Vilma Costa é poeta, escritora e professora, doutora em Estudos da Literatura pela PUC-Rio.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de acordar devagar, quando posso, demoro a levantar, cochilo mais um pouco. Preparo um café, arrumo o cantinho para saboreá-lo com uma fruta e aquele pãozinho. Depois disso, começo dando uma olhada bem rápida no celular, vejo quem ligou, quais as mensagens e e-mails de emergência. Preparo um cheque-lista das prioridades dos afazeres do dia e do dia anterior que não foram realizadas, e dedico o resto do tempo matinal para cuidados com a saúde como exercícios físicos (hidroginástica e pilates) e outras coisinhas. Se ainda sobra algum tempinho antes do almoço, durante a semana, dou uma lida no que foi escrito, na véspera ou anteriormente, principalmente poemas ou textos curtos, para fazer uma revisão, aparar arestas ou digitar e arquivar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Movimento-me melhor à tarde e à noite para escrever. Depende muito da minha disponibilidade de tempo e o texto a ser escrito. Preciso de calma e certa folga para deixar fluir a escrita em si. Trata-se daquele ócio a que se referia Oswald de Andrade: Ócio X Negócio. Mas isso é bem contraditório numa vida atribulada que temos e escolhemos seguir. Escrevo poesia, literatura infanto-juvenil, ensaios, crítica literária e narrativa ficcional (romance).
A poesia é hábito e necessidade de expressão e autoconhecimento desde a infância. Está incorporada ao meu cotidiano deste então. Não acredito propriamente em inspiração, mas no primeiro momento há uma mobilização interna que se impõe a partir de sentimentos, de fatos ou contato com outras formas de arte, como a música, desenhos, pinturas ou filmes. Depois vem o trabalho de artesão. Um verso na cabeça pode passar dias, semanas para virar um poema, ou ficar na gaveta ou caderno de anotações para ganhar forma. Tornar-se livro, então, pode levar anos. Depois de escrito, separo desabafo de arte, movimento-me entre esses dois aspectos. O que pode ser partilhado com leitores pode vir a ser publicado. O que não, entra nos arquivos de memória da vida, podem ser relembrados simplesmente ou serem reciclados mais adiante talvez. Essa produção para se manter viva precisa ser alimentada por uma espécie de laboratório. Mesmo estando envolvida num projeto de fôlego como a tese de doutorado ou um romance, preciso dar uma volta nesse laboratório de poesia ou de contação de história para os pequenos. É como oxigenar os pulmões para poder soltar a voz e ganhar força para os trabalhos mais pesados. Além disso, permeá-los de leveza e simplicidade, apesar do “rigor científico” que nos é exigido em muitas situações.
Os outros tipos de texto são produzido enquanto projetos e se alternam. Por exemplo: para ensaios, artigos de pesquisa ou publicações em coletâneas e jornais em geral, considero os prazos de entrega. O ritual implica definição de tempo de leitura, pesquisa e tempo diário da escrita. Para isso preciso de foco e disciplina. Como professora aprendi com meus alunos e amigo a estabelecer planos. A própria produção artística enquanto não entra num plano de escrita e definição de prazos não se viabiliza. Este plano é sofrido, interrompido, adiado, por vezes frustrado, mas isso faz parte do processo. Como a vida, para se realizar não economiza esforços e determinação.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Acho que já respondi, em parte, essa questão. Há uns versos de Fernando Pessoa que diz o seguinte: “Nem um dia/ sem uma linha”. É meu sonho de consumo, ainda nunca alcançado, mas nunca abandonado. Com base neles, criei um poeminha como uma mantra: “Nem um dia/ sem uma alegria/ um abraço, uma canção/ um sorriso de criança// Nem um dia sem a poesia/ um baú de lembranças/ resgatando sonhos/ e novas esperanças”. Escrever mesmo, não escrevo todos os dias como talvez o fizesse ou quisesse Pessoa. A bela desculpa esfarrapada vem de Mário de Andrade que dizia que sua melhor “obra de arte” é a Vida. Penso nisso quando olho para meus filhos já criados e meus magotes de net@s, lind@s, artistas e sapecas. Ou seja, a vida e suas atribuições, a luta pela sobrevivência e vivências de verdade ocupavam muito meu tempo e impediam-me de dedicar-me como gostaria.
Contudo, ter mantido a escrita durante todos esses anos como prática regular e permanente, incluindo rascunhos, projetos, leituras, reescritas, pesquisa e algumas realizações significativas, é para mim um cara conquista.
Em períodos concentrados, para viabilizar projetos de publicações ou fechamento de pesquisas, precisando dar conta de prazos, amplio as horas do dia de concentração e estabeleço metas, definindo o momento de parar a compulsão de ler, e o de parar de adiar a escrita. Por exemplo, a primeira parte do meu romance DE VOLTA AO CARROSSELlevou anos para ser escrita. A vida virou pelo avesso, guardei-o por mais outros anos para revisar ou/e reescrever o que foi preciso e concluí-lo em curto espaço de tempo, com uma agenda bem rígida, tempos depois. O mesmo se deu com a tese de doutorado. Foram quatro anos de reclusão, entre leituras, pesquisas, cansaço e renúncia das farras de fim de semana e tempo livre. O projeto e cronograma, bem orientados pelo prof. dr. Renato Cordeiro Gomes, exigia-me concentração e produção antecipada de capítulos por capítulos. Nessas urgências procuro definir número mínimo de páginas diária e tentar cumprir, mesmo que tenha depois que enxugá-las, revisá-las ou descartá-las. Isso é importante porque quanto mais se escreve, mais material teremos para a nossa própria revisão, a dos nossos interlocutores que se dispõem a nos ajudar, com leituras críticas, cortes ou recortes, quando necessário.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O problema é aceitar que a compilação de notas, a abundância de leitura ou as voltas nos questionamentos foram suficientes. Neste caso, sofro muito e caio na compulsão de novas leituras, uma puxa a outra, novos rabiscos de citações, novas anotações. Bate nesse momento uma sensação de insuficiência e de inadequação quase me paralisa. Brigo com a compulsão de continuar planejando, lendo até começar. Sim, é difícil começar. Entro numa quebra de braços, só depois de algum tempo, vou abrindo caminhos e buscando sentidos, costurando fragmentos de pensamentos e tecendo o texto, mas no início parece que estou deixando a desejar. Com a experiência o “erro” não me preocupa tanto quanto anos. Mas todo começo, para mim, é sempre um desafio difícil de encarar.
Na criação de um poema é diferente. O fato de parecer ser sempre um rascunho, vir carregado de ambiguidades e não-ditos, admitir remanejamento e recortes ou cortes é da natureza da produção poética. Faz parte, portanto, do processo, é experimento de uma oficina mais maleável. Ou seja, soam naturais as dúvidas nas escolhas. Se o primeiro verso parecer muito bom, pode vir como último. A coerência não está amarrada a uma coesão sintática como o texto ficcional, ensaístico e argumentativo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Se o começo é difícil, o que dizer da conclusão de um projeto longo. Quantos ficaram sem ser realizados por falta de fôlego, segurança, capacidade de superar a procrastinação, o medo e a preguiça de enfrentar tantos obstáculos? Quantos dormem ainda na gaveta e reluto em publicar?
Mas esta pergunta sugere superação. Aprendi muito por tentativas e erros, dando murros em ponta de faca, definindo metas, abrindo mão de alguns projetos, quando fui aprendendo, ainda em processo, a superar a dificuldade de estabelecer prioridades. Quando consigo superar tantos entraves, sair das minhas múltiplas possibilidades e me centrar com afinco em períodos concentrados, vou dando um passo de cada vez, sentindo-me mais confiante. É assim que o trabalhoso sacrifício torna-se prazeroso e gratificante. Até chegar aí, e me achar, depois de ter me perdido pelo caminho, é outra história.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Geralmente, reviso inúmeras vezes a maioria dos textos. Os que saem de supetão, como se estivessem prontos na cabeça anteriormente, reviso uma ou duas vezes, porque sempre fico desconfiada desses rompantes.
Mostrar para outras pessoas, geralmente, curiosas e disponíveis intelectualmente e/ou afetivamente, tem sido importantíssimo para medir o grau de relevância de cada trabalho e a capacidade dele de contribuir para a troca de ideias e sentimentos. Isto também fortalece minha confiança em prosseguir, atiça meu senso autocrítico e a sensibilidade criativa. Nem sempre foi assim. Mas o ganho que isso me proporcionou convenceu-me a abrir minha gaveta e meus arquivos para outros. Tem sido valiosa a contribuição dos meus interlocutores, tanto especialistas, quanto os não, adultos ou crianças. Estas, por vezes, são verdadeiros coautores dos livros infantis, sugerem temas para os poemas, ilustram e demonstram aceitação ou rejeição das histórias com sincera empolgação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é de convivência pacífica, pragmática sem grandes arroubos de paixão. Sou esforçada, mas não dedicada a desbravar seus novos caminhos. Aprendo o necessário para sobreviver e transitar no básico que, reconheço, vai se tornando a cada dia mais insuficiente. Sou de seguir em frente e pedir ajuda a quem tem maior domínio que eu.
No geral, textos curtos escrevo à mão, depois passo para o computador. Textos longos começo à mão, quando passa a fluir até continuo no computador, muitas vezes, naturalmente, outras movida pelas urgências.
Mas bem lá no fundo, amo ver a caneta rasgando a folha em branco. O gosto de poder revisar, riscar, emendar, retomar, sobrepor, dispensa às vezes os corretores tecnológicos, incapazes de traduzir o que eu pretendo dizer. Elaboro isso aqui quase como uma desculpa esfarrapada. Claro que são valorosos os recursos tecnológicos na ortografia, no copia, cola, recorta, na agilidade em lidar com o tempo curto. Mas posso fazer isso na escrita definitiva, como abrir a cortina de uma peça, jamais dispensa o ensaio. Escrever é ensaiar.
A escrita à mão facilita-me pensar mais fluentemente e, ao passar para o computador perco menos tempo em frente à tanta luz, os olhos e os tendões agradecem a minha paciência e pouca destreza tecnológica.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
A grande maioria das minhas ideias vem da vida vivida, cercada de muito amor e desafios. Trago olhos bem abertos para a realidade do povo simples e sofrido do qual sou filha legítima, com muito orgulho. Além disso, a experiência como professora em diferentes níveis de ensino, desde os pequenos em comunidades menos favorecidas até os da universidade em formação de professores, aliada a sensibilidade e paixão pela experiência estética lançam-me num mundo fascinante e perturbador que me tornou uma eterna e curiosa aprendiz.
Cultivo o hábito bem eclético de ouvir músicas, transito da clássica à popular, quase que diariamente. Sou cinéfila. A narrativa cinematográfica, assim como a leitura, especialmente a narrativa ficcional, mexe com minhas emoções, atiça minhas ideias e amplia minhas visões de mundo. Isto porque talvez abram portas para diferentes culturas e modos de vida, ampliando horizontes e novas perspectivas. Trocar figurinhas e estabelecer interlocução com parceiros da escrita e outros artistas e um flerte com a filosofia e áreas afins alimentam a criatividade. Conversar, ouvir e contar histórias para e com as crianças enche-me de esperança e alegria de viver. Procuro estar presente nas inúmeras festas da minha grande família, viajar, praia, mar, sol, celebrar os grandes encontros, cultivar amizades e amores. Estes elementos são muito importantes para manter acesa a chama.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Estou mais consciente das minhas limitações, sem comprometer minhas potencialidades, acho que a maturidade traz isso. Claro que hoje tenho mais domínio que anteriormente do fazer poético e segurança do que desejo produzir e, além disso, aprendi a manter o pé no chão. Sonhar é preciso, mas formular propostas muito além das nossas forças é uma forma de apostar na frustração, ou seja, autosabotagem. Deveria ter acreditado mais, arriscado mais, se pudesse, teria aprendido mais cedo a estabelecer prioridade na vida literária. Mas a vida concreta (pela sobrevivência, pela família e pela afetividade) foi mais premente e sedutora. Tenho a sensação de que hoje estou tendo a chance de dar a devida atenção à escrita. Apesar disso, a vida concreta, a que me referi, mais leve e menos atribulada, continua sendo o meu manancial de busca de sentidos e expressão.
Eu diria para mim mesma se pudesse voltar aos primeiros escritos: dê asas à sua paixão a dez centímetros do chão pelo menos, e acredita! Mas afinal, é sempre tempo de seguir em frente…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O escritor português Antonio Lobo Antunes, respondendo a uma pergunta parecida com essa, disse ter que viver uns duzentos anos para dar conta dos projetos que tinha em mente por realizar. Como não é possível ainda tamanha façanha temos que nos concentrar nos possíveis ou mais prováveis. Preciso tirar da gaveta e publicar “O arco de Iris e outras histórias”, praticamente pronto, livro infanto-juvenil de poemas e curtas histórias em verso, ilustrado pelas crianças.
Continuar produzindo poemas, catalogá-los, selecioná-los, e organizar um novo livro de poesia mais adiante, para gente grande, este está em processo. E, ainda não comecei mesmo, mas pretendo começar a rascunhar um novo romance. O meu primeiro, De volta ao carrossel, está muito recente e não me sai da cabeça. Talvez eu vá precisar de um bom tempo para me desapegar dele e partir para outro. Além, claro, de muito fôlego para recomeçar.
Mas na verdade, não tive tempo ainda de pensar nos livros que não existem. Minha estante e as livrarias estão repletas de livros que gostaria e teria que ter lido. Gosto de ler por prazer os clássicos universais e como me especializei nos autores contemporâneos brasileiros, tento acompanhá-los e diminuir a pilha dos livros deles na estante e na minha lista de leituras. Não posso agora nem seria justo citar um desses livros, entre tantos… São eles meus mestres de todas as horas…