Vinicius Ferreira Barth é escritor e ilustrador.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu adoro ter vários projetos ao mesmo tempo e só me fodo para conseguir dar conta de tudo. Mas tudo bem, são boas fodas. Não é exatamente por preferir, mas sempre vivi rodeado por vários projetos que acontecem ao mesmo tempo, e o fim de um processo sempre dá início imediato ao próximo. Geralmente as minhas frentes de trabalho abarcam diferentes mídias, indo desde o texto literário/ensaístico até o desenho e a música (ultimamente até o cinema), o que me obriga a compreender que cada tipo de trabalho tem o seu tempo, o seu ritmo e a minha forma de entendê-lo. São distintas configurações mentais e físicas para cada momento. Assim, mesmo que eu leve tantas coisas diferentes em paralelo, é necessário que eu me dedique, paradoxalmente, a uma de cada vez. (tipo alguém que não sabe como se comportar numa suruba). Ou seja, é muito difícil que eu consiga me manter cem por cento presente na produção de um texto escrito quando estou, por exemplo, no meio do desenvolvimento de uma ilustração (que é o que se passa neste momento enquanto respondo esta entrevista pensando que comprei o modelo errado de pincel na semana passada). Na verdade, muito dessa concentração exigida por essas metamorfoses vem do meu esforço em não me tornar uma das figuras mais enfadonhas do cenário nacional: o petisqueiro, que é o multitalentoso sem talento, aquele que petisca um monte de atividades e é meia pica em todas elas, como foi brilhantemente explanado por Bruno Maron aqui.
Por isso, para que eu esteja cem por cento mergulhado numa só coisa e desenvolva a minha atividade de maneira consistente e embasada, sem que eu seja um petisqueiro meia bomba, seja com relação à produção de um roteiro ou à escrita de um conto, eu costumo ter algumas metas semanais compiladas mentalmente (não sou virginiano o suficiente pra manter uma agenda) onde dou a devida atenção a cada assunto em separado, escapando para outros assuntos apenas quando há a necessidade imediata.
No entanto, e isso deve ser ressaltado, todas as atividades paralelas foram totalmente interrompidas durante os últimos meses de escrita da minha tese de doutoramento, que pertence a outro patamar de produção textual. Nessa situação, como sabemos, as dores do parto são sui generis e eu não teria como pensar em qualquer outro projeto – malemal me lembrava de trocar de cueca – em meio a prazos tão rígidos e níveis de exigência celestiais.
Nessa situação, meu planejamento era diário e determinados objetivos deviam ser alcançados semanalmente, como conclusões de capítulos, traduções de texto, revisões, etc.
Mesmo assim, durante muitas semanas nesse lôbrego período, a humilde e subversiva meta de assistir a toda a filmografia de samurais dos anos 1960 foi a minha pequena revolução.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Já passei da idade de perder tempo me metendo em projetos que não vão a lugar nenhum ou que acontecem sem o mínimo planejamento. Hoje, a ideia de sair escrevendo para ver se algo surge me indica um nível de amadorismo – ou de total experimentação. Não creio que haja grandes artistas que não tivessem ideia em absoluto de para onde iam ou de qual o resultado que desejavam alcançar. Mesmo a palavra “projeto” – desprezada por Antônio Abujamra, que falou isso em algum episódio de Provocações – deve ser deixada de lado prontamente: um projeto deve ser estruturado e transformado rapidamente num trabalho em andamento, acompanhado de certos tipos de metas, de avanços, de cronogramas, de organização. Falo isso porque escrever a primeira frase é muito fácil – e ela pode ser sempre trocada até o último momento. Há uma grande sedução nessa ideia “renovadora” de se iniciar um novo projeto. Acabou virando um puta clichezão – que chega a parecer contraprodutivo – isso de sair da zona de conforto, traçar novas metas, iniciar um novo ciclo, pensar fora da caixinha, no pain no gain e essa baboseira toda. Às vezes isso dura, no máximo, uma ou duas postagens narcisistas no Instagram e a coisa acaba por sumir atrofiada e inútil ainda no campo das grandes ideias. É difícil ter a disciplina, competência, persistência ou paciência (e às vezes um pouco de sorte) para completar o trabalho e dá-lo como encerrado. E isso, apenas, já é o grande sucesso.
Que pode resultar, como acontece na maioria das vezes, no mais risível fracasso.
Como já disse Patti Smith em algum lugar por aí, o artista tende a buscar o contato com o sentido intuitivo dos deuses. Mas para criar o seu trabalho, não pode permanecer nesse reino sedutor e incorpóreo. Deve voltar para o mundo material para fazer, de fato, o seu trabalho. O artista tem a responsabilidade de equilibrar essa comunicação mística com o labor da criação. O grande Bernardo Lins Brandão disse esses dias, numa publicação em seu Instagram (@bernardolinsbrandao), que só valem a pena os textos que são frutos da atenção, e que o bom escritor é como um fotógrafo a esperar com paciência o momento oportuno de capturar aquilo que aconteceu rápido demais para não ser esquecido, e que as melhores palavras são aquelas que habitam o limiar do silêncio.
Quem sou eu pra discordar disso.
Mas isso não quer dizer que não haja espaço para a experimentação e para o deleite da descoberta durante o andamento do trabalho. É necessário que existam as brechas para a invenção, para os enganos, para o respiro e mesmo para os erros. Um trabalho pode ter vida própria, mas em nenhum momento deve fugir ao controle do autor. Senão, ao deixarmos a coisa fluir tão longamente com nossos jorros criativos e ejaculações metafísicas, corremos o risco de escrever algo como On the Road, de Kerouac, que sai do nada para chegar a lugar nenhum.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Durante a adolescência eu costumava me sentar para escrever em qualquer mesa no meio da praça de alimentação do shopping lotado com os fones de ouvido tocando, no volume máximo, algum Power Metal. Hoje to mais bundão – e mais surdo. Cheguei recentemente ao fundo do poço escutando uma rádio lo-fi chill beats enquanto escrevia.
Não preciso de um ambiente em particular para isso – mas acho que ter um ambiente apropriado favorece a disciplina. No entanto, preciso, infelizmente, de silêncio e de isolamento. (o infelizmente se refere só ao silêncio). Eu realmente gostaria de escrever com o volume do som no talo, mas a música me distrai (porque fico pensando nela) e eu perco o controle sobre o texto. Pessoas que me interrompem para conversar, ou que fazem ruídos por perto, ou que simplesmente existem, me incomodam ainda mais.
Mas é interessante pensar que ainda tenho algum prazer obscuro e voyeurístico em escrever literatura em prosa sentado em locais públicos e lotados enquanto observo os viventes ao redor, transformando-os frequentemente em personagens e descrevendo-os em meus textos. Mas suas falas me incomodam (já que dificilmente são interessantes), o que me obriga aos fones de ouvido – a maior invenção do homem desde a roda.
Sobre a rotina, sim, ela é necessária. Ainda mais quando se trata de uma obra em forma de livro, cujo processo pode se arrastar por anos caso não haja algum planejamento, o que resultará em alterações no estilo, na fluência, nas ideias, nos gostos, na maturidade. Ou, simplesmente, em você olhar para o texto um dia e achar uma bela bosta.
A rotina diária nos deixa atentos com relação à técnica, à dicção e ao caminho que seguimos, e traz a solidez estilística. É como tocar um instrumento. Temos um controle consciente sobre o todo, e nossas conexões e referências tornam-se, durante a prática, cada vez mais espontâneas.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Uma possibilidade é a de eu querer que o trabalho se foda e ir jogar umas rodadas de Counter Strike com uns moleques de 12 anos que vão me arrebentar a cara.
Aprendi ao longo dos últimos anos que a procrastinação não tem a ver apenas com a vagabundagem, mas também (e muito mais) com a insegurança, a ansiedade, o perfeccionismo e as exigências e expectativas que construímos a respeito de nós mesmos. Às vezes a procrastinação tem a ver com covardia, ou com o mais sincero medo. Todos esses sentimentos podem, de fato, nos levar a uma terrível estagnação. Há momentos em que lutar contra a procrastinação prejudica o próprio trabalho, tornando-o artificial, forçado, morto. Eu entendi que, nesses momentos, o melhor que tinha a fazer era aceitar o estado de estagnação pelo tempo que fosse preciso, e que tomar alguma distância do trabalho, de maneira intermitente, favorecia o entendimento do próprio trabalho, trazendo-me de volta a ele com olhos descansados e mais perspicazes.
Mas é difícil nos livrarmos da culpa. Anthony Burgess apontou isso em A Condição Mecânica, texto de 1973, onde ele fala o seguinte: “(…) sou livre para escrever o que desejar, de não ter de seguir nenhum relógio, de não precisar chamar nenhum homem de ‘senhor’ e submeter-me a ele por medo. Mas tal liberdade traz seus próprios remorsos: sinto-me culpado se não trabalho; sou meu próprio tirano.”
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Minha tese foi o texto mais trabalhoso, sem sombra de dúvidas. Mas, num âmbito acadêmico, isso é mais do que esperado.
Em relação a textos não acadêmicos, tenho a impressão de que todos me deram o mesmo trabalho em fases diferentes da vida, exigindo grandes doses de meditação, de distância, de reescrita e de vodka (clichezão do escritor sofrido e bebum tipo Bukowski).
Minto sobre a bebida.
edit: (trocar “vodka” por “fones de ouvido”).
Mesmo Hemingway nunca escreveu bêbado e nem mesmo disse a famosa frase write drunk, edit sober, que é frequente e equivocadamente atribuída a ele.
Para a atividade da escrita, o álcool, como combustível criativo, não chega aos pés do meu mau humor pessimista.
O que eu sinto pelos meus textos não é exatamente orgulho, mas algo que considero ainda mais especial: eu não me arrependi (até hoje, pelo menos) de ter publicado nenhum deles. Estão por aí, no mundo; criaram a sua vida própria e representam o melhor que eu pude fazer em diferentes momentos da minha trajetória. Não sou apegado a nenhum deles e nem acho que continuam me representando por toda a infinda eternidade. Consistiram, cada um em seu momento, em diferentes desafios e foram completados e encerrados. Ainda assim, compõem o eu de hoje que busca novas coisas. O orgulho é um tipo de apego do qual eu tento me desvencilhar.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Escrever tendo o público em mente já é meio caminho andado em direção a um texto medíocre.
O leitor ideal que mantenho em mente sou eu mesmo, e busco escrever aquilo que eu gostaria de ler.
Sobre meus temas, eu realmente não sei dizer de que buraco eles surgem. Podem vir de qualquer lugar: da vontade de detonar alguém que não gosto (bons textos nasceram desse odioso e catártico propósito, fazendo com que as ofensas se perdessem, ocultassem ou diluíssem no processo), do bloqueio criativo, da vizinha de roupão que vejo na janela em frente, da manteiga meio mole, de uma questão pontual que me persegue e vem a ser investigada e transformada num ensaio. Enfim, é como a fotografia, exatamente como as palavras do Bernardo que citei mais acima: a escrita exige paciência e atenção ao momento oportuno para que possamos capturar, em meio aos infinitos movimentos do cotidiano, apenas aquilo que realmente deve ser lembrado.
(fiquei procurando, ao falar das coisas que me sugerem os meus temas de escrita, brechas para usar a palavra “gatilho” [tal coisa foi um gatilho pra minha escrita, mêo], apenas para zombar do seu uso clichezão contemporâneo relacionado a textos de caráter “confessional”, mas não o fiz por ser uma boa pessoa.)
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Eu só mostro algo para alguém quando o algo já parece suficientemente bom para mim, e isso pode acontecer em qualquer altura do processo. Assim como na vida, só nós mesmos sabemos o que procuramos dentro do texto, e isso nem sempre está claro para o outro – seja ele quem for – durante o desenvolvimento do projeto.
Por isso, as poucas pessoas que leem os meus textos antes da publicação são justamente as que me conhecem melhor, porque sabem com mais precisão o que de mim está posto no texto e compreendem melhor o que procuro. Em nenhum momento da minha trajetória (excetuando-se a conhecida e inescapável travessia pelo vale do desespero durante a escrita da tese) eu fui atingido por algum tipo de crise ou de falta de confiança por receber críticas de algumas dessas pessoas.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Foi às 16h35 do dia 30 de setembro de 2002, uma segunda-feira.
Mentira, isso foi outra coisa.
Foi durante a leitura do Senhor dos Anéis quando ainda cursava o ensino médio, uns anos antes. Desde esse momento eu já me via disposto a enfrentar projetos de fôlego e de longa duração (complexo no. 1: de megalomania), mas foi apenas durante a Faculdade de Letras, a partir de 2007, que me dei conta da existência de obras que me marcaram definitivamente, como as épicas homéricas e romances como os de Thomas Mann e Guimarães Rosa, e comecei a ter contato com trabalhos que vieram, de fato, a me incendiar na vontade de escrever, como o Paraíso Perdido, de John Milton, o Jogo da Amarelinha, de Cortázar e o Finnegans Wake, de James Joyce.
As coisas que eu ouvi no início de minha carreira são as mesmas coisas que todo mundo ouve: um misto de grandes palavras de incentivo (que não são esquecidas jamais) com mais um monte de bosta (que é um ótimo adubo). Eu costumava me apegar romanticamente a ideias como as que Rilke desenvolve em Cartas a um jovem poeta, que todo escritor em início de carreira sai citando por aí para se sentir especial.
Hoje, minha visão a respeito da atividade de criação está mais atrelada ao que é desenvolvido por Patti Smith em Just Kids. É uma coisa de labor e de crença, de ideais e de autodescobrimento. Pode parecer igualmente romântico, mas está, de algum modo, muito mais próximo de mim.
De qualquer maneira, a maior dica que já ouvi não veio da Literatura, mas da Fotografia, durante o ano de 2013, em que me dediquei de maneira praticamente exclusiva a essa atividade. Uma fotógrafa, que não faço mais ideia alguma de quem seja, disse num documentário: “se você tem um pressentimento, uma intuição, persiga-o, independentemente dos ‘caminhos certos’ que os outros tentem te impor. Ignore os ‘caminhos certos’. Persiga o caminho da sua intuição porque ele É o certo e todas as respostas estarão nele.”
Puta dica, hein.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
(complexo no. 2: da incrível síndrome de esponja). Eu sou o curitibano que passa duas horas em Belo Horizonte e já sai falando gostoso. Sou facilmente influenciado por outros estilos. Faço isso na literatura também. Sofro de algum tipo de promiscuidade estilística e tenho uma forte tendência a começar a escrever de maneira parecida com os autores que leio. Guimarães Rosa e James Joyce foram os caras que eu mais imitei no início da minha carreira, e isso está mais do que posto em alguns dos meus textos.
Mas percebo que a imitação e a emulação foram também, sem que eu percebesse, uma escola de escrita. Mais ou menos como Hunter S. Thompson redigitando todo o Grande Gatsby, de Fitzgerald, só para conhecer a sensação de se escrever um grande romance. Ou como um Pierre Menard, autor do Quixote, em versão adolescente e no alto da estupenda arrogância de um graduando do curso de Letras que acha que tem muito para dizer ao mundo.
No entanto, a respeito de um estilo próprio, todas essas vozes vieram a integrar a minha própria voz. O jeito como eu escrevo aqui mesmo, nesta entrevista, está derivado dessas diferentes leituras e influências.
Existe algo que só pôde ser percebido com a prática, com o tempo e, mais que tudo, com os feedbacks de pessoas próximas, e que tem a ver, afinal, com o meu estilo. Toda essa imitação sempre teve um pouco de Eu, e do que eu buscava inconscientemente nesses diferentes modos de se dizer algo. Isso, quando é percebido, gera um sentimento maravilhoso. “Te ouço falando enquanto te leio” é geralmente dito para mim de maneira positiva, como um elogio, e me sugere um valor genuíno do texto. O estilo próprio, tendo a acreditar, nasce também da sinceridade e da honestidade. Uma arte honesta nunca é ruim. Muito do que o artista é, em seu interior, é revelado no traço, no olhar e na palavra. É necessário que se tenha coragem para mostrar isso.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Patti Smith, Just Kids, por motivos que vão muito além do texto.