Vitor Marcos Gregório é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo e professor de História do Instituto Federal do Paraná.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Quando preciso escrever um texto mais longo (livro, capítulo, artigo) gosto de me manter, no máximo grau possível, com a cabeça livre de quaisquer influências externas ao tema a ser tratado. Ler notícias, navegar na internet, abrir e-mail, checar celular são atividades proibidas nas manhãs destes dias. Afinal de contas é extremamente comum pegarmos o celular apenas para dar “aquela olhadinha” e nos vermos às voltas com mensagens requerendo resposta, ligações perdidas, notificações de e-mails “super urgentes” que requerem pronta atenção. Então, se posso dizer que tenho um ritual para me concentrar melhor para escrever, este sem dúvida é um de seus itens mais importantes. Gosto, também, de tomar banho pela manhã. Ajuda a colocar as ideias no lugar, facilita a concentração, marca um momento propício para repassar todos os pontos que precisam ser tratados durante a escrita e as melhores estratégias para abordá-los. Realmente gosto de água, de sentir a água, então um bom banho logo cedo também ajuda a definir positivamente meu humor. Comer logo cedo nem pensar. Pelo menos para mim, trata-se de algo que me provoca extrema sonolência e dificuldade de concentração. Por isso considero o período da tarde, de longe, o pior para trabalhar. Gosto de estar o máximo possível focado. Uma caneca de café com leite vegetal cai sempre bem, contudo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã, logo cedo. Sem dúvida é o período mais produtivo para mim. Então se preciso escrever procuro acordar o mais cedo possível (cinco da manhã costuma ser um bom horário), seguir todo o ritual do banho, repasse dos pontos a serem tratados, caneca de café, e computador. A ideia é manter-me o mais alheio possível a tudo que não seja meu texto. Costuma funcionar bem. Só que o acordar cedo pressupõe, no dia anterior, o dormir cedo, o que também gosto de fazer. Não sou o tipo de pessoa que trabalha bem durante a noite. Geralmente esse é o momento no qual tento desligar com leituras leves e esportes na televisão. Se conseguir dormir cedo, consigo acordar mais bem disposto. Então pode ser dito que meu ritual de escrita começa, na verdade, no dia anterior. O período da tarde é sempre o mais problemático. De longe. A concentração é um objetivo quase inalcançável neste período do dia. Evito ao máximo precisar sentar ao computador após o almoço, mas se for indispensável a única solução é me alimentar do modo mais leve possível e me preparar para alguns momentos de tensão enquanto tento encadear as ideias. Café é um item indispensável nestas situações. Em profusão. Em geral o que escrevo durante a tarde é completamente revisado na manhã seguinte. Por isso, prefiro dedicar esta parte do dia a preparar aulas, responder e-mails e demais mensagens, consultar alguma fonte que precise ser citada, rascunhar à mão algum esquema que me ajude a escrever na manhã seguinte, revisar notas bibliográficas. Concluir textos neste horário, nem pensar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende muito da natureza do trabalho a ser realizado. Se há prazos fixos a serem cumpridos não tem muito como fugir da necessidade de trabalhar fora da zona de conforto, escrevendo durante a tarde e à noite, por exemplo. Mas mesmo nestes casos ainda prefiro evitar estas situações. O ideal, para mim, sempre é dedicar um tempo generoso a rascunhar a estrutura do texto, à mão, já com as referências iniciais que serão feitas. Considero esta, na verdade, a parte mais importante do trabalho. É aqui que preparo para mim mesmo um manual de como deverei escrever nas semanas seguintes. Claro que este esquema pode ser alterado posteriormente (e sempre o é), mas considero essencial ter este ponto de partida para evitar aquele travamento tão comum quando tudo que temos de um texto é uma tela branca e um teclado ao alcance da mão. Com o rascunho sei precisamente como devo começar e desenvolver um texto. Não sou tão habilidoso que consiga simplesmente sentar e começar a escrever. Então este rascunho ajuda bastante, razão pela qual dedico bastante tempo rabiscando-o. Só então me coloco a escrever, propriamente dito. Não coloco metas diárias de escrita, mas gosto sempre de concluir argumentos antes de me por a fazer alguma outra coisa. Acho sumamente complicado ter que interromper uma ideia no meio para retomar no dia seguinte. Mudam as condições, um largo período de tempo se passou e, com ele, por vezes o encadeamento que eu estava buscando. É claro que, entretanto, isso precisa ser feito por vezes. Nestes casos procuro gravar em áudio do modo mais próximo possível à escrita o que eu estava desenvolvendo, para facilitar a retomada posterior. Mesmo assim é um processo difícil, em minha opinião.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O rascunho é fundamental nesta fase. Não são propriamente notas, são esquemas de encadeamento de ideias, flechas que remetem a citações específicas, tópicos que abraçam várias ideias organizados em ordem de abordagem no texto que será escrito. Uma coisa que sempre me fascinou foi presenciar pessoas capazes de simplesmente sentar em frente ao computador e começar a escrever. Confesso que nunca entendi muito bem como isso funciona. Para mim a escrita sempre foi algo muito mais artificial. Se estou concentrado digitando e alguém pede minha atenção a retomada sempre requer longos minutos. Se estou escrevendo e acontece algo em volta digno de nota, passa o mesmo. Então realmente preciso muito seguir determinados passos pré-determinados para conseguir produzir. Me lembro claramente, com relação a este tópico, do início da redação de minha dissertação. Foram três longuíssimos dias sentado em frente a uma tela branca nos quais nada aconteceu. Absolutamente nada. Era desesperador. Foi quando decidi simplesmente me levantar e ir fazer outra coisa. Só então as ideias começaram a fluir, quando eu menos esperava, aliás. A ideia é que se a pesquisa está concluída e foi bem realizada as ideias estão ali, dentro da cabeça. Então se torna apenas uma questão de desenvolver técnicas que tornem este acesso mais simples e sua conversão em texto menos penosa. Não existe, contudo, fórmula mágica para isso, em minha opinião. Cada pessoa realiza estes processos de um modo próprio e inconfundível. É isso que torna a troca de experiências, como a realizada através deste projeto, tão valiosa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quanto às pressões externas, procuro não pensar muito. Se fui convidado para produzir algo é porque acreditam que sou capaz disso, e, mais do que isso, acreditam que sou o mais indicado para aquela produção específica. Então, realmente, as pressões oriundas de prazos e expectativas não me afetam muito. Talvez por isso eu nunca tenha atrasado a entrega de textos encomendados. Agora, com a procrastinação a história muda completamente de figura. Sou um procrastinador nato. Preciso me policiar muito para efetivamente iniciar algum projeto necessário, como a redação de relatórios de pesquisa, por exemplo. A tendência é sempre deixar para amanhã, para a semana que vem. Parece que sempre tem algo mais importante requerendo minha atenção naquele momento. O relatório sempre pode esperar um pouco mais. Isto, para mim, é simplesmente uma maldição! Por isso, considero que a imposição de prazos ajuda. Para muitos atrapalha, gera ansiedade. Para mim gera apenas a obrigação de iniciar o trabalho. A partir daí tudo acaba acontecendo naturalmente (desde que de acordo com aqueles passos pré-determinados, claro). O mesmo vale para projetos longos. A chave aqui, na minha opinião, é não permitir que eles se tornem longos demais. Todo projeto que ultrapassa aquilo que eu chamo “prazo de validade” tende a ter sua qualidade prejudicada. Tenho profunda dificuldade de pensar apenas em um tema durante um período excessivamente longo. Sempre quero pesquisar outras coisas, ler sobre outros temas, discutir sobre outros assuntos. Isso me leva à tendência de abandonar, por vezes, o objeto original do projeto, o que nunca é bom. Então, me parece importante apenas abraçar pesquisas que tenham prazo definido. De novo, prazos me ajudam também neste ponto. A partir dali estarei livre para procurar novos tópicos de interesse. O que implica em que, até aquele prazo, estarei completamente focado nos objetivos traçados originalmente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Mais uma de minhas esquisitices, creio. Reviso meus textos, no máximo, três vezes. Depois disso a tendência sempre vai no sentido de reescrever longas passagens, refazer citações, reformular argumentos, o que tornaria a redação um exercício verdadeiramente interminável. Então, em geral, realizo uma revisão profunda do texto e envio para algum colega ler. Recebidos os comentários, introduzo aqueles que considero pertinentes e anoto observações para os que não me convenceram (eles sempre são incrivelmente úteis na redação de artigos ou capítulos posteriores), e envio novamente para o mesmo colega e outros lerem. Recebidos os novos comentários e sugestões, o processo se repete, mas desta vez concluo e envio para os editores ou revista científica em questão. É um processo bastante longo, mas que garante a qualidade do trabalho final. A escrita é uma atividade que tende a nos isolar de todo o resto, então por vezes é grande o movimento para considerarmos claros textos que absolutamente não o são. Então considero que esse processo de leitura prévia é bastante importante.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
À mão, o mais rabiscados que puderem ser. Depois vou depurando, sempre à mão. No final tenho uma pilha realmente assustadora de pedaços de papel rasgados, montes de rabiscos incompreensíveis para o mundo que serão fundamentais para o início de minha redação. Isso não implica, contudo, que eu tenha aversão à tecnologia. Muito pelo contrário! Adoro equipamentos tecnológicos, busco sempre adotar os mais novos avanços que permitam facilitar meu trabalho e minha organização pessoal – um item sempre bastante complicado para mim. Ultimamente tenho utilizado, por exemplo, meu iPad e sua caneta digital para realizar tais rascunhos, os quais são automaticamente sincronizados na “nuvem”. Não preciso mais temer que algum vento embaralhe toda aquela bagunça de minha mesa. Agora, se alguém desligar os servidores nos quais meus backups estão guardados, muito provavelmente estarei em sérios apuros. Parece que a dependência do acaso nunca será propriamente resolvida, afinal. Faz parte das emoções de ser um pesquisador, creio.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De leituras, discussões… Não creio que tenha muito segredo, aqui. Ideias fluem de onde informações abundam. O importante é sempre manter-se atualizado, acompanhando as últimas publicações de sua área de interesse, e sempre disposto a problematizar teorias com sólida pesquisa teórica e documental. Para nós, historiadores, creio que criatividade nunca será um problema.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Creio que me tornei mais consciente de que escrita não é inspiração, é transpiração. Quando estava na graduação eu realmente pensava que escrever um livro era simplesmente uma questão de descobrir um tema de interesse, realizar uma pesquisa capaz de encher várias páginas com citações bibliográficas e documentais e, no final, simplesmente sentar para escrever sobre tudo isso. Chego a ficar comovido quando penso, hoje, na minha inocência de então. O que me levou a encarar vários problemas, obviamente. Os famosos três dias de travamento total no início da escrita de minha dissertação foi o mais sério deles. Lembro que uma vez cheguei a questionar um professor quando este defendeu entusiasticamente a necessidade de métodos claros e bem definidos para a realização de um bom trabalho histórico. Deus, como eu era inocente! Hoje eu diria para minha versão mais jovem que métodos são, sim, essenciais, que documentos primários não são capazes de responder todas as questões se você não contar com uma sólida pesquisa teórica, e que naqueles momentos da escrita em que o desespero bate e tudo parece perdido, o melhor a fazer é simplesmente levantar e ir fazer outra coisa durante algum tempo. Diria tudo isso a mim mesmo e certamente seria contestado com veemência. Não tem jeito. Tem coisas que apenas a experiência nos ensina.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
No momento o projeto mais importante a ser abraçado é a redação de meu relatório de pós doutorado, cujo início estou procrastinando há pelo menos três meses (eu disse que esse era um problema sério!). Depois pretendo aprofundar uma pesquisa apenas iniciada sobre a ferrovia São Paulo – Rio Grande, caminho de notável importância para toda a região sul do país e, particularmente, para a cidade onde hoje resido. Trata-se de um projeto que, espero, trará numerosos frutos no médio prazo. Quanto ao livro que eu gostaria de ler mas ainda não existe creio que sou incapaz de responder visto que, se ele não existe, não tem como saber se eu realmente gostaria de o ler.