Victor Toscano é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de acordar cedo, mas não é porque eu gosto que consigo. Quando dá, levanto umas oito ou nove da manhã. Como pão com ovo e tomo café. O período da manhã não me favorece na escrita; eu o uso mais para ler, escutar podcasts, programar o resto do meu dia, limpar a casa, estudar, olhar pela janela. Apenas de vez em quando penso na minha literatura. Se isso acontece, faço anotações e me acho francamente genial. Acima, uma foto de mim pela manhã me preparando para não escrever uma linha que seja.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu escrevo as melhores coisas na madrugada. Acho que isso acontece porque o dia já morreu, no melhor sentido da palavra. Não há mais como ser útil. Os bares e mercados fecharam. As pessoas que mantêm o mundo funcionando já estão dormindo. Sofro de insônia moderada, então ponho boa quantidade de texto no papel nesse horário. Não é por escolha, quero que fique claro. Troco três páginas de ótima literatura por uma noite de sono mediano, porém restaurador a qualquer momento.
Sobre rituais, não os tenho propriamente, mas há algo que me põe no clima, que faço e me ajuda a ter vontade de escrever. Eu leio.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tento ter uma meta diária de escrita, mas raramente consigo mantê-la. Não me imponho quantidade porque acho que isso não dá certo. O que funciona é parar tudo e escrever. Depois de muito tempo fazendo isso você começa a se conhecer mais, saber até onde o fôlego aguenta. Escrevo um pouco a cada sentada, o que nunca dá mais de uma página por dia (acontece, mas é raro). Depois de uma página eu nem acho que o que vai saindo vale muita coisa. Me parece bobagem obrigar-se a fazer cinco por dia se no seu dia seguinte de trabalho a maior parte do esforço será editar e deletar aquilo tudo. Para mim, o projeto fica confuso e com vertentes demais ao fazer mais de uma página por dia. (Em verdade, uma página por dia é a meta, mas na prática consigo produzir três laudas satisfatórias por semana. Por satisfatórias quero dizer: que me possibilitam continuidade e fortalecimento do projeto.)
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A fim de facilitar minha vida, ou por não conseguir facilitá-la, eu misturo tudo que nela existe. Abro um documento inicial que será o mesmo no final a ser entregue à editora. Posso começar um documento com um parágrafo, abaixo do qual se encontram umas treze anotações, trechos copiados de sites de pesquisa. Adiciono incontáveis comentários no canto, uma espécie de conversa comigo mesmo. Dou dicas, lembretes, faço críticas ao que vou escrevendo. Tento jogar ali vozes divergentes: a das fontes, a do meu crítico, a do meu consultor literário e amigo, a voz da redação; e quando vozes intrusivas surgem, aí dou uma paradinha.
A escrita da redação em si (se é que consigo enxergar desse jeito) vai sendo construída com o resto. Eu prefiro que o documento seja o mais confuso e labiríntico possível. Gosto de saber de onde vou tirar e como o essencial vai se revelando para mim. Não deixa de ser uma experiência de estruturar o universo com uma ordem que você próprio desconhece a princípio.
O que foge um pouco dessa coisa serpenteante é um caderninho que mantenho ao lado enquanto escrevo. Ele tem um pouco a função de checklist ou arquivo de notas para quando estou na rua, quando preciso de algo mais à mão.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que é o tipo de coisa que cresce se você pensar nela. Eu não acredito que há expectativas a serem correspondidas na literatura, ou na arte para ser mais exato. Você não pensa assim?
Penso também que algum tipo de ansiedade deve existir nem que seja só pra você saber que vale a pena gastar seu tempo naquele trabalho. Ansiedade é algo que se cura, na medida do possível, com preparo e prática. Há que se sentir algum desconforto quando queremos muito alguma coisa, caso contrário pra que começar?
Procrastinação é a coisa mais difícil de vencer dessas que você falou. Não tenho a resposta. Acho que são diversas as razões para não fazermos algo que sabemos que devemos. Já a saída me parece ser sempre a mesma: encarar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso bastante. Eu gosto de revisar, é o momento em que consigo ver o que fiz como tendo alguma relevância. A ideia é revisar tantas vezes quanto eu aguentar: tento me levar até o ponto em que enjoaria completamente do texto, aí recuo um pouquinho. É o quanto reviso. Eu acho que revisar é escrever e escrever é revisar. Não tem muita diferença; pode ser ainda mais prazeroso por partir da premissa de que seu texto está praticamente pronto e precisando dos últimos retoques.
Até gostaria de ter mais leitores antes de publicar minhas coisas, mas não é um hábito, nem me gera qualquer angústia não tê-los. É preferível receber opiniões sobre aquilo que você está fazendo; nas oficinas literárias esse hábito alcança sua expressão máxima e compensa bastante. É legal ter gente que também escreve dando palpites no seu trabalho, assim como é legal ter gente que não escreve dando palpites mais impressionistas.
Mas no fim das contas eu acredito mesmo é em tentar adquirir uma espécie de super consciência acerca daquilo que você está escrevendo: saber o por quê, o o quê e o como. Acredito em você mesmo ter as condições de perceber se no fundo aquilo presta ou não. Se não for possível ter essa consciência, você terá aprendido algo muito valioso quando as opiniões vierem após a publicação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Vai tudo no computador. À mão só mesmo anotações ou alguns trechos em cadernos que carrego para quando não posso usar o laptop.
Recentemente, ando gravando muitas notas em áudio. Vou falando na rua. Fico em casa com o gravador ligado conversando comigo sobre o projeto. Ou interpreto. Falo na voz do personagem, com o sotaque da personagem, ou me queixo da vida de dentro da consciência do narrador. Tem a ver com atuação. Tento estudar um pouco de atuação para fazer isso. Descobri que me traz coisas novas a que eu não tinha acesso antes. Além de ajudar muito com ritmo e velocidade no texto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm em geral de outros produtos culturais. Livros, filmes, discos, artes visuais. Muito pouco vem do que vejo. Ao contrário do que escuto ser comum com outros escritores, me parece mais pobre a vida cotidiana. Uma mãe esperando o ônibus com seus quatro filhos pequenos, uma vozinha atravessando uma poça d’água, um passarinho metade atropelado metade mexendo. Para mim, entrar em contato com essas coisas é apenas banal ou terrível. Não que eu não queira escrever sobre elas por algum motivo. Mas dificilmente serei comovido com a vida, digamos, mais crua ao redor.
Por outro lado, cada vez mais, meu material vem de minha própria memória, o que não se trata da vida em si, mas da vida transfigurada, destruída e refeita tantas vezes que dali já nem sei mais o que vivi.
Sou um bocado desorganizado na compilação de ideias. Anoto-as em muitos cadernos e documentos no celular. Aos poucos vou pondo ordem nisso quando jogo tudo no documento principal do texto, como falei acima.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu fiquei menos sistemático. Eu desisti de maneira saudável da marcenaria pesada. Fiquei mais instintivo, delimitei a quantidade dos assuntos que desejo abordar com a literatura. Eu diria muita coisa a mim mesmo se pudesse voltar no tempo, mas nada sobre escrita. Acho que a respeito de literatura até que fui fazendo direitinho.
Meu primeiro curso na faculdade foi Ciências da Computação. Um erro incompreensível. Eu não tinha nada a ver com aquilo, até hoje não entendo por que me castiguei dessa maneira. O lado bom foi ter passado muito tempo na biblioteca da Universidade Católica de Pernambuco.
Eu não assistia às aulas do curso; ia direto para a biblioteca. Chegava às 14h, arranjava uma saleta individual (elas não existem mais) e voltava para casa às 22h. Por quase um ano, li tudo que se pode indicar a um jovem atormentado de dezoito anos. Tudo que importa de existencialismo, dos russos, de Platão, entrou um tanto de budismo; li Nietzsche, Maquiavel, toda a obra do Salinger e do Woody Allen, uns três do Graciliano; descobri Philip Roth, Freud, Jung, descobri Shakespeare de verdade; li uma versão adaptada hilária do Don Quijote e mais um bocado sobre Cinema num almanaque de entrevistas. Sinto alguma pena do meu pai por ter pagado um ano de educação caríssima que poderia ter sido adquirida com um cartão de biblioteca. Foi importante demais ler tudo isso e me dá saudades da época em que tudo era novo na literatura. Ajudava não ter amigos.
Se tem de haver um conselho, seria: leia mais. Mas aí penso: qual é a pressa?
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
É uma boa puxar pra si a responsabilidade de escrever um livro que não existe e que você gostaria de ler, não acha? Estou no meio da escrita de um romance agora. Mas o meu próximo, para o qual já compilei algumas notas e que é um livro que eu morria de vontade de ler, vai ser a tentativa de uma nova história das religiões. Naturalmente, trata-se de uma comédia.