Vitor Miranda é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
não tenho rotina. sou trabalhador freelancer e não tenho trabalho todo dia. às vezes meu dia começa embriagado voltando pra casa, às vezes começa comigo dormindo. gosto quando acordo com alguma namorada e o dia começa com um bom dia e um abraço. ou quando tem trabalho e acordo cedo e aproveito melhor o dia. pois geralmente quando acordo tarde, sozinho e sem nada pra fazer o dia começa com o celular e as notícias – e esse ano começa recheado de péssimas notícias. e quando começa assim eu levo horas pra levantar da cama.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
quando há silêncio e nunca há. silêncio é “ausência de ruído” e há ruídos o tempo todo. agora no verão me acostumei com o ruído do ventilador que não cessa um minuto. mas eu não durmo no barulho, pois as próprias palavras são uma espécie de ruído, são sons que a gente escuta e nos remete a algo. um amigo poeta e músico compõe música instrumental e questionado porque um poeta faz música instrumental responde que as palavras dos poemas dele também são instrumentais, é música. então não há uma hora do dia em que eu trabalhe melhor, eu apenas trabalho.
os rituais, pra mim, eram algo juvenis em que eu ia pra sacada com o computador, um maço de cigarros e algumas cervejas. me ajudava mais a continuar estragando a saúde do que na escrita. o grande ritual é sentar a bunda na cadeira que é a parte mais difícil. no mundo de hoje, mais do que nunca, você parar e se concentrar em algo específico é uma tremenda meditação. o celular vibra, os gatos transam na rua, o cachorro da vizinha acorda no andar de cima e caminha pelo piso com suas unhas compridas, o motorista bêbado chega na rua cantando pneu. se você vacilar perde o ritmo da narrativa, a conclusão do poema, e aí é um suicídio literário.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
eu escrevo quando vem. se é uma prosa eu anoto a ideia ou escrevo um trecho e quando chego em casa vou pro computador. se estou em casa sento e escrevo. quando é poema escrevo na hora ou mando áudio pra um dxs amigxs que dialoga falando o poema e depois lapido ele em algum momento lá pra frente. geralmente quando estou fazendo uma pré-edição do livro. então não tenho uma meta diária. sou daqueles que escreve quando a parada vem. não consigo funcionar “todo dia às 1h vou escrever alguma coisa”. quando tento fazer isso só sai merda.
mas fazendo uma reflexão sobre os tempos, sempre digo que estamos no período da humanidade onde o ato de escrever é realizado pelo maior número de pessoas. as pessoas escrevem muito todos os dias. são textos pensados, ou que saem da alma, do sentimento, é a urgência das redes sociais e principalmente do whatsapp. quanta literatura perdida na infinitude de conversas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
geralmente a minha pesquisa é viver e escutar. tenho lido bastante. cada vez mais. mas é difícil eu fazer uma pesquisa pra escrever, mesmo porque eu não tive uma vida acadêmica. não sou formado. apenas me relaciono com pessoas, com a vida e escrevo sobre isso. às vezes no meio de um texto faço uma pesquisa como num conto que escrevi chamado “os ratos vão pro céu?” quando relato um dia, na infância, em que matamos um rato afogado e vi em sua face a morte pela primeira vez e também a maldade do ser humano. no meio da escrita parei e fiz uma pesquisa sobre ratos pra descobrir porque os ratos são usados em laboratório, porque nós temos tanto medo de ratos e porque matamos outros seres sem misericórdia alguma. então pra mim funciona mais da escrita pra pesquisa e não o inverso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
lido de maneira tranquila. apenas não escrevo. no fim da vida o Ferreira Gullar ficou anos sem escrever poemas e lhe perguntaram por que e ele respondeu de maneira simples: “a poesia é o espanto e a vida já não anda me espantando”. então a gente não precisa escrever sempre só porque somos escritores. o fato de eu fotografar me ajuda nesses hiatos, pois tenho outro lugar pra me expressar. e também na fotografia há essas travas. perco a vontade e não acho nenhum enquadramento bonito e é nesse momento que paro de fotografar até me dar vontade de novo.
bom, na escrita lido mais comigo mesmo, pois só escrevo o que quero, quando tenho vontade e o impulso organizo numa obra e publico livros. o que me deixaria ansioso seria a situação de alguém estar me pagando pra escrever algo e eu ter que lidar com essa pessoa que vai me cobrar porque há dinheiro envolvido. eu até queria essa experiência. se alguém quiser me pagar pra isso, eu tô aqui.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
geralmente vou revisar na hora que vou preparar o livro, que sinto que tenho que lançar aquela obra. reviso três ou quatro vezes. mas, por exemplo, agora estou finalizando uma obra em prosa poética e toda vez que ia escrever um novo trecho precisava ler quase tudo que havia escrito pra entrar na energia da narrativa novamente e me localizar em qual lugar da história eu estava e isso já uma forma de revisão por partes que já não consigo contar quantas vezes isso se repetiu.
tenho xs conselheirxs literários também com quem troco informações, com quem costumo trabalhar e que acredito na sinceridade e capacidade de fazer uma crítica pra quem mostro os trabalhos pré-finalizados. acho importante isso. é difícil você visualizar sua própria obra. geralmente ou a gente vai adorar ou achar que tá horrível.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
é ótima. até preferiria que fosse pior. uso bastante o celular pra escrever poemas. prosa não consigo, pois é cansativo. mas escrevo direto no computador. não tenho esse romantismo da escrita à mão e tampouco da máquina de escrever, mesmo porque seria expulso do prédio pelo barulho. e dá muito trabalho. escrever, transcrever, reescrever. fora o papel gasto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
eu procuro me manter vivo. acho que é o mais importante. mas quanto mais perto da morte o lugar, mais criativo me parece. e viajar, conhecer novos lugares, novas formas de fazer as coisas. é como na atuação alguns profissionais trabalham com memória emotiva pra atingir algum nível emocional, mas chorar a morte do cachorrinho tantas vezes uma hora não funciona mais. ou como a teoria da pamonha do Clóvis de Barros Filho onde o sujeito vê o rancho da pamonha e com fome para e come uma pamonha e fica super feliz e resolve comer outra pamonha. na quinta pamonha você tá triste e passando mal, pois o comedor da quinta pamonha já não é mais o comedor da primeira. “só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental” disse Roberto Piva. a gente tem que experimentar as coisas da vida.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
bom, lancei um livro muito jovem e hoje acho a escrita dele uma merda. mas tem um ritmo ali, humor e situações urbanas que as pessoas até hoje leem e gostam, mas se um profissional ler achará tão ruim quanto acho. mas talvez seja o nível mais sincero da juventude.
“sempre fui referência, hoje sou Leminski” disse o próprio Leminski ao publicar, se não me engano, seu último livro em vida. acho que é isso que vem acontecendo comigo. tenho encontrado meu próprio caminho, meu próprio ritmo, minha estética. espero que um dia eu chegue além de mim mesmo e abandone a minha própria referência e consiga continuar evoluindo pra outro lugar ainda meu do estado atual. talvez mais difícil de sair das sombras de nossas referências é sair da nossa própria sombra quando alcançamos um lugar legal.
acho que isso é um processo que acontece com a maioria dxs escritorxs. é difícil alguém começar maduro como Drummond no qual o primeiro poema de seu primeiro livro já é “Poema de sete faces”. um escritor que já começa maduro. já começa ele mesmo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
terminei um livro que é uma prosa poética experimental e tô estudando a maneira mais legal pra publicá-lo. fora isso, tem uma história que ainda não comecei a escrever, pois não amadureci ainda a ideia do personagem principal e tampouco da história e fugiria completamente de todo meu processo de trabalho que respondi aqui, pois seria pura ficção baseado numa notícia de jornal e também no meu gosto por Rubem Fonseca. seria um romance policial sobre traições, incestos e abusos sexuais.
queria ler seu livro. existe?