Vitor Biasoli é professor aposentado e escritor, mantém o blog A louca que passa.
Como você começa seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina estabelecida. Mas costumo me acordar cedo, preparar meu próprio café e logo abrir o computador para conferir o correio eletrônico, Facebook e notícias em geral. Mas tento evitar essa corrida compulsiva ao computador. Às vezes leio a manhã inteira ou saio para caminhar. Duas vezes por semana tenho Pilates.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo melhor de manhã e à noite. Fui professor durante 38 anos e durante esse tempo as noites e madrugadas eram os períodos que mais rendiam. Também fui casado, tive dois filhos no primeiro casamento, e o tempo precisava ser negociado com os compromissos familiares. A dissertação de mestrado, produzida num período em que os filhos eram pequenos, escrevi de madrugada. Mas sempre gostei das manhãs. Me sinto muito disposto nesse período. Não apenas para ler e escrever.
Quanto a um ritual de escrita, não tenho. Mas possuo blocos de anotações e gosto de fazer observações a respeito das minhas leituras (tanto nos livros quanto nos blocos, na agenda, muitas vezes em arquivos do computador) e preciso ter isso minimamente organizado. Muitas vezes escrevo sem consultar coisa alguma (quando se trata de literatura ficcional), no entanto preciso desse material à mão. Talvez um costume de professor que penou para preparar aulas, provas e textos acadêmicos.
Acredito que escrevo por impulso, intuitivamente, mas cedo participei de oficinas de criação literária e desde então procurei estabelecer um mínimo de disciplina. Uma luta constante, pois entendo que até hoje não sou disciplinado.
Mas talvez caiba dizer que tenho alguns elementos para a construção de um ritual em torno da escrita: o café (puro ou com leite) e as caminhadas. Quando estou escrevendo, sempre paro para preparar um café e arejar as ideias. Se o tempo permite (se não é madrugada), também saio para caminhar e arejar as ideias. Quando tinha o compromisso da crônica semanal para o jornal, várias vezes saí para caminhar no meio da escrita do texto. Eram meia dúzia de quadras e as ideias se organizavam na cabeça. Voltava para casa e finalizava a crônica.
Até hoje caminho bastante com o propósito de manter a cabeça em ordem. Se bem que caminhar é muito mais do que isso. É uma atividade muito prazerosa. O meu modo de me colocar no mundo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Desde adolescente escrevo todos os dias. Fiz diário durante muitos anos com esse propósito (por sugestão de um professor). Minha novela juvenil Jorge encontra Lilian foi feita a partir desse material (um diário que fiz aos 15 anos). Mais tarde adotei o costume da agenda, do bloco de anotações e do arquivo de notas no computador. Também escrevi muita carta, tive amizades por correspondência, e até pouco tempo atrás me correspondia com minha mãe. A palavra escrita sempre foi uma necessidade e acho que sou desses para quem viver é também escrever, escrever diariamente, mesmo que o material não seja para publicação.
A partir dessa escrita cotidiana, me impus alguma disciplina com o propósito de transformar o material em texto publicável. Preciso enfatizar isso. Uma luta e tanto. As oficinas de criação literária – especialmente as coordenadas por Luiz Antônio de Assis Brasil – foram fundamentais para isso: dar um método ao processo criativo, pôr ordem no rebuliço das ideias, fantasias e delírios.
Como é seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Em primeiro lugar, devo distinguir o processo da escrita de textos acadêmicos e de textos literários. Dissertação de mestrado e tese de doutorado foram elaborados a partir de questões precisas, leituras sistemáticas e projetos bem construídos. No caso da monografia, exigência de um curso de especialização que cursei no início dos anos 80, esse texto eu não consegui concluir. Não ultrapassei as fichas de pesquisa e leitura. Empaquei e não sei o que houve. No mestrado, tive uma orientadora excepcional (Mestrado em Letras / PUCRS) e deu certo. Não esqueci a aprendizagem e a utilizei no doutorado (História Social / USP).
Quanto aos textos literários, devo dizer que o processo é diferente. A pesquisa é diferente. O processo da escrita é outro. Acho que nunca parti de planos muito bem elaborados. Fui estruturando os livros com o tempo. Uns vinte anos para o livro de poemas (Calibre 22), um pouco menos que isso para o primeiro livro de contos (Uísque sem gelo). Escrevia, reescrevia. Preparei os dois livros durante anos. Corrigia e fazia pesquisas para acertar um ou outro detalhe. Um processo muito diferente daquele utilizado nos textos acadêmicos. Mas nunca foi fácil partir do projeto inicial para a escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalho em projetos longos?
Fiz terapia várias vezes, desde os vinte anos, e isso ajudou a lidar com as travas, sabotagens e tantas outras coisas que nós fazemos com nossas vidas. Mas as travas da escrita nunca foram o tema central das terapias.
Atualmente sinto estar bloqueado para concretizar um projeto de narrativa longa, já iniciada, mas creio que é temporário. Publicarei um segundo livro de contos até dezembro (que está finalizado há quatro anos), tenho um segundo livro de poemas (na verdade uma plaquete) já encaminhado, e penso que isso vai ajudar a destravar.
A monografia que não escrevi aos 25 anos me incomodou muito e quando iniciei o mestrado tive receio de repetir o fracasso. Mas me dediquei mais, fiz um projeto mais consistente, tive uma ótima orientadora, e a coisa correu bem. No doutorado suei frio achando que não iria cumprir os prazos, mas botei a mão na massa (o título de doutor era fundamental para a ascensão profissional) e deu certo.
Quando recebi da Editora FTD (por intermédio de um colega que organizava coleções para a editora), também me assustei com as exigências e prazos, mas terminei escrevendo conforme o pedido e o tempo estipulado. Escrevi três pequenos livros e dois foram publicados – o terceiro só não saiu porque a coleção não teve êxito comercial e foi suspensa. Mas não consegui me manter nessa atividade.
Em relação aos trabalhos literários, como nunca me coloquei como escritor profissional (apesar de ter sonhado com isso), fui escrevendo e corrigindo ao sabor do tempo, negociando com o trabalho de professor e os compromissos familiares e adiando a conclusão dos trabalhos. Claro que me incomodei muito com isso e o resultado foi que publiquei pouca literatura em livro individual: uma novela juvenil, um livro de poemas, um livro de contos e um livro de crônicas. O livro de contos e o de crônicas saíram pela Editora Movimento e foi uma maravilha ter o Carlos Jorge Appel como editor. As observações dele foram fundamentais.
No meu entendimento, porém, ainda me falta disciplina para escrever. Com 63 anos ainda luto para organizar o meu processo criativo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso várias vezes, inúmeras vezes, e muitas vezes não sei quando parar de revisá-los. Já fui mais solitário na produção e não passava meus textos para outros darem pitaco. Mas isso foi mudando com o tempo e os textos que publiquei em livro passaram por amigos escritores, amigos críticos literários e assim por diante. Quando publiquei pela Movimento, o editor leu e comentou cada texto e isso foi uma experiência excelente. Hoje conto com um time de leitores que sempre leem meus textos antes de publicá-los. É assim, por exemplo, com os dois livros que tenho no “forno”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não tenho boa relação com as novas tecnologias. Só com as antigas. Aos 15 anos ganhei uma máquina de escrever do meu pai, em 1970, e a partir daí intercalei a escrita em cadernos e na máquina. Comecei a escrever a dissertação na máquina de escrever (1992) e um mês depois passei para o computador e a coisa deslanchou. Foi uma maravilha começar a escrever no computador e nunca mais larguei. Mas continuei e continuo com meus blocos e agendas. Me tornei usuário de notebook (1995) e nunca mais larguei. Várias vezes viajei com o computador e gostei de poder escrever no hotel, por exemplo. É o meu máximo em utilização das novas tecnologias.
De onde vem suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para manter suas ideias?
Acho que minhas ideias surgem de leituras, filmes, conversas com amigos, conhecidos, desconhecidos, e das caminhadas – tudo isso temperado com minhas lembranças. Gosto de sair batendo pernas pela rua, tomar um café, ler um jornal e quando volto para casa já estou com algumas ideias. Mas é difícil organizá-las. Algumas já vem na forma de um verso (início para a construção de um poema), mas a maioria tenho que burilar bastante até encontrar a melhor forma de expressão.
Se tivesse que manter um conjunto de hábitos para continuar tendo ideias, diria que preciso continuar indo a livrarias, bibliotecas, aceitando os livros que os amigos me emprestam, continuar empilhando livros, continuar acordando de manhã cedo e reservando as manhãs, às vezes dias inteiros, apenas para ler. Continuar conversando com meus amigos sobre livros, continuar trocando e-mails, continuar ouvindo as pessoas falarem e contarem suas histórias de vida. E seguir indo ao cinema, procurando filmes na TV, no Netflix, no Now, e tomando café também. E caminhando. Principalmente caminhando. Pois, se depois de todos os livros, filmes, jornais e conversas eu não caminhar, as coisas não vão se ajeitar, as ideias não vão se clarear, tudo vai ficar embaralhado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que me tornei capaz de ouvir melhor as observações e críticas a respeito do que escrevo. Eu não era assim com 20 nem com 30 anos. Mas não sei quando começou essa mudança. Talvez no mestrado, com quase 40 anos de idade. Eu entendi que precisava aprender, que não podia repetir o fiasco dos 25 anos, quando empaquei na escrita da monografia. Nessa aprendizagem, penso que contou muito a orientadora que tive. Eu tinha um bom projeto, um tema que eu conhecia, e segui com disciplina a orientação da professora. Pouco antes eu tinha cursado a oficina de criação literária do Assis Brasil (na PUCRS) e adquirido algum método para a produção de texto literário. Acho que apliquei um pouco disso na escrita acadêmica.
Provavelmente a partir daí as coisas mudaram. Em 96, quando aceitei a encomenda de paradidáticos da FTD, eu anotei as exigências e escrevi e reescrevi o material conforme a orientação. Eu já tinha 40 anos e não era o cabeça dura que fui aos 25 e que não escreveu a monografia exigida. Eu tinha 40 anos, dois filhos, e não dava mais para bobear.
Mas não sei o que diria se voltasse ao tempo dos meus primeiros textos, quando tinha entre 20 e 22 anos. Talvez dissesse para ter mais humildade, mais disciplina. Mas eu era muito empolgado, escrevia de forma muito apaixonada. Eu não escutaria essas coisas. Os contos daquela época (contos muito curtos) eu publiquei numa plaquete chamada Fúrias, em 2003, após cuidadosa revisão. O livro de poemas que organizei aos 22 anos, com 80 poemas, eu enxuguei para 20 e coloquei na primeira parte do Calibre 22, publicado duas décadas depois. Com vinte anos, eu não escutaria o que um velho de sessenta e poucos anos tivesse a me dizer.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um projeto iniciado para uma narrativa longa. Um projeto relativamente bem planejado e com 1/3 do material escrito. Mas empaquei. Travei. Estou bloqueado ou coisa assim. Mas vou publicar coisas que já estão prontas há muito tempo (um livro de contos, uma plaquete de poemas) e penso que isso me ajudará a desbloquear. Também estou tratando de outras questões da minha vida e acho que daqui a pouco a coisa vai. É o livro que, pretensiosamente, eu acho que está faltando. Uma história ficcional de um sujeito originário de italianos que emigraram para o Brasil no final do século XIX. Uma história que se ambienta na Itália, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Mais uma história de descendentes de imigrantes italianos. Mas acho que ainda tem o que contar sobre isso.