação, venho tentando por em prática o que já existe, a conservar o movimento. Não me prendo a nenhuma expectativa, não busco saber quais são. Busco somente fazer algo que eu, como leitor, me aprazeria em ler. Tento atingir o ponto em que vejo que o texto está fazendo jus à intenção de dizer, que traduza bem a sensação e o pensamento. Sou muito fiel ao que vem nesses momentos de transe criativo. Tento explorar ao máximo esse instante. Provocá-lo, cutucá-lo com vara curta, extrair até a última gota. É um momento sacro. Depois do vômito, arrumo algumas peças, se é que necessitam ser arrumadas. A expectativa é unicamente de quem a cria conforme suas razões. É um mundo lotado de universos diversos. Sou completamente incapaz de corresponder a todas. E nem tenho intenções disso. Já me bastam as minhas, que tento sempre dispersar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quantas vezes forem necessárias para que se atinja o ponto que o texto precisa atingir. Geralmente não são muitas, não passam de uma ou duas vezes. Caso seja um projeto mais longo, como um romance ou um conto maior, por exemplo, pode ser que necessite de mais revisões. Nosso olhar também se cansa, e em textos longos pode passar algo despercebido. Mas não há uma quantidade específica. Costuma variar do tipo de texto. Há vezes em que martelo o ponto final sabendo que o texto é aquilo e está pronto. Há outras em que se escreve com menos zelo e prudência, num fluxo de consciência incontido. Quando o processo vem dessa maneira, absorvo-o melhor somente após uma segunda leitura. Pode ser que sinta a necessidade de mudar algumas palavras que estejam traduzindo mal uma ideia, ou deva apagar trechos que não condizem, etc. Mas sempre buscando este ponto em que se enxergue a obra como criatura feita. Nenhum processo de parto é fácil, mas logo se sabe quando pariu. É uma dor de alívio muito específica.
Não costumo mostrar para outras pessoas antes de publicar, mas, por vezes, compartilho com pessoas próximas que eu gostaria que lessem. Mais numa curiosidade acerca de suas percepções sobre o que o texto traz do que um pedido opinativo. Algumas opiniões podem me induzir na forma de enxergar o texto, mas nunca influenciaram no fato de publicar ou não. Mostro para pessoas que as formas de pensamento me interessam. Que possam devanear sobre aquilo sem compromisso crítico. Etiquetas academicistas muitas vezes me cansam. Estou mais interessado na sensibilidade genuína das pessoas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Utilizo bastante o computador pela praticidade e meios mais seguros de se salvar um arquivo. Porém, há cerca de 10 anos, conheci uma das principais figuras de minha vida até então: Olívia. Desde que a encontrei, soube que seríamos íntimos ao eterno. Não há que se entrar em detalhes sobre como ela salvou minha vida diversas vezes, mas somente Olívia sabe dos pormenores de minhas tragédias. Esteve comigo nos momentos mais extremos. Somente ela teve acesso às páginas que perdi para sempre e guardei na gaveta de frustrações, assim como as que rasguei e atirei ao léu em instantes de fúria íntima. Tenho a ela um laço muito profundo. Um afeto absoluto, um desejo de cuidado que só criamos para com um amor genuíno. Vou ao inferno por ela. Olívia, por protocolos de fábrica, é uma olivetti studio 45. Tem meio século de vida. Ademais, não há nela meios de dispersão tal qual num computador. A tela do notebook me apresenta inúmeros arquivos, programas e lembretes de coisas alheias ao meu intuito. Em Olívia – pasmem – não existe caixa de entrada ou ícones de redes sociais. A única coisa que dá pra ser feita nela é escrever. Nenhuma informação vai brotar a não ser que você a escreva. Os únicos sons que ela emite são os das marteladas revelando as palavras ou um aviso para que eu pule a linha. Com ela, especificamente ela, é sempre diferente. E sempre a prefiro.
Os únicos rascunhos à mão ocorrem quando não há outro meio de se fazer uma anotação. Às vezes você está numa fila de padaria ou resolvendo situações banais e algo desperta uma ideia. Pra não perder, anoto em qualquer coisa que tenha ao alcance e depois trabalho melhor nisso em casa. Tento evitar ao máximo este método, pois geralmente a mão não consegue acompanhar o pensamento, portanto, quando se dá assim, costumo traçar uma espécie de esquema que me permita lembrar os pontos centrais posteriormente e interliga-los melhor.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Vêm, creio, de um conjunto de observações e experiências trabalhadas muito no imaginário. Tenho mania de construir situações hipotéticas em cenas triviais da vida. De ver um casal discutindo na rua e imaginar como funcionaria a vida dos dois em seus menores trejeitos, em seguida suas vidas individuais e os arquétipos que isso imprimiu na relação que tiveram a dois e que levou eles estarem do outro lado da esquina falando tudo aquilo daquela forma. Ou de olhar para um balconista de bar e traçar sua infância pela forma que ele distribui os objetos. Qualquer coisa. Construir personagens. Viajar na psique humana e em suas construções tanto materiais quanto imateriais. Pensar realidades e dualidades diversas. Não acho que uma ideia brota do nada. Muitas vezes ela desponta de repente, como num solavanco epifânico. Elas podem estar condensadas em algo que nós ainda não entendemos, mas talvez não seja importante entender.
Atualmente moro numa chácara com grandes amigos, que também são grandes artistas. A despeito de minha suspeição em falar, são músicos e compositores com autorias geniais. Viemos viver juntos na Casa Amarela principalmente no intuito de tocar pra frente nossos projetos individuais e coletivos. Portanto, inevitavelmente, a Casa e seus cantos emana uma força criativa constante. Se torna difícil cair numa órbita de inércia criativa. Acho que acabamos por nos inspirar mesmo que de forma inconsciente. Então acaba sendo não um hábito propriamente cultivado, mas o dia-a-dia naturalmente já proporciona isso. É um privilégio que tenho. Também sou um amante dos bares, das bodegas e botecos. Há muitos universos ali numa comunhão deveras curiosa. Inevitavelmente brotam algumas ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Lembro que a primeira vez que a literatura me bateu muito forte foi quando, no meio de uma crise interna na adolescência, me deparei com Augusto dos Anjos. Aquilo arrancou meu peito fora e me estirou na cama com uma ferida muito confortável. Uma sensação única, que me jogou em zonas que eu ainda tinha como inexploradas. Foi como se encontrasse uma fórmula de puxar minhas coisas pra fora. Então, sempre que tinha conflitos dos mais variados tipos, escrevia. Comecei escrevendo sonetos, muito influenciado pelos primeiros autores que me causaram os mesmos efeitos de Augusto. Mas, com o tempo, fui abolindo normalidades técnicas buscando uma poesia que fosse livre, que pudesse pulsar de infinitas formas. Que não tivesse compromisso com rimas, métrica ou divisões de quartetos. Passei a ver que as ideias para um texto vêm acompanhadas de um pedido. É muito raro eu pensar comigo: “vou escrever um conto”, e ir para a folha pensar em algo. Geralmente, algo desperta a ideia e só então eu paro e penso diante dela: “mas o que é isso?”. Então matuto e concluo: “creio ser um conto”. Mas gosto da literatura em si e seus variados espectros. Penso que dá pra se escrever algo bom e sincero, que cause impacto, em qualquer formato. Da mesma forma se dá com textos frouxos e vazios. Pra mim, está mais na forma de dizer. Na habilidade de encaixar palavras como acordes, a partir da proposta que se tem. Assim como já li sonetos alexandrinos clássicos que não me provocaram nada, já fui abatido por versos de doidos de rua semi-analfabetos que me provocaram vertigens. Meu processo sempre girou em torno dessas sensações. Elas vêm de diversas formas, mas a fonte a qual elas cutucam me parece ser sempre a mesma. Que é o que desperta essa zona criativa. Sempre me guiei muito na escrita através do que sinto enquanto estou escrevendo.
A mim mesmo, creio que não diria nada. Jamais estragaria meus fracassos – e nem saberia como fazê-lo. Muitos foram determinantes. Talvez lançaria um olhar mavioso e daria dois tapas em meu ombro. Tudo levou a isso. Foi e é a única hipótese possível para mim.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há muitos pra serem tirados do campo ideológico, mas lançarei em breve “À Espera de Caronte”, um livro de poesias. A ideia é envolver também um audiovisual e nos lançamentos ter um show ao vivo com o instrumental e algumas músicas de nossa autoria, com leituras de alguns poemas do livro. Quem sabe, também, umas exposições, enfim, agregar várias vertentes num lugar só e fazer uma maluquice.
Tenho um filme ainda em construção na cabeça que pretendo escrever o roteiro. Algumas cenas ainda um tanto esparsas, mas iniciando um elo comunicativo. Também há um romance o qual só fiz anotações e concepções de personagens, mas venho calmamente amadurecendo a coisa toda para conseguir transpor bem a ideia. Ainda não consegui achar a linguagem certa. Envolve um cenário um pouco complexo. Mas já tem um provável título: Travessia Geral do Absoluto.
Gostaria de ler uma autobiografia do esquecimento. Talvez seria um monólogo. Penso que não deva existir, ainda. Se sim, gostaria de ser informado.